segunda-feira, 19 de novembro de 2007

CIRCUNSTÂNCIA

Gláucia Lemos
Descubro uma formiga saúva caminhando no peitoril da janela. Uma formiga vermelha, cabeçuda, dois ferrões à frente da cabeça. Sinto imensa alegria. Essas formigas amam roseiras. Uma dessas na minha janela, fora de qualquer dúvida, sinaliza a existência de roseiral por perto. Detenho-me, dispensando-lhe toda a minha atenção. Maravilhado, vejo que não há somente uma, mas um pelotão deslocando-se em fila indiana pela beirada do mármore que liga os peitoris do sexto pavimento. Rapidamente resolvo ir com elas. Estou convencido de que em algum lugar chegaremos a roseiras.
Incorporo-me ao pelotão. Começo a caminhar pelo relevo da parede, com minhas pernas finas e compridas e curvas, de formiga. Tenho que caminhar lentamente para acompanhá-las. No entanto, mesmo que pretendesse locomover-me depressa no meu natural passo de humano, não o conseguiria. A princípio, custo a entender como minhas pernas estão frágeis e meus passos milimétricos. Deverei fazer com centenas de passos o percurso que venceria em segundos, em não mais que três passos das minhas pernas de homem. Agora, creio que consumirei algumas horas para andar da minha janela até a mais próxima, por cima do peitoril. Não há alternativa, já que decidi segui-las.
O contingente é numeroso e todas parecem pôr as patas exatamente onde as pôs a que vai à sua frente. Mesmo não entendendo porque, procuro comportar-me como as demais.
Há algum tempo que caminho e estou notando que minha janela parece muito distante agora, embora a do vizinho também me pareça longínqua. Não é fácil ser formiga – penso. Ou não é fácil ser formiga para quem sempre foi humano. Contudo, prossigo na jornada. A meio caminho, as companheiras que me precedem param em torno de um animal muito maior que nós. Tenho que imitá-las e me ponho a examinar também o objeto da curiosidade e do interesse geral. Caminho em volta do monstro e acabo descobrindo que se trata de uma barata. Mísera barata que está morta, ou quase. Em decúbito dorsal, uma das patas ainda se movimenta. Parece acenar um adeus. Nunca entendi porque as baratas mantém um péssimo costume, de não morrer de uma vez. Demoram-se com uma perninha tremendo, tremendo, denunciando que ainda estão vivas, arriscando-se a um pisotão derradeiro. Penso em fazê-lo, mais uma vez além das muitas em que já o fiz. Mas agora sou formiga e meu pisotão é muito mais leve que o da própria barata.
Após breves momentos, tenho a impressão de que um conselho decisório achou por bem carregarmos o monstro moribundo. Cada uma das formigas agarra-se a um pedacinho para que todas consigamos transportá-la, ou quase todas. Parece haver uma disputa por uma pontinha a que se possam agarrar. Não sei se as que não colaborarem nessa tarefa deixarão de merecer banquetear-se, já que não trabalharam. Quanto a mim, não estou interessado em comer barata, mas já que participo do grupo, dou também a minha bicadinha em uma ponta da asa e cá estamos indo como quem transporta um banquete. Para mim, suficientemente desinteressante, já que não sou formiga nativa, sim uma circunstância de formiga, por conveniência.
Não sei quanto tempo gastamos para vencer da janela do meu quarto até a do quarto mais próximo, e após, à do quarto seguinte e assim por diante, rumo ao final do parapeito. Finalmente vamos ter que descer por um tubo plástico que me parece muito calibrado, mas logo percebo tratar-se da rede hidráulica. Liso, como se fosse encerado, nele os meus pés deslizam, também os das outras formigas. E assim o peso da barata nos obriga a precipitar até o chão. Caímos todas agarradas à nossa carga qual um paraquedas coletivo. Algumas soltam-se e prosseguem. Terão recebido dispensa aquelas algumas? Ou poderão estar sem fome ou fazendo dieta. Aproveito e desisto também, por nenhum dos dois motivos, pelos meus especiais, absoluto desinteresse em degustar aquele petisco. Novamente em fila indiana, as desistentes prosseguem, e eu, naturalmente, as sigo.
Estou ficando fatigado da jornada, só a certeza de que encontraremos algum roseiral não me permite retroceder. Andamos longamente por chão acidentado. Suponho que seja a área localizada logo abaixo da janela do meu quarto. Vista de cima, do sexto pavimento, não parecia cheia de pedras, de saliências e reentrâncias tal como a conheço agora. Logo vejo-me diante de enorme palma de bainhas serrilhadas. Eu poderia caminhar por cima dela. Limito-me, porém, a examiná-la enquanto a minha formação de botânico leva-me a reconhecer uma prosaica touceira de capim. Estou surpreso. Como mera gramínea terá crescido a tais proporções? Logo, porém, me elucido: reduzido à condição de formiga como me encontro, um pé de grama terá que me parecer agigantado. Então compreendo também que as enormes pedras com que me tenho defrontado, não passam de pedregulhos que pude avistar inúmeras vezes lá de cima, quando na janela do meu quarto. Preciso dar muitos passos para vencer o pequeno percurso em torno do capim e sinto que está sendo muito cansativo ser formiga, o que me leva a recear não atingir jamais o hipotético jardim de rosas.
Atraso um pouco para falar à companheira que me sucede na fila.
- Ainda estamos muito distante, suponho.
Ela não me entende. Sacode suas antenas na minha direção como se me examinasse e prossegue ligeira. Fico meio decepcionado, logo, porém, compreendo que não poderia esperar de uma formiga o entendimento à minha linguagem. No ar, o que percebo, é algo semelhante a um cicio que deve ser a maneira de comunicação entre elas.
Após a caminhada de toda a tarde, chegamos finalmente, ao muro alto, agora altíssimo que me parece tocar as nuvens. Sei que se trata daquele dentro de cuja área se encontra o prédio onde estou morando. Com algum tédio recordo que em circunstâncias normais não gasto mais que dois minutos, talvez menos, entre o hall e o portão principal.
A tarde quase se foi, pois noto que escurece. Caminhamos ao longo do muro , ao encontro do portão de ferro, no qual passamos tranqüilamente por entre as grades, alcançando o passeio.
Aqui fora são muitos os pés humanos pisando quase sobre as nossas cabeças e os nossos corpos. Minhas companheiras não se assustam, parecem acostumadas, eu, porém, vejo a morte descendo sobre o meu corpo, na forma de um solado de couro – ou será de borracha? Encolho-me, com o maior susto da minha recente vida de inseto. Como um filho dos deuses, consigo ficar no pequenino espaço entre a sola e o salto do sapato. – Deus meu, como me tornei insignificante! – Tem suas vantagens a minha atual minúscula estatura. Às vezes, divirto-me com a situação. Dessa vez, porém, o coração bate acelerado e respiro fundo, antes mesmo de poder considerar se formiga consegue respirar fundo. Passado o susto, sinto vontade de rir. Não crendo que formigas riam, consigo conter-me.
As outras companheiras de jornada seguem sem qualquer receio, são felizes vivendo perigosamente, pois que é a única vida que conhecem. Quanto a mim, procuro encostar-me tanto quanto possível, ao canto da parede, bem rente ao sujo rodapé dos prédios, e vou andando, sabe Deus até que lugar.
Agora sou assaltado por importante dilema: se as sigo nesse passo ínfimo, de formiga, não sei quando chegaremos ao hipotético roseiral para meu retorno às pesquisas que precisei interromper desde que transferiram a minha residência. Se desisto de segui-las e reassumo a minha natural condição humana, não saberei jamais onde encontrar as roseiras. Estou muito preocupado com isso, pois ainda não me decidi.
O que ainda não entendo é porque me trouxeram a morar naquela casa. Será tão estranho querer, como eu quero, compreender a alma das rosas, convencido como estou de que elas a possuem, e pretender, como eu pretendo, ensiná-las a falar ?
Gláucia Lemos é ficcionista, com vários títulos premiados, inclusive com literatura infanto-juvenil. Este conto pertence ao volume No tempo dos frutos.














Um comentário:

Carlos Vilarinho disse...

GLAUCIA, VOCÊ JÁ FOI FORMIGA ALGUMA VEZ NA VIDA? ENCOLHER-SE DE UMA SOLA PARA NÃO MORRER ESMAGADO... QUE IMAGEM, VIU?
LEGAL!!