terça-feira, 23 de junho de 2009

O SENTIDO

Gerana Damulakis


Esta foto é da capa de um dos tantos títulos do poeta Luís Augusto Cassas. Não sei o número exato de livros já publicados, perguntarei ao poeta. Creio que tenho quase todos porque nossa amizade já vem de longa data e nossa troca de livros, poemas, conversas, idem.



O poema que segue abaixo foi lido por ele, por telefone, para mim. Pedi que me enviasse e agora compartilho. Nós, seus leitores, aguardaremos a poesia reunida que já urge ser publicada. Por enquanto, O Sentido.




O SENTIDO

Luís Augusto Cassas


qual o sentido

de se estar vivo:

viver os cinco sentidos?

acender a luz do espírito?

reedificar o paraíso?

tornar-se do todo amigo?

ser lírio ou narciso?


por que quando o sentido

a face vem mostrar

esconde-se o não-sentido

para o sem-sentido brilhar?


o sentido

é paisagem que aí está?

o não-sentido

é passagem que se abrirá?

o sem-sentido

é viagem sem lugar?


ad-finitum

é o universo:

misterium

tremendum

mas do precipício

seremos salvos

quando a essência

reencontrar o princípio


por enquanto da vida

só captamos os ruídos

mas o verdadeiro sentido

será definitivo

quando o que clama

desde jerusalém

irromper-nos à alma

com o seu amém

domingo, 21 de junho de 2009

O CONTO SERÁ SEMPRE O CONTO

Gerana Damulakis

A dinâmica da vida na era da tecnologia, com avanços dia a dia, já quer contaminar os conceitos na literatura. Talvez os conceitos precisem dessa contaminação. Apenas os conceitos, apenas as novas definições, apenas momentos, tudo apenas passageiro.

O conto ganha novas formas de se dizer que é conto. Dá até saudade daquela frase já tão batida de que conto é tudo aquilo que o autor chamar de conto. Atualmente ficou pior, a frase de outrora é uma frase inocente. Ficou pior, mas é passageiro. Passível de ser aceito mas, sabemos, não perdurará. Tudo na base do "agora é assim, agora já não é mais daquele jeito" é, na verdade, um instrumento facilitador para os menos hábeis.

O conto será sempre o conto: o grande conto, o texto que pega o leitor de jeito, não importa se a epifania ou a peripécia que surpreende. Como estou aqui escrevendo sobre o conto que será sempre O Conto, segue o final de um dos grandes contos do escritor Hélio Pólvora.

"Para onde vou? Perdi a minha última certeza. Sei apenas que é preciso remar. Devo estar no meio do rio, o medo vem de novo e me sufoca o peito. Ignoro qual a margem certa, não sei mais como voltar nem aonde ir. Estou remando para a noite definitiva ou para o lívido alvorecer?"

"Do Outro Lado do Rio" in Contos da Noite Fechada (Editus, 2004).

sábado, 20 de junho de 2009

"NOSSO" FERNANDO PESSOA

Gerana Damulakis


Tenho certas singularidades que nem eu mesma entendo, mas quem não as tem? Neste momento estou perplexa por ter comprado mais um livro com os poemas de Fernando Pessoa. Olho para o lugar onde estão volumes e mais volumes com a obra de Fernando Pessoa, a obra completa acompanhada de vários outros livros: edições da Cultrix, da Nova Fronteira, da Companhia das Letras, da Alfaguara, da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, da Editorial Estampa. Não tenho sequer a desculpa de que gosto de comparar traduções; quais traduções? São poemas de Fernando Pessoa! E acontece o mesmo em relação a Manuel Bandeira (deste, a quantidade de livros é imbatível!) e a João Cabral de Melo Neto.
Será que posso apontar o estudo introdutório como a causa da necessidade de ter um livro contendo os mesmos poemas que já estão na minha biblioteca? Parece que é plausível.
Não resisti a Fernando Pessoa – O Poeta Fingidor, da Editora Globo, incluindo o DVD dos 120 anos do nascimento do poeta (série da Globo News). Gostei muito das palavras de Claufe Rodrigues na apresentação intitulada “Fernando Pessoa, um poeta brasileiro?”. Ele mostra a nossa intimidade com Pessoa, como nós consideramos o poeta português, ao lado de Drummond, Vinicius, Bandeira, como nosso e diz: "(...) e o gosto mútuo pelo gerúndio não será a única explicação para esse caso de amor". Depois vem um texto de Carlos Felipe Moisés, “O poeta dos heterônimos”: outro prazer. É, acho que posso dizer que compro esses livros porque gosto tanto do ensaio crítico, do parecer da leitura, quanto dos poemas: gosto, enfim, da literatura sobre a literatura. Um outro olhar, agora para o lugar, na biblioteca, que guarda livros de ensaios críticos, vem confirmar a conclusão. Cada qual com suas idiossincrasias.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

BAIANO, ASSOCIAÇÃO, YACHT


Ildásio Tavares

Quando eu era menino, só existiam três clubes no mundo, Baiano, Associação e Yacht. Cada clube com sua turma, cada turma com seu jeito, as classes médias e altas da Bahia distribuíam-se nestas entidades como a forma mais sofisticada de lazer; a forma mais qualificada de divertimento, desde as tradicionais festas, carnaval, S. João, réveillon; aos esportes praticados com empenho e eficiência – o tênis, o basquete e o vôlei, na Associação e no Bahiano; a natação e o iatismo no Yacht.
Qualquer pessoa que se prezasse tinha que ser sócio dos três. Principalmente porque o ameno carnaval da Bahia se perfazia com os três. O carnaval começava com o corso da Associação no sábado, uma interminável carreata de carros sem capota e de jeeps, polvilhadas de belíssimas donzelas esparramadas por cima dos carros e dos paralamas devidamente lambuzados de cola e entupidos de confete, no ar uma revoada constante de serpentinas e o cheiro provocante dos lança-perfumes. Ah, o carnaval acabou com o fim do confete, pedacinho colorido de saudade, com o desaparecimento da serpentina; com a proibição do lança-perfume. Começava aí outra coisa.
Apesar de baixo, eu tinha mão certa no basquete e estava quase para ser sócio-atleta do Bahiano quando houve um endurecimento nos estatutos. Tinha sócio-atleta demais. Entrei para sócio mesmo aos 18 anos, frequentador mais das festas, bingos, e continuando no basquete com Patinho, (Roberto Lisboa), Marcelo Lisboa que tinha torcida própria – as meninas torciam por ele não pelo time, Deoclides Barreto de Araujo, Bob, Carlito Kruschewsky, Sheldon e seu irmão Leslie e mais as feras do 2° quadro: Fernando Lyra, Aron Kremer, Mimito.
O Bahiano de Tênis era um mundo: o aristocrático. No S. João,as donzelas ocultas por milhares de anáguas rodopiavam no salão circular nos braços ardentes de seus pretendentes, que ali mesmo começavam um périplo de paquera, namoro, noivado, casamento. Para o bem de todos e felicidade geral da nação. Mais tarde entrei para a Associação, atraído pela imensa piscina em cuja inauguração meu amigo Chiquinho Amaral mergulhou do terceiro trampolim e João Gilberto fez o show pelas mãos de seu amigo Coqueijo.
De todos, o mais encantador, o Yacht. Verdadeiro cartão postal engastado na montanha. Típico paraíso do bem viver baiano que pode desfrutar, desde a sinuca, ao iatismo, ao simples velejar, largar o pano e sair em busca do espelho azul da Baía de Todos os Santos ...O Yacht constitui-se numa zona de paz e de relaxamento encravada no coração da vida urbana, por sua localização privilegiada e perfeita integração no ambiente. Assentado com elegância e perfeição arquitetônica sobre o mar, o Yacht é na verdade um imenso veleiro que ancorou na baía e que lá ficou para júbilo de seus marinheiros. Detalhe a parte: o seu bondinho que nos traz do alto da montanha, integrando-se ao passado...
Que estamos fazendo de nossa tradição, minha gente? Acabaram com o Bahiano. A Associaçao resiste. Por Senhor do Bonfim, não toquem no Yacht, que é um patrimônio do mundo.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

PELA LINHA DO TREM

Gláucia Lemos



Não conhecia ninguém naquela cidade, se é que podia chamar de cidade, um lugarejo no qual cada fazenda distava da mais próxima às vezes um ou dois quilômetros. Onde a parada do trem era só uma plataforma de paredes sujas e um escritório instalado em um cubículo, e era dirigido por um velhinho magérrimo, que olhava quem chegava por trás de lentes pequeninas e embaçadas, mal escutava o que se falava com ele, e sempre esquecia os horários do trem.
Um recado do meu primo Jaime deu-me conta de que nosso avô Heron estava à morte e era preciso que fosse vê-lo.
Fomos criados pelo nosso avô, Jaime e eu, por circunstâncias que nunca nos ficaram claras, e, assim crescemos na fazenda como irmãos, nos apoiando e amando o velho Heron como se fosse o nosso verdadeiro pai, e sempre aos cuidados do fiel Francisco e de Dazinha, sua mulher gordíssima e calada.
Cada qual por sua vez deixou a fazenda e procurou em cidades grandes estudar mais que o bê-a-bá da escolinha que frequentávamos a umas boas léguas da fazenda, aonde meu avô nos mandava na boleia do caminhão que transportava as canas da lavoura do velho Heron. Assim, saímos para garantir o futuro, primeiro Jaime, depois eu, quando tivemos idade suficiente para decidir. Agora eu ensinava em uma escola na capital, e não sabia de Jaime que rumo teria tomado. Mas alguém, que eu não soube quem, deixara na secretaria da escola um bilhete de Jaime. Sem endereço para resposta, datado de três semanas anteriores, o bilhete era vago e só não deixava dúvidas da sua procedência, por ter sido assinado com o apelido pelo qual eu o tratava desde a infância, e somente eu assim o chamava: Um beijo do seu irmão Jami.
Tomei licença na escola e agora ali estava, naquele fim de mundo de onde partira vinte anos antes, para onde nunca mais retornara.
Era quase um deserto a porteira, distante da parada do trem pouco menos que um quilômetro, de pó e de sol a pino. Era a entrada para um mundo que se me tornara estranho. Parei em frente a ela e meu primeiro impulso foi retornar, tal o silêncio e a solidão que encontrei. Vi que aquilo era o cenário mais fiel para representação da morte. Até os pássaros que pipilavam pelo arvoredo davam a impressão que o faziam a medo, quase imperceptíveis. Pensei em retornar dali mesmo, mas me lembrei de que era preciso ver meu avô. De repente me dei conta de que gostava dele e que tinha sido muito ingrata por nunca ter voltado a procurá-lo, e me bastar com as vagas notícias pelo telefone do posto.
Parada na porteira, com os sapatos e as vestes carregados de uma poeira amarelada e fina, notei quando um homem, saindo de trás da casa, veio a meu encontro. Chegado mais perto, reconheci Francisco, o fiel caseiro em quem meu avô depositava toda a sua confiança, agora de têmporas brancas e rugas no rosto. Olhou para mim, ensaiou um ligeiro sorriso que só se apagou para dizer: - Menina, por que não veio antes?
Não retive o desejo de abraçá-lo, ele era a minha infância naquelas terras. Ele também me abraçou como se eu tivesse ainda oito anos, com a ternura da proteção antiga.
- E ele? – perguntei.
-Não pôde esperar. Por que não veio antes? Falou no seu nome e no de Jaime enquanto guentou falá. Dazinha é testemunha. Pediu pra eu tomá conta da menina.
- Só soube ontem.
- Chegou tarde. Já faz quatro dias. Vocês nunca se importaro com ele.
Fomos andando na direção da casa. Dazinha já se adiantara abrindo portas e janelas para ventilar. Agora estava na cozinha preparando o almoço.
Entrei para a casa onde deixara toda a minha infância e parte de minha juventude. Agora teria que decidir o que faria de tudo o que de repente passara a pertencer só a mim e a meu primo Jaime, que nos tínhamos como irmãos. E estava só, sentindo-me culpada.
- Jaime apareceu?
- Jaime veio quando o patrão tava mal. Mandei recado pelo maquinista meu conhecido que sempre encontra com ele. Mas teve que voltá, falou que era por causo do trabalho, disse que ia lhe avisar.
- Avisou. Mas agora estou sozinha, Francisco. Jaime não vai voltar a morar neste lugar.
- Não tá sozinha não, menina, tá comigo. Eu ainda posso protegê a menina. Eu mais Dazinha.
- Não sou mais menina, Francisco, tenho trinta e sete anos, mas não sei o que vou fazer com esta casa enorme, com a cana, com empregados, com tanta terra, não sei lidar com isso. E não mereço ganhar tudo isso de graça.
- Eu não vou deixá você se atrapalhar. Você pra mim ainda é a menina do patrão, ganhou porque era do patrão. E não vou deixar ninguém lhe fazê mal.
Achei estranhas as palavras de Francisco.
- Por que alguém me faria mal?
- A ambição, menina. O patrão deixou muita terra que agora é sua. E nesta terra seca, a terra do patrão tem uma riqueza que as outra não tem. Daqui até dezoito légua pela linha do trem, isso aqui é o melhor que existe. Esta terra tem uma nascente que nunca secou. Quando as nascente das outra fazenda fica seca, a daqui tá sangrando.
- É verdade. O rio. Eu me lembro que você nos levava para brincar no rio.
- Apois é isso. Enche os olho dos vizinho, das outra fazenda.
- De quem? Você sabe de quem?
- Tem um caseiro aqui, um tal de Tinho, que já andou falando que terra que o dono é mulher é muito fácil de homem tomar.
- Quem é Tinho?
- É o caseiro da fazenda Barro Grosso, duas léguas pra dentro, pela linha do trem. A cerca dela é agarradinha na cerca daqui. É muita terra de um lado e do outro.

À noite o escuro da fazenda era o mais escuro do mundo. Vi Dazinha arrumando a cozinha sozinha, sem Francisco. De manhã o procurei .
- Onde você andou, Francisco, desde ontem que não o vejo.
- Fui fazê um trabalho um pouco longe. Mas já vortei. Tou aqui todo inteiro, com a graça de Deus.
Naquele momento passava pela estrada um cortejo, com pouco mais de uma dezena de acompanhantes. Lentamente, conduziam um caixão enorme.. Alguns levavam pequenos ramos de margaridas e dálias. Outros levavam lenços ao rosto de vez em quando, enxugando o suor e um choro silencioso. O silêncio e a poeira amarela subindo e fazendo uma nuvem leve e incomodativa, quase encobrindo todos os que passavam..
- Para onde é que está indo aquele enterro, Francisco?
- Deve de ir pro cemitério da vila. Quatro légua pra fora, pela linha do trem.
- Você sabe quem morreu?
- Apois não é o dono da fazenda Barro Grosso, menina? Foi onte de noitinha.
- Francisco... De que morte ele morreu?
- Não sei direito não. Mas agora que já morreu, ele não vai mais achá que é fácil tomar terra que o dono é mulher. Eu acho que não, não é, menina?



Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta. Tem 33 títulos publicados. Em breve terá mais um título, nascido neste blog.
Foto: Linha do Trem, por felipelima, retirada do Flickr.

FÁBULAS DELICADAS


terça-feira, 16 de junho de 2009

IMORTAL DA ALB

Gerana Damulakis


Foi com enorme prazer que assiti a eleição de Antonio Brasileiro para a Academia de Letras da Bahia. Ainda na indicação, aproveitei que o poeta Ruy Espinheira Filho havia levado dois livros de poemas de Brasileiro e li em voz alta aquele que já foi postado aqui por duas vezes, o simplesmente maravilhoso poema "Das Coisas Memoráveis".

Agora, além de parabenizar o mais recente imortal da ALB, reproduzo abaixo mais um exemplo desta que é uma poesia visceral e, nas palavras da poeta Myriam Fraga, "dir-se-ia que a voz do poeta, filtrada pelo sentimento do eu lírico, amplia-se à medida em que encontra ressonância no sentimento do mundo".

LIÇÃO DAS COISAS
Antonio Brasileiro

Já vão florir as rosas de setembro, tu dirás,
e ainda não sei quem sou.
Terás nas mãos os ventos amainados,
os cabelos grisalhos, os olhos grisalhos -
mas não sabes quem és.
A alma é só um barco na vitrine.
Queres chorar, não choras.
Barcos só singram.

in Pequenos Assombros (Edições Cordel, 2001).