sexta-feira, 26 de março de 2010

WELLADAY,WELLADAY!

Gerana Damulakis

O poema abaixo foi retirado do volume Música de Câmara (Iluminuras, 1998), de James Joyce, tradução de Alípio Correia de Franca Neto. Primeiro livro publicado pelo autor de Ulisses, nada acrescenta, nada diminui, serve como uma curiosidade genética em torno da obra de Joyce, ainda que vista como uma poesia de segunda ordem.

IX
Ventos de maio, em dança mar afora,
Dançando lá numa giranda em glória,
De sulco em sulco, a espuma esvoaçando
Ao alto, até tornar-se uma guirlanda
De arcos prateados que atravessam o ar -
Não viram meu amor nalgum lugar?
------Malandança, malandança!
------Ah, ventos de maio em dança!
Amor é triste se amor está a distância!



Ilustração: Gisèle Freund, James Joyce lendo, 1939.

quarta-feira, 24 de março de 2010

SATISFAÇÃO GARANTIDA


Gerana Damulakis

Acompanho (lendo, é claro) todos os títulos de Enrique Vila-Matas (1948- ) que são traduzidos pela Cosac Naify e finalizo as leituras sempre completamente satisfeita. Por que? Por conta do estilo, é a resposta usual. Tudo é questão de haver empatia ou não com o estilo do escritor. O espanhol Vila-Matas me seduz, me envolve em suas digressões (ele gosta de criar uma vizinhança da ficção com o ensaio) e me deixa com uma sensação de que li o que gostaria de ter escrito. Mais um título que leio agora, ainda pelo meio, mas sabendo que é satisfação garantida: Doutor Pasavento (Cosac Naify, 2009).

Agora sou mais que um discreto literato escondido, um narrador de escrita privada que olha da janela para o vazio e para o mar, e que sabe que, se uma pessoa observa durante muito tempo o abismo, o abismo acabará por observá-la também.
Enrique Vila-Matas in Doutor Pasavento

domingo, 21 de março de 2010

UM POEMA (UMA LIÇÃO) DE SIDNEY WANDERLEY

UMA LIÇÃO
-----------Sidney Wanderley

Não tornes a mirar o que passou
– ensinam-no Orfeu, a mulher de Lot,
e Admeto, um dileto amigo meu,
que em lágrimas danou-se a contemplar
nossa cidade em chamas e desconsolo.
Um trem rubro e raivoso o alcançou.

Saudade é para dentro, não para trás.
Não tornes a mirar o que passou.
O que passou, passou
e não há mais.

quarta-feira, 17 de março de 2010

UM CONTO DE CARLOS RIBEIRO


DIANTE DO FAROL

Carlos Ribeiro

O homem, sentado numa pedra, diante do mar e do farol de Itapuã, remói velhas cismas, quase ele mesmo uma pedra, uma dessas rochas milenares sobre a qual, desde tempos imemoriais, o mar lambe e lava em seu vaivém incessante, acrescentando-lhe memórias ancestrais. Memórias ancestrais... De repente aflora-lhe à mente acontecimentos e imagens que pensava ter esquecido: a face de sua mãe quando lhe tomou nos braços pela primeira vez, a atmosfera mágica da casa em que viveu, em Itapuã, nos anos sessenta, seu primeiro sonho, o corredor que parecia não ter fim, o silêncio no quarto quando brincava no final da tarde, o cheiro dos sargaços, o cheiro das mangabas, o cheiro dos cajus e do mato molhado pelo sereno, uma lavadeira que cantava, o estranho e misterioso som das palavras, a espantosa descoberta da dor, a surpresa de estar alegre, a mesa do café, a família sentada à mesa, o despertador tocando na madrugada quando seu irmão mais velho saía para o serviço militar, em 1970, quando Lamarca aterrorizava os quartéis, o seu desejo de também servir o exército e que, depois (felizmente), perdeu, a vizinha que o amava, os carros passando nas ruas e nos viadutos, o cheiro do óleo em uma oficina mecânica em Nova Brasília, sua bicicleta, seu primeiro livro, seu primeiro carro, seu filho. Caminha com ele de mãos dadas pelo seu passado e de repente vê que ele é a criança.
Salvador, a cidade, a cidade ensolarada, que tanto aprendera a amar, dera-lhe o privilégio de andar de mãos dadas com a criança que foi. Mas de que adianta lembrar do que não é mais?, questiona. Prefere sair sozinho, caminhando, com as mãos no bolso, pelas ruas molhadas e voltar para casa e dormir. E sonhar com um homem que todos os dias percorre o mesmo caminho para nunca chegar a lugar algum. Mas eu posso chegar a algum lugar!, diz o homem. Veja esta casa, é a casa do meu avô, a mesma que conheci quando meu pai me levou pela primeira vez ao interior, em Conceição do Jacuípe, com seu DKW branco, que logo mais se tornaria um monte de ferro retorcido com marcas de sangue e gritos, gritos que nunca ouvi, porque eu não estava lá, naquele fatídico dia 7 de julho de 1973, no momento exato em que uma camioneta em alta velocidade saiu da estrada e acertou em cheio o carro, no qual estavam meu pai, minha irmã, de 11 anos, e meu irmão, de 3, numa curva de Amélia Rodrigues. Ele só teve tempo de dizer: “Nossa Senhora!” e se foi, e acho que seu último pensamento foi este: Nossa Senhora... e se lhe dessem tempo, pensaria também: “Isto não pode acontecer. Os meus filhos... Os meus filhos...” e o silêncio seguido de passos e de vozes das pessoas que se aglomeravam em volta do carro. Alguém fez massagens no seu coração, mas era tarde demais, e levaram as crianças para o hospital de Feira de Santana. E eu estou sentado na varanda da casa antiga do meu avô Tranqüilino – um sertanejo duro e espigado nos seus metro e oitenta, na sua careca e bigode alvos, na sua bondosa rispidez, na mão aleijada (por uma bomba de São João) que segurava o charuto sempre aceso, no jeito de olhar pela janela, vistoriando o tempo, no câncer que lhe destruiu a boca e a laringe, naquela ausência...
– Meu avô – digo eu na cozinha da casa rústica, olhando o reflexo bruxuleante do candeeiro nas paredes da casa. – Então eu sou obrigado a lhe dar essa notícia, que o seu filho, que o meu pai, que ele...
Oh, mas eu já não podia lhe dar a notícia. Meu avô já havia morrido muitos anos antes. Ele entra no recesso escuro da casa, lá onde fica a escuridão mais escura, e em toda a casa larga e extensa, em toda a casa com suas profundidades, em toda casa com suas memórias, em toda a casa com o seu obscuro passado, só há esse candeeiro que ilumina essa parede próxima a mim, e nada mais se mexe na casa além de uma lagartixa branca, quase transparente, que salta sobre uma das inúmeras formigas de asa que pululam incessantemente na parede – e tudo o mais é tão quieto e silencioso...
Veja: o carro ainda está lá, monte de ferros retorcidos, as frutas (jacas, mangas, laranjas, limas, limões) esparramadas no asfalto, e o carro – meu avô, meu avô, digo para o quarto escuro, mas ninguém responde –, e eu me lembro da alegria que tivemos, quando meu pai chegou com o carro, pela primeira vez. Morávamos ainda naquele apartamento apertado e infinito do Taboão, num tempo em que Salvador tinha aquele colorido suave de tons pastel, que saveiros e baleias passavam no horizonte calmo, que papa-figos aterrorizavam criancinhas, que a cidade mergulhava seus filhos em sua doce quietude.
Caminho para a varanda e vejo a lua branca cheia iluminando as roças de milho e os pés de lima e aquela jaqueira que ficava bem defronte à casa do meu avô. É tudo tão passado, penso. E, então, eu dormi, numa noite remota, na casa em Itapuã, onde veraneávamos, dentro do carro, na cama improvisada por minha mãe com cobertores grossos e travesseiros e lençóis, na garagem, e a minha mãe dizendo: “Deixe o vidro aberto para entrar ar”. E dormi, como Jonas na baleia, ali no ventre daquela estranha máquina que passaria, com o tempo, a fazer parte da família, juntamente com os passarinhos do meu pai, o gato, o cachorro, o cágado e a coleção de revistas em quadrinhos do meu irmão.
E eu não sabia ainda que eles não eram eternos.

Ilustração: Farol de Itapuã, fotografado pelo escritor Marcus Vinícius Rodrigues.

RETORNO DOS ENCONTROS LITERÁRIOS NA ALB


terça-feira, 16 de março de 2010

PARABÉNS PARA MANUEL ANASTÁCIO

Gerana Damulakis

O poeta Manuel Anastácio, do blog Da Condição Humana, está fazendo anos neste 16 de março. Um dos primeiros amigos que encontrei na blogosfera, sua poesia me encantou e encanta e a amizade virtual foi crescendo no mesmo passo que a admiração. Vale conferir no endereço, seu lugar não apenas para a poesia, também para suas indignações, pontos de vista acertados etc.
Manuel: tudo de bom para você, de coração.

GOSTO DE... ERVAS
-----------Manuel Anastácio

Em vez do ramo de flores
Que não te ofereço
Porque uma flor cortada
É um membro da terra decepado,
Ofereço-te um ramo de dores ardentes
Em amarelo iluminado.
São já tuas as flores
Em mim nascentes,
Porque em mim nada floresce
Que a ti não deva as sementes.


Dedicatória do poema: Para a Carla, como todos os poemas de amor que alguma vez escreverei. MA
18/ 10/ 2008
Ilustração: foto realizada por Manuel Anastácio.
Urze e Helianthemum nummularium. Monte do Merouço, Aldeia de Carreira, Sobradelo da Goma, Póvoa de Lanhoso.

domingo, 14 de março de 2010

MADRIGAL MELANCÓLICO

Gerana Damulakis

Um dos poemas mais belos de Manuel Bandeira. Um dos poemas mais intensos, talvez por conta da percepção, triste e bastante melancólica, do quanto é efêmera a beleza, do quanto o que vale mesmo é a vida mesma. Com seu talento ímpar para tocar o coração do leitor, Bandeira sempre seduz, mergulha em nossa essência, impregna a nossa mente de poesia.

MADRIGAL MELANCÓLICO
--------------------Manuel Bandeira


O QUE EU ADORO em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.

A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento.
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.


Bandeira, Manuel, "Madrigal Melancólico", in Poesia Completa e Prosa (Nova Aguilar, 1993).