Gerana Damulakis
Sei que os poemas devem ser lidos em voz baixa, sussurrando, mas este "Amar", de Carlos Drummond de Andrade, pede uma leitura para ser ouvida. Vale reparar na beleza do verbo "malamar" que, de saída, contraria a gramática. Justamente pela transgressão, "malamar" em lugar de "mal amar", nessa aproximação tão evidente com a maneira como se fala, como se diz, é que há o ganho, o lucro se dá: a consequência estilística é notável. O "malamar" é um amar de "qualquer jeito", sem atenção, sem empenho no amor.
Na segunda estrofe, "amar" se avizinha da palavra "mar" e, seguindo, aparece o "sal". O sal da vida é o amor. O amor é o tempero da vida, dá-lhe gosto e ao mesmo tempo traz-lhe algo de acre, agro, ácido. Já na terceira estrofe está o deserto, inverso do mar, só que continuamos amando, mesmo tendo feito o resumo emocional, abarcado o mar e o deserto, sentido a brisa marinha e o chão de ferro: "este o nosso destino: amor sem conta".
AMAR
---------Carlos Drummond de Andrade
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
in Claro Enigma
16 comentários:
Gerana, poema lindo lindo.
É mesmo para ser lido em voz alta.
Dá liçença que o leve (também) para o meu "quintal"?
Um abraço
cduxa
Linda a sua leitura do poema, Gerana!
Drummond não se despeja em lirismos, mas soube cultuar o amor. À sua maneira poética. Abraço.
E aí na terceira estrofe,
amar... um chão de ferro
que, claro, é Itabira.
Um abraço do SIDNEY WANDERLEY
SIDNEY: valeu! Abraço e saudades de mais poemas seus.
CDUXA: leve Drummond, sim. Ele é meu, ele é seu, ele é de todos que amam a poesia nascida na língua portuguesa.
Gerana, estou de volta. E esse amar de Drummond é divino, uma oração ao amor e à falta do amor. Vc sempre tão generosa, trazendo para nós só coisas boas.Abençoado ano para vc.
Lindo mesmo, Gerana. Beijo.
Perfeito!
"Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
"
como tá complicado encontramos isso não?
creio que hoje é mais ou menos assim, como pode uma criatura entre outra se não odiar...é uma pena.
Ps adorei a foto, gostaria de envelhecer assim calmamente em meu escritório
Já estava com saudade. Tenho andado afogada em reuniões e papelada, porém chegar aqui e ler este poema de Carlos Drummond de Andrade é uma maravilha de fim de dia! Gosto da expressividade contida do poeta que sempre se explicita em tropos poéticos refinadíssimos.
Beijinho
Olá, Gerana.
Ótima escolha sua.
Adoro esse poema. Acho que Drummond fala do amor além da felicidade, o que se se abre ao irracional e ao risco da dor do amor:
"amar o inóspito, o áspero, um vaso sem flor"
"a doação ilimitada a uma completa ingratidão"
Bonito e doloroso.
Abraço,
JR.
Amar a sede infinita é querer demais para a secura da solidão. Mas se é o que temos, Drumond está cheio de razão, amemos a sede infinita que a sede ainda é presença de amor desperdiçado.
Gerana, sei que não chega aos pés do Amar do Drummond, mas vou lhe deixar como um presentinho o meu
Amar
Vamos aconchegar-nos bem juntos um ao outro,
ouvindo o órgão do outono, na margem da noite.
A fonte se prostra e canta palavras de amor.
Nossas frontes estão douradas com o crepúsculo:
nós nos amamos com todo o ouro do crepúsculo.
Nossa casa floresce como um ninho na montanha.
Você tem a ternura nos olhos, onde eu mergulho.
Fiquemos parados, ouvindo a brisa entre os ramos.
Amar não se conhece: entra no corpo, com o sangue.
Alma é uma lamparina antiga que ilumina e enche
de sombras a casa, onde, sob o arco do mistério,
estamos juntos e não existe palavra que importe.
Vamos aconchegar-nos um ao outro, ouvindo a brisa.
Nós nos amamos e não conhecermos é o nome do amor.
Fiquemos parados, ouvindo o órgão da noite que chama.
(de Presença da Morte, 1991)
Um beijo.
Muito bem feito, José Carlos, um tom de quem fala para o outro, um tom especial para verso como: "Fiquemos parados, ouvindo a brisa entre os ramos". Adorei!
Grande Drummond, este poema é um clássico, e me identifico muito com ele. Grande abraço.
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