Gerana Damulakis
A crônica é um gênero riquíssimo, portador, antes de mais nada, da liberdade de expressão. Livre das amarras que a prosa ou a própria poesia acabam por ter que enfrentar, a crônica pode fazer fronteira com o conto, com a poesia, com o texto filosófico e, com tal eterna desculpa, o gênero, que se desenvolveu no Brasil, guarda uma fortuna de variantes, todas elas ligadas diretamente a seus escritores.
A história da nossa crônica revela que, apesar de originárias dos jornais e das revistas, seus autores viram desde muito cedo a necessidade de eternizar aqueles textos em livro. Assim, Ao Correr da Pena, de José de Alencar, é um volume que não apenas serve para contar tal história da crônica, mas e, principalmente, para comprovar que, mesmo sendo um texto datado, a crônica sobrevive décadas depois como crônica dos costumes. Exemplo é a intensa curiosidade pelas crônicas de Machado de Assis, hoje em edições várias, trazendo estudos cada hora mais aprofundados, revelando o lado mais solto do escritor.
Este século viu um desfile de cronistas, quase sempre escritores de primeira água em outros gêneros. Neste momento não se pode esquecer das exceções, ou seja, dos cronistas 100% cronistas, como Rubem Braga e o nosso Adroaldo Ribeiro Costa, ambos exercendo a crônica por algumas dezenas de anos como único gênero praticado. Até a atualidade, no entanto, o que se constata é o cronista que escreve primeiramente a sua contística, a exemplo de Hélio Pólvora, ou os seus romances como Carlos Heitor Cony e João Ubaldo Ribeiro — inclusive Luís Fernando Veríssimo, notadamente cronista, tem publicados pelo menos dois romances.
Houve época em que encontramos o poeta-cronista, como foram Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, enquanto na Bahia, exercitavam a crônica os poetas Ruy Espinheira Filho e Ildásio Tavares, só para citar dois. No sul do estado, Sosígenes Costa muitas vezes escrevia primeiramente o texto da crônica que viria a ser um poema logo a seguir, como bem se pode lembrar o que ocorreu com "Búfalo de fogo", poema do qual Jorge Amado fez constar algumas estrofes no livro São Jorge dos Ilhéus. Aproveitando para registrar a crônica que deu origem a tal poema antológico, há de caber registro também para o fato de que ela foi publicada na Revista Única, nº 15 do ano 1, de Salvador, Bahia, em 1º de maio de 1930, intitulada "Búfalo de Fábula", enquanto o poema data de 1928. É de ser assinalado que tanto a crônica quanto o poema são de índole descritiva: há a animalização metafórica da paisagem, o humor e o lirismo associados; há, inclusive, a característica tão sosigenesiana no gosto pela rima rara, inusitada e, sabemos, proposital. Todos os elementos do poeta Sosígenes Costa marcam presença na crônica poética, ainda assim, crônica.
Búfalo de Fábula
A Jorge Amado, ilheense que aprecia búfalo
Anoiteceu. Roxa mantilha suspende o céu do seu zimbório. Que noite azul! Que maravilha! Sinto-me, entanto, merencório. Dentro da noite Ilhéus rebrilha qual grande búfalo fosfório.
Estão as casas figurando umas corcovas de camelas. Longe, o farol, de quando em quando, luze no plano das estrelas.
Estou no cimo deste monte, a cavaleiro da cidade. Dentro da curva do horizonte, Ilhéus recorda, ao pé do monte, um grande búfalo bifronte com olhos rútilos de jade.
Anoiteceu. Tudo rebrilha. Sinto-me, entanto, merencório. A noite pôs sobre a mantilha negro adereço de avelório. Como as formosas de Sevilha, a noite vai para o desposório.
Não quis a lua, para o noivado da noite azul, brilhar qual jóia; pelo infinito constelado rodar a rútila tipóia.
Não quis brilhar para o noivado, a lua, Helena astral de Tróia. Não quis a lua, o rosto amado, boiar nos céus em que ela boia com um semblante decepado de uma princesa de Savóia. Dentro da noite, iluminado, despede Ilhéus clarões de jóia, qual grande búfalo encantado, com cem pupilas de jibóia.
Petracas beijam doces Lauras junto de pélago espalhante. As flores languidas restauras, ó vento amigo e sibilante.
Crio visões de lendas mauras:
Dentro da noite sussurrante pela canção das bandas auras, Ilhéus recorda neste instante, como talvez nas lendas mauras, um lindo búfalo gigante que, perseguido por centauras, por ter olhos de brilhante e ser mais rápido que as auras, veio agachar-se palpitante, ao pé do morro, entre as centauras.
Anoiteceu. Pede a mantilha o céu a noite, em doce rogo. O bravo pélago dedilha cantos mongólicos de Togo. Protervos ventos em mantilha, como cem eras em regougo, fazem da noite na Bastilha revoluções de demagogo. Ventos, ladrões de uma quadrilha, depois do crime, vão para o jogo. Dentro da noite, Ilhéus rebrilha qual grande búfalo de fogo.
Longe de falar sobre a "versiprosa", o que é preferivelmente necessário constatar é o "deslimite" da crônica, mas precisamente quando faz fronteira com a poesia, sem se apresentar como tal. Mantendo a narrativa, a tênue fronteira fica por conta da imagem poética, do lirismo, da nostalgia tão propensa a se fazer presente no texto, haja vista o exemplo supracitado. Mas, na maioria das vezes, o escritor não transformou sua crônica em poema colocando em versos o que antes se apresentava em linha contínua; deixou a poesia lá, pertencendo ao texto chamado crônica.
Quantas vezes o cronista Adroaldo Ribeiro Costa deu vazão ao seu lado poético e expôs seus poemas na espaço do jornal A TARDE? E é aí que se quer chegar: quantas vezes mais se pode encontrar esta tênue fronteira entre a crônica e a poesia nos textos de Adroaldo, embora as tais linhas contínuas? Tudo isso pode ser atestado na reunião de 200 das suas crônicas selecionadas pelo escritor Aramis Ribeiro Costa para o livro Páginas Escolhidas, da Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia. Aí, em textos que encerram um memorialismo nostálgico, a poesia não poderia ficar de fora por prejuízo da emoção e lá está ela, plangente, pungente, em pleno texto da crônica. No exemplo de "A Mesa Vazia", de 27/ 03/ 1975, tal memorialismo, lembrando, no caso, as comemorações da Sexta-feira da Paixão, quando era um dia singular na casa do cronista, deixa o texto prenhe de poesia: "Fiquei sozinho, sem nada que me alimente o corpo e o espírito, senão as lembranças do passado morto". É expressivo que, ao contrário dos autores que pretendem fugir de fazer poesia na crônica, Adroaldo deixe claro que esta é uma crônica evocativa da fase poética de sua vida; poética porque encantada e, assim, finaliza:
O relógio baterá amanhã as doze pancadas do meio dia, mas ninguém estará sentado à mesa. À sua volta, apenas saudades, e saudades não comem iguarias servidas em pratos: alimentam-se de corações que ficaram sozinhos...
Em Adroaldo Ribeiro Costa, os exemplos de crônicas que fazem fronteira com a poesia são muitos, apesar de ser necessário lembrar que ele, cronista plural, fez sua crônica chegar perto também do conto e tantas vezes exercitou a própria poesia com veros e rimas. Aqui o objetivo é colher a poesia no texto da crônica enquanto narrativa. Belamente poética é "Cantigas da Noite", de 22/ 04/ 1978, que já inicia com a sugestão de um crescendo poético: "A noite vai crescendo lá fora. E há uma noite a crescer dentro de mim", para terminar com duas frases mais belas ainda, quando "nessa noite, em minha homenagem, todas as noites silenciarão. Eu serei o próprio silêncio".
Rubem Braga é outro que, desligado de qualquer compromisso com uma obra de outro gênero, derramou um lirismo, do qual se colhe frases que se fazem versos. No entanto, seus poemas, publicados sob título Livro de Versos, na edição da Record, de 1993, mas que teve uma pequena edição em 1980, a pedido de artistas e poetas do Recife, reunindo apenas 14 poemas, os quais foram logo avisados que seria o primeiro e último livro de versos e sem cuidados do autor, são poesia de pequena importância. A poesia de Rubem braga está nas suas crônicas, nos seus mais de dez livros que reúnem quase mil crônicas das 15 mil que escreveu para jornais, revistas e rádio. Não há como não reconhecer poesia em "O pavão":
Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores: é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas. [...] Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! Minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
Já com um escritor reconhecidamente poeta pode ocorrer um fato curioso: no primeiro livro de prosa de Vinicius de Moraes, Para viver um grande amor, o autor coloca seu ponto de vista quanto ao lirismo da crônica, o qual tem uma relação mais próxima com o subjetivismo do cronista, ao contrário do que acontece com o contista ou o romancista. Na sua definição da crônica, sem esquecer que é uma definição de um poeta, ele mostra que a narrativa curta em cima dos fatos miúdos do cotidiano se vincula diretamente ao jornalismo. Parece um esforço em traçar limites para os espaços: a poesia no seu espaço, a crônica também. E no papel, como se deu a crônica de Vinicius de Moraes? De saída, o livro supracitado, é composto de crônicas e poemas. Por que estão juntas? A maioria das crônicas do poeta contam realmente um episódio sem notarmos qualquer poesia inserida, mas não seria Vinicius, poeta que foi dos mais poetas apesar do infeliz epíteto, que passaria incólume pelo olhar que busca poesia na sua prosa. A crônica "Poema de Aniversário" é pura poesia em linha contínua, embora o autor teime e finalize o texto, ele próprio plenamente poético, com "versos finais de uma canção que te dediquei:
'...dorme, que assim
dormirás um dia
na minha poesia
de um sono sem fim...'"
Enfim, a crônica alicia o escritor a miradas mais encantadas diante da vida, a reflexões poéticas sem sequer ter consciência disto e, menos ainda, sem ter consciência de que é neste deslize para a poesia que ele vai prendendo o leitor apressado: é pela gota de lirismo ao comentar o sempre terrível tempo em que vivemos, que a crônica ganha lugar cativo na manhã do cidadão, ao lado do café, talvez da brisa característica entrando pela janela, marcando a longa jornada do dia que começa.
2 comentários:
Gerana,
Adroaldo Ribeiro Costa é um dos exemplos de ilustres baianos que ainda não receberam homenagens à altura daquilo que representaram para a cultura baiana. Quantos não foram ouvintes assíduos de “A Hora da Criança” que ele apresentava na Rádio Sociedade da Bahia? Na minha opinião, Adroaldo tem para a Bahia a mesma dimensão que tem Monteiro Lobato para o Brasil. E, para mim, bastaria o fato de ser o autor do hino do meu tão mal administrado Esquadrão de Aço. Fiquei contente e me trouxe boas recordações este post.
Beijos
Good write-up, keep 'em comming
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