quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

MÊS AMARELO




Gláucia Lemos



O jardim de minha avó ficava em frente à casa, passado o portãozinho, e a acompanhava pela lateral, em longos canteiros de margaridas brancas e amarelas, até chegar à garagem no fim do quintal. Ali morria em uma humilde touceira de resedá. Sempre considerei, por conta própria, aquele resedá como se fosse um marco proposital para o fim de jardim. É uma das minhas fixas recordações de infância. Tinha o piso forrado de seixos roliços que faziam ruído semelhante a dentes gigantescos mastigando. Cada vez que eu pisava nas pedras – o que fazia todos os dias, tinha a impressão de que uma bocarra misteriosa, invisível, mastigava ruidosamente imensuráveis grãos de milho seco, ou talvez de pedregulhos. Era impossível transitar pelo jardim sem que se fosse denunciado para as salas e quartos, dos quais as janelas se abriam para a festa das cortinas alvoroçadas pelo vento. E todas se abriam justamente para o jardim. O jardim era uma festa de todos os dias, sem outro motivo que não o prazer de estar entre canteiros, observando a mastigação dos pedregulhos, que mudava o ritmo de acordo com os passos que eu ficava variando por pura diversão. Calada, provocando e ouvindo. Mania minha, muito guardada, jamais revelada a alguém qual valioso segredo.
Havia um pé de acácia amarela – não sei se devo dizer acácia amarela, talvez não exista acácia de outra cor, mas sempre falamos assim. Pois havia um pé de acácia amarela a um canto do jardim, bem na entrada. Debruçava-se para a rua por cima do largo portão verde. Em dezembro floria. Os cachos amarelos eram quase escandalosos, na imodéstia com que esbanjavam ouro e alegria, quando o vento os sacudia na viração vinda do mar, que lá estava, a uns três quarteirões da casa. Então caíam lá do alto pequeninos anéis que eu nunca soube se eram pistilos pecos, ou se tinham o propósito de sujar todo o piso, dobrando o trabalho do rapaz que o limpava.
Penso que foi aquele pé de acácia que me fez, toda a vida, achar que o Natal é uma festa amarela. Sempre tive o costume de atribuir forma aos nomes próprios, e ligar a cores todas as coisas e datas, com uma espontaneidade toda minha. Por isso, entre outras coisas que coloria, o Natal se me afigurou sempre amarelo, como o Carnaval, mais intenso talvez, vermelho e verde conjuntamente. Não sei se por isso, dezembro, que ressuscita todos os anos ora brilhante ora sombrio conforme a minha paisagem interior, na minha percepção aparece através da copa do pé de acácia, generosamente florida, sorrindo em ouro por cima dos seixos roliços do jardim de minha avó. Natal e galhos de acácia têm a proximidade mais íntima, incompreensível a quem deles eu falasse.
Um antigo jardim que hoje só existe no registro permanente ao lado de outros registros que não se apagaram, porque todo o vivido escreve uma história. No seu lugar, agora, há de se ter levantado um edifício de apartamentos, no qual crianças, aglomeradas em caixas superpostas, espiam, com olhos imensos e gulosos, por entre grades com as quais o progresso as defende da sanha urbana. Crianças que vêem Natais de cores metálicas, piscando e fosforescendo em néon, multicoloridamente artificiais, e nunca saberão que existem acácias que florescem nos dezembros. Ou floresciam. Nunca saberão que os jardins forrados de seixos roliços escondem gigantes e monstros enormes que mastigam pedregulhos toda vez que uma criança caminha por cima deles. Nunca saberão como os dezembros podem ter uma cor definida, e se tornar amarelos, e podem até pintar de amarelo todos os Natais de alguém, para sempre. Ainda que o amarelo tenha se tornado menos forte e menos brilhante, continuará sempre amarelo, pois as acácias também podem perder um pouco do vigor da floração com a passagem dos anos, mas jamais deixarão de ser amarelas.



Dezembro de 2007.






Gláucia Lemos é autora, dentre dezenas de outros títulos, de Procissão e Outros Contos (FUNCEB, 1996).

Um comentário:

Letícia Losekann Coelho disse...

Nossa que linda paisagem...belas letras aqui colocada! Dá uma sensação de paz ler este conto..gostei muito!
beijos meus