quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

MÊS AMARELO




Gláucia Lemos



O jardim de minha avó ficava em frente à casa, passado o portãozinho, e a acompanhava pela lateral, em longos canteiros de margaridas brancas e amarelas, até chegar à garagem no fim do quintal. Ali morria em uma humilde touceira de resedá. Sempre considerei, por conta própria, aquele resedá como se fosse um marco proposital para o fim de jardim. É uma das minhas fixas recordações de infância. Tinha o piso forrado de seixos roliços que faziam ruído semelhante a dentes gigantescos mastigando. Cada vez que eu pisava nas pedras – o que fazia todos os dias, tinha a impressão de que uma bocarra misteriosa, invisível, mastigava ruidosamente imensuráveis grãos de milho seco, ou talvez de pedregulhos. Era impossível transitar pelo jardim sem que se fosse denunciado para as salas e quartos, dos quais as janelas se abriam para a festa das cortinas alvoroçadas pelo vento. E todas se abriam justamente para o jardim. O jardim era uma festa de todos os dias, sem outro motivo que não o prazer de estar entre canteiros, observando a mastigação dos pedregulhos, que mudava o ritmo de acordo com os passos que eu ficava variando por pura diversão. Calada, provocando e ouvindo. Mania minha, muito guardada, jamais revelada a alguém qual valioso segredo.
Havia um pé de acácia amarela – não sei se devo dizer acácia amarela, talvez não exista acácia de outra cor, mas sempre falamos assim. Pois havia um pé de acácia amarela a um canto do jardim, bem na entrada. Debruçava-se para a rua por cima do largo portão verde. Em dezembro floria. Os cachos amarelos eram quase escandalosos, na imodéstia com que esbanjavam ouro e alegria, quando o vento os sacudia na viração vinda do mar, que lá estava, a uns três quarteirões da casa. Então caíam lá do alto pequeninos anéis que eu nunca soube se eram pistilos pecos, ou se tinham o propósito de sujar todo o piso, dobrando o trabalho do rapaz que o limpava.
Penso que foi aquele pé de acácia que me fez, toda a vida, achar que o Natal é uma festa amarela. Sempre tive o costume de atribuir forma aos nomes próprios, e ligar a cores todas as coisas e datas, com uma espontaneidade toda minha. Por isso, entre outras coisas que coloria, o Natal se me afigurou sempre amarelo, como o Carnaval, mais intenso talvez, vermelho e verde conjuntamente. Não sei se por isso, dezembro, que ressuscita todos os anos ora brilhante ora sombrio conforme a minha paisagem interior, na minha percepção aparece através da copa do pé de acácia, generosamente florida, sorrindo em ouro por cima dos seixos roliços do jardim de minha avó. Natal e galhos de acácia têm a proximidade mais íntima, incompreensível a quem deles eu falasse.
Um antigo jardim que hoje só existe no registro permanente ao lado de outros registros que não se apagaram, porque todo o vivido escreve uma história. No seu lugar, agora, há de se ter levantado um edifício de apartamentos, no qual crianças, aglomeradas em caixas superpostas, espiam, com olhos imensos e gulosos, por entre grades com as quais o progresso as defende da sanha urbana. Crianças que vêem Natais de cores metálicas, piscando e fosforescendo em néon, multicoloridamente artificiais, e nunca saberão que existem acácias que florescem nos dezembros. Ou floresciam. Nunca saberão que os jardins forrados de seixos roliços escondem gigantes e monstros enormes que mastigam pedregulhos toda vez que uma criança caminha por cima deles. Nunca saberão como os dezembros podem ter uma cor definida, e se tornar amarelos, e podem até pintar de amarelo todos os Natais de alguém, para sempre. Ainda que o amarelo tenha se tornado menos forte e menos brilhante, continuará sempre amarelo, pois as acácias também podem perder um pouco do vigor da floração com a passagem dos anos, mas jamais deixarão de ser amarelas.



Dezembro de 2007.






Gláucia Lemos é autora, dentre dezenas de outros títulos, de Procissão e Outros Contos (FUNCEB, 1996).

O FOTÓGRAFO

Carlos Vilarinho




Sempre quis ser escritor. Quando adolescente lia até com certo furor, mesmo não entendendo muita coisa. Na verdade ficava maravilhado com aquele mundo de letras reunidas num papel dentro de um livro. Ouvi uma vez de um fotógrafo que certo escritor russo delongava-se em explicitar o psicológico humano. Contou-me também uma história do tal russo, que não lembro como se pronuncia o nome. Era a história de um estudante que matava uma velha e se apoderava do dinheiro ou coisa que o valha. Aí, segundo o fotógrafo, o aluno rebelde passava toda a história do livro com remorso. Tentei ler, mas não entendi uma só palavra. Mesmo assim prometi a mim mesmo que seria escritor. O tempo passou e só consegui escrever cartas para uma mulher por quem estava apaixonado. Um dia ela resolveu sair comigo. A criatura, provavelmente pela força da curiosidade estava lá na hora marcada. Eu que cheguei atrasado, pois estava compondo um poema para entregar-lhe. Resolvi recitá-lo, quando abri a boca e consegui ir até a segunda estrofe, a mulher levantou-se num rompante, muxoxou e grunhiu. Foi embora e nem se despediu.
Em tempos conheci outro fotografo. Era um velho tarado. Disse-me que as imagens poderiam ser coladas, para, quem sabe, forjar algum acontecimento. Lembrei da pintura de Dom Pedro primeiro às margens do rio Ipiranga, gritando “Independência ou morte”. Aquela pintura seria burlesca. Lembrei disso, não que eu tenha disponibilidade de raciocínio, mas vivo nos bares dos universitários e ouço muita coisa que falam. Essa é uma delas. O fotógrafo velho e tarado convidou-me para ser seu assistente. Aceitei sem piscar. Ele não tinha uma das vistas em perfeita condição. Precisava então que alguém junto com ele e sob sua coordenação espreitasse as imagens fortuitas da rua. O velho fotografava e mandava para umas revistas. Sei que uma era para turistas. Não entendia porque ele, na maioria das vezes, escolhia umas neguinhas xexelentas para registrar. Não pelas neguinhas, mas pela xexelentologia. Uma vez ele me disse que eu era muito opaco, só porque fiz a pergunta em relação às neguinhas. Achei que era elogio e ri satisfeito.
Um dia ele me disse que se envolvera com duas mulheres distintas. Conheci uma delas. Era uma coroa também, meio pelancuda, mas dava um caldinho, pensei de imediato, depois mudei de idéia. A mulher era muito desbocada, falava cinco palavrões em cinco palavras. Ele, o velho fotógrafo, ria divertindo-se e achando que aquela balbúrdia lexical e semântica era a sensualidade latente da mulher independente. Esquisito. Eu ficava enojado quando aquela criatura aparecia enquanto trabalhávamos. Nunca mais bebi no mesmo copo do velho depravado. Em alguns dias ele me levou e mandou que tirasse fotos dos dois em letargia hipnótica do namoro. Tirei as fotos e eu mesmo as editei. Depois me disse que ia me mostrar as fotos que ele mesmo tirara com a outra criatura. Sempre que chegava à casa do velho me intrigava com a bateria de remédios que ele mesmo tomava. Era um colírio e alguns remédios para a pressão e para alergia. Com tanta droga não sei como agüentava beber do jeito que bebia. Disse-me também que quando acordava ressaquiado só podia beber chá. Perguntei, então, pelos remédios enfim.
— Não posso, alguns ali são de restrita responsabilidade, tenho que tomá-los de vez em quando por causa da alergia.
E assim fiquei sabendo que alergia mata. Nesses tempos destituí a idéia de ser escritor. Decidi ser fotógrafo. Até porque já dominava a técnica satisfatoriamente. E graças ao velho saía aos poucos do meu estado de burrice sólida que me acompanhava desde pequeno. O velho mandou que eu lesse alguns livros e imaginasse as imagens escritas pelo escritor.
— Fotografia também é assim, só que você capta a imagem, registra e ela aparece numa tela de computador.
— As imagens de um livro só aparecem em nossa mente, não é isso?
— Isso mesmo.
E, então, ao conversarmos ele começou a me mostrar umas fotos. Segundo ele, eram clássicas, publicadas em revistas antigas, “O CRUZEIRO” o nome de uma delas. Foi aí que, para meu desespero, havia uma entre tantas, a foto de minha irmã beijando a boca imunda e execrável daquele velho fotógrafo. Senti uma quentura por dentro, fiquei meio cego e não ouvi mais a fala do velho.
— Aaah! Essa é a garota que lhe falei, ela é mais nova do que eu e é quente, quente e quente... Parece um bule de café ou uma chaleira em chamas... Você entende metáforas? Não, é muito opaco para entendê-las.
Ali desconfiei do “ser opaco” e entendi que não se tratava do que eu achava que fosse. Aproveitei a minha falta de transparência e dissimulei o que sentia. Olhei nos olhos do velho fotógrafo e percebi um certo temor. Continuamos, então, a passar fotos e em seguida fomos editar algumas. Minha mente estava ainda confusa e aos poucos absorvi aquele ciúme fraternal que me tomava como uma onda. Não entendia como minha irmã, que não era nenhuma neguinha xexelenta, poderia dependurar-se nos beiços imundo daquele velho chupador de clitóris antigo. Uma vez, ele mesmo me contou uma história a respeito de um rei que matou o pai e casou-se com a mãe. Disse-me que a história era tão antiga que acabou virando complexo. Não entendi direito, mas agora me passava pela mente que aquele velho tinha idade de ser pai de minha irmã. Seria complexo também isso? Comecei a me sentir como o estudante se sentira, menosprezado e cheio de soberba arrodeando meu eu.
— Aqui, achei... Isso aqui é um convite para eu fotografar o grande evento que haverá no palácio dos governantes amanhã... Eu não sei quem é esse cara, mas li nos jornais que será um evento de primeira, é minha chance para erguer-me novamente e ir para o top de linha da fotografia, tenho que colocar minha foto nesse crachá e me apresentar, você vai comigo como assistente...
Tudo veio nitidamente à minha cabeça. Olhei o convite e lembrei-me de ter ouvido algo a respeito daquele evento na televisão. Deixaria de ser opaco. Esperei de fato o momento que colocaria em prática o plano que me tomou de assalto e teria que executá-lo.
— Meu remédio, garoto. Vamos, pegue o meu remédio...
O velho gostava de água bem gelada para entornar a cápsula. Servi-lhe e voltei para a edição das fotos. Ele morreu inchado. O edema de glote tampou a passagem do ar. Senti remorso como Raskolnikof. No outro dia apresentei-me ao palácio dos governantes com a minha foto no crachá. As fotos que tirei foram as mais elogiadas. Deixei de ser opaco e assumi o posto de fotógrafo exclusivo do palácio. Não sabia, mas minha irmã herdou o seguro de vida que o velho tinha feito e colocado o nome dela. Ela e a coroa pelancuda dividiram o dinheiro, as duas juntas extorquiam o velho safado. Não tive mais remorso, mas fiquei com raiva de minha irmã e da coroa. Comecei a achar que essa história de crime e castigo não existe. Só mesmo na cabeça de escritores...




02/12/2007







Carlos Vilarinho é autor de As Sete Faces de Severina Caolha & Outras Histórias (FUNCEB, 2005).

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

DEZEMBROS


Aramis Ribeiro Costa



A mente lerda, entorpecida, arrasta
Em lentidão o tempo, idéias, membros
A tarde é morna e a própria vida é gasta
Na lassidão completa dos dezembros.

Nas esperanças dos janeiros basta
A vida que desbasta dos novembros
E a tarde se acomoda, lenta e vasta
Na tessitura lorpa dos dezembros.

O mormaço conjuga clima e fados
E em planos inconclusos e adiados
A tarde dezembral planeja e lembra.

São tempos vesperais que sinos plangem
Enquanto idéias poucos ventos tangem
E a mente, mole, sem querer, dezembra.




Este poema está em Espelho Partido - Sonetos Escolhidos - 1971/1996 (FUNCEB, 1996).

UM PARAÍSO

Gerana Damulakis


Um ruído me faz desejar
um paraíso:
tempo e espaço,
um lugar que diminuísse
o mundo para alargá-lo.

Tenho tantos livros para ler,
tantas cidades para conhecer,
tanto pensamento por escrever.

Mas não vou embora pra Pasárgada,
não sei onde está,
nem conheço o rei de lá.


Este poema pertence ao livro Guardador de Mitos (Edição do Autor, 1993).

NORMAN MAILER ( * New Jersey, 31/01/1923 - + Nova York, 10/11/2007 )



Gerana Damulakis


Na Antiguidade, quando os gregos iam fazer o obituário de alguém, perguntavam aos que conheceram muito bem o morto: “Ele viveu com paixão?”. Esta era a única questão importante. A morte de Norman Mailer levanta imediatamente uma associação com a pergunta dos gregos porque a resposta sobre ele é, sem dúvida: sim, viveu com muita paixão. Participou como sargento do exército americano no Pacífico sul, nas Filipinas, na Segunda Grande Guerra, foi preso por protestar na frente do Pentágono contra a Guerra do Vietnã, formou-se em engenharia aeronáutica em Harvard, estudou na Sorbonne, foi boxeador, foi roteirista em Hollywood, ganhou prêmios como o George Polk, por reportagens, e como o Pulitzer, duas vezes, em 1969 e em 1980, com Os exércitos da noite (Record, esgotado) e com Canto do carrasco (Portugal: Editora Europa-América, 1983) e, ainda, o National Book Award. Gostava de briga, deu uma cabeçada em Gore Vidal por conta de uma crítica, deu duas facadas na segunda de suas seis mulheres, tentou eleger-se prefeito de Nova York pelo Partido Democrático, em 1969, opinou sobre tudo e sempre, até sobre a invasão do Iraque, o que fazia dele um escritor influente nas muitas polêmicas travadas.
Mais de 30 títulos compõem uma obra iniciada aos 25 anos de idade com Os Nus e os Mortos (Record, 1976), que o consagrou de imediato. Encontram-se na obra estereótipos da sociedade americana; os diálogos, algumas vezes, ao modo de Hemingway; a fragmentação do texto nos moldes do precursor John Dos Passos; o conteúdo pleno de debates sobre as conseqüências da guerra e, enfim, uma teoria: a teoria do hipsterismo, que está no artigo “The white negro: superficial reflection on the hipster”, de 1957, incorporado ao livro de ensaios Advertisements for myself (1959). Este ensaio é um panegírico ao tipo “inadaptado aos valores vigentes”; o que, de saída, estabelece a simpatia com os beats. Em Parque dos cervos (Record, 2001), Mailer leva o leitor para Hollywood no tempo do macartismo e das desilusões quanto à esperança por um futuro diferente: ou seja, no tempo em que o sujeito já não sabe como escapar e se vê entregue às prerrogativas sociais. Um sonho americano (L&PM Editores, 2007), de 1965, trabalha a dialética entre o hipster e o engessado pelas regras sociais.
A crítica encontra Mailer mais bem sucedido quando mescla ficção e realidade. Com o talento jornalístico, que o marcou como aquele que fez a imprensa alternativa, com a fundação do jornal The Villag Voice e com a fama que alçou seu nome a expoente do new journalism, chega ao “romance não ficcional”, segundo a expressão cunhada por Truman Capote. Um bom exemplo é Canto do carrasco, quando é contada a história verdadeira de um assassino condenado à morte. Mailer não utiliza apenas ocorrências históricas, mas também figuras reais dramáticas como em Marilyn, a biography, de 1973; em A luta (Companhia das Letras, 1998), de 1975, narrando a luta entre os boxeadores Muhammad Ali e George Foreman em 1974, ou em Evangelho segundo o filho (Best Seller, 2007). O último título, The castle in the Forest, de 2007, trata da primeira parte da vida do jovem Adolf Hitler, é mais um exemplo. Para finalizar, uma sugestão que garante trazer o clima norte-americano, aquele “american way of life”, é Homem que é homem não dança (Record, 2002): vale conferir.



Este texto é a coluna Olho Crítico do jornal Tribuna da Bahia, 01/12/2007.

SEM TÉDIO E SEM SAUDADE

Gláucia Lemos



Aqui não tenho ninguém comigo. Tenho a minha alegria particular. No meio da tarde apanho um chapéu e saio ao sol. Os gravilhões do jardim trincam sob meus pés, venço o jardim onde guardo os meus silêncios e venero as alamandas, as espirradeiras e as buganvílias, pela festa que me oferecem de graça. Caminho sobre areia da rua sem me incomodar com a poeira fina do verão.
A maré que subiu sem justificativa, inaugurando um dezembro qual se fora março, atravessou o cais e, se arrastando até a rua, quase interrompe o meu percurso. Passa límpida e rasa a água franzida, tangida pelo vento, e eu entro por ela, sem descalçar as sandálias, divertindo-me com essa rebeldia infantil extemporânea. Caminho ao ritmo do chap chap que meus passos orquestram, rompendo a corrente, leve, com a água me banhando as panturrilhas. É tão simples esse prazer simplório, mas agora é como se o tivesse pela primeira vez, e descubro o conforto da água fria na pele dos meus pés, que quase afundam na lama fina e clara e limpa da areia inundada. Arde o sol nos braços e no decote. Parece derreter o filtro que me protege. Fico cheirando a um coquetel de bronzeador e maresia, então sorrio de mim. Ando inclinada a me gratificar com esses pequenos grãos de satisfação. Eu já sabia que, às vezes, os grãos são mais saborosos que as fatias generosas. Por isso tento racionalizar o meu momento para possuí-lo inteiro. Raros são os que possuímos inteiros.
Minha filha está em um curso na Espanha, minha irmã em uma excursão com amigas, eu acabo de desistir de uma viagem à Argélia (alô Camus, sem por isso deixar de amá-lo fielmente como aprendi)). Estou plena e tranqüila nesse esconderijo do mundo, uma ponta insignificante do continente, tentativa de voluntário exílio, entre nativos de corpos tisnados e balaios de crustáceos, vivendo solidão sem tédio e sem saudade, a mais que perfeita solidão. E isto também se chama Liberdade. Esta solidão — a que quero reter, cada vez que atravesso a baía retornando, e me enfio indefesa na guerrilha urbana, na qual inevitáveis punhais despertam nas gentes o primitivo impulso de fugir aos predadores, nossos próprios semelhantes.
Aqui descubro o fascínio da fotografia, nas manhãs em que me aventuro pelos troncos cinzentos que a natureza retorce com arte somente sua; pelos arranjos eventuais dos barcos encalhados na maré-baixa, que nem sabem da harmonia e do ritmo que exibem em suas formas; no contraste dos galhos coloridos de hibiscos debruçados por cima dos muros em ruínas limosas. Descubro esse mundo e me apaixono, com a paixão guardada em pequeninos rolos de celulóide. É uma alegria nova, uma paixão solitária que se realiza em si mesma quase egoísta, refletindo para dentro de mim a criação que de mim foi descoberta, no encontro dos detalhes.
Retorno da padaria com os braços cheirando a pão quente. Pão de milho que ainda se faz com gosto de milho. Refaço o percurso da volta, com direito a novo mergulho de pés calçados, no transbordo da maré.
Há duas redes de madras esperando na varanda com a paciência monacal que só as redes nas varandas parecem ter. Chego-me, a concha me abraça. Capitu aproxima-se abanando a cauda e lambendo o sal dos meus pés que estão sobrando pela borda rendada, enquanto aguardo a revoada de periquitos que, a cada fim de tarde, atravessa o espaço no rumo do poente espalhando pelo ar uma longa harmonia barroca em vários diapasões.
Esvoaça uma garriça no beiral da casa, onde adivinho um ninho. Um ninho! É um berço de palhas, uma manjedoura... Natal é quase amanhã.
Fecho os olhos. Lembro-me de que ainda é tempo de acreditar. Acho que acredito em quê... Na tranqüilidade que pode ser. Ainda pode ser. Na alegria que é bonita e, algumas vezes, está guardada em rolos de celulóide. Sobretudo acredito na solidão perfeita. Sem tédio e sem saudade.



Gláucia Lemos é autora de mais de três dezenas de títulos. Entre os premiados estão O riso da raposa, A metade da maçã e As chamas da memória.



VESTIDO BRANCO


Carlos Vilarinho

Estava embaixo da mesa catando pimenta. Esparramou toda no chão, dizem que é um perigo. Contudo acho que naquele dia desmitifiquei a ação da pimenta, pelo menos sobre mim. Lá embaixo da mesa, de quatro, ouvi os passos. Não eram passos de salto alto, mas eram de mulher. Dizem também que mulher e pimenta se completam. Continuei a catá-las. A pimenta me tomou por inteiro, que entrei em transe picante, ouvi o tilintar dos talheres sendo lavados por minha sobrinha. Ouvi também a louça, presente de minha avó estilhaçar-se. Minha sobrinha achava que eu não sabia, mas era facilmente perceptível o estado de letargia que ficava quando fumava maconha.
— Ai, Amelinha, acho que preciso de um amante.
Voltei do transe imediatamente. Era a voz de Harmonia. Desde que a conheci, o nome me instigava a conversar com ela. Convertia-se num imenso vai-e-vem. Harmonia era uma mulher sexy, tinha trinta e um anos. Madura o suficiente para ser verdadeiramente mulher, diria Balzac. Conversávamos durante horas, sentia um comichão por dentro quando falávamos. Que mesmo do alto dos meus quarenta e quatro anos não sabia discernir com precisão o que aquilo representava. Harmonia uma vez fez queixas coléricas a respeito do marido dela. Segundo me disse ele a qualificou de uma pífia dona de casa.
— Que absurdo!!
Disse pensando em raptá-la.
— E ele não faz nada, Vadinho. Mal sabe fritar um ovo.
Isso tem tempo. Mas a mágoa ainda passeia dentro dela. Pois já me repetiu duas vezes.
Minha sobrinha Amelinha guardava os domingos na minha casa. Eu sabia o que ela fazia escondida. E ela me olhava todas as vezes que eu ia ao sótão, demorava horas e voltava aéreo. Longe dessa desconfiança interativa, tratava-se de uma excelente menina. Conversávamos sobre filosofia e linguagem. Amelinha sempre trazia uma novidade da faculdade que estudava. Comecei sem entender a amizade de Harmonia e Amelinha, dada a diferença de idade. Depois não foi difícil perceber que Harmonia precisava de alguém para conversar. Na verdade desconfiei que ela ia conversar era comigo.
Então de quatro, como estava catando pimentas, ouvi uma boa parte do desejo obscuro de Harmonia embaixo da mesa.
— Ai, Amelinha, não agüento mais aquele cara.
Vi então uma reunião de pimentas vermelhas, caíram todas formando imagem estelar. Aí vi também os pés de Harmonia. Estavam enfiados em uma sandália cheia de miçangas. Uma sandália marrom, toda enfeitada. Eram lindos os pés de Harmonia, tinha as unhas feitas e sem cutículas. Lembrei-me então que Harmonia só andava de salto alto. Me estiquei um pouco mais para a frente e vi a ponta do vestido rodado de Harmonia. Era todo branco. Vi também o começo das pernas, uma canela compacta e bem morena.
— Tio, já catou?
— Quem é?
—Sou eu, Harmonia.
Harmonia abriu um largo sorriso e um brilho piscou em seus olhos. Me ajudou a levantar e comentou até que eu estava mais magro. Fiquei contente e lembrei do chá de ervas emagrecedoras que Amelinha me presenteara. Eu tomava o chá em jejum logo quando acordava. Estava desconfiado que não estava adiantando nada quanto ao emagrecimento, até porque quando dava umas dez, dez e meia, abria a primeira cerveja depois de ter entornado uma folha podre, erva-doce. Comia moela e coraçãozinho de frango. Harmonia comentou ratificando meu peso. Olhei então para ela toda, vestida de branco e de sandálias de miçangas. Estava linda assim e me repreendia envergonhada. Então eu tirava os olhos de mira e deixava os de esconso.
— Não sabia que estava, Vadinho.
Ri satisfeito com o semblante de Harmonia e falei sobre as pimentas.
— Há uma lenda que pimenta no chão é sorte no amor. Dizem que um largo sorriso se abrirá e todo o universo, a partir do ardor da pimenta, se unirá em conjunto com dois casais próximos e que até então não sabem que se amam.
Falei com a cara mais deslavada e num blefe gigantesco. Lembrando instantaneamente de um autor romano, lá pelos séculos do império, que dizia o seguinte: “Qual homem experiente que não combina beijos e palavras de amor?”. Quase que repito a frase subitamente. Parei no meio da oração e olhei Harmonia rindo para mim, esquecendo do conjugue estorvo.
— O quê?
— Nada...
Disse-lhe que tinha escrito um novo poema. E ela mais do que depressa se ajeitou na minha mesa esperando para ouvir.
— Fiz pensando em você.
Blefei de novo, acreditando eu mesmo no meu blefe. Amelinha riu e como se estivesse tudo combinado entre elas. Saiu. Eu notei tudo. Lembrei das sandálias de miçangas e das canelas. Pedi para que pegasse água e quando se voltou para ir à cozinha, fitei em zoom ou raios-X se Harmonia usava algo por baixo do vestido. Era uma calcinha branca bem comportada. Mesmo assim suscitou meu desejo. E agora propositalmente com os olhos de mira, pus as vistas no decote. Harmonia encabulou-se e tentou esconder o volume, mas como? Mesmo encabulada Harmonia sorria e exalava uma suavidade plena que só as grandes mulheres são donas. E eu disse.
— Você tem duas qualidades raríssimas em uma pessoa, sobretudo porque és mulher.
Ela continuou encabulada, mas agora mais curiosa.
— Vou lhe dizer...
Harmonia se desnudou. Senti languidez em seu semblante e um orgasmo singelo de carência. Antes de dizer recordei as falas que tivéramos entre nós. E ali naquela hora percebi que ela só tivera mesmo vontade de ter orgasmo.
— Você é dona de uma autenticidade ímpar e o que é mais importante, talvez em conseqüência disso a sua sabedoria seja tão latente...
Queria continuar a falar algo mais, mas não tinha o que falar. Harmonia então me beijou suavemente passando a mão com cheiro de creme sob a minha face.
— ... e também é doce e suave...
Harmonia colocou o rosto bem em frente ao meu.
— ...e também é...
Sempre andava com metáforas e comparações, achava importante fazer link de uma coisa à outra.
— ...e também é morena como jabuticaba...
Ridículo, me senti. Mas foi tão simples, aliás, simplório, que singelamente Harmonia quedou-se aos meus encantos metafóricos. Me beijou, aí eu disse.
— Que homem experiente não combina beijos com palavras de amor?

25/11/ 2007
Carlos Vilarinho é autor de As Sete Faces de Severina Caolha & Outras Histórias (SCT, FUNCEB, 2005)