quarta-feira, 1 de julho de 2009

CONTO BANAL


Waldir Freitas Oliveira



Num repente, dirigiu-se a uma agência de turismo e comprou uma passagem aérea para Paris.
Atravessou, a seguir, o Atlântico, meio adormecido, sem sentir qualquer tipo de prazer naquela viagem. O que ele realmente desejava, era transpô-lo viajando numa caravela, com altos mastros e muitas velas, levada por ventos furiosos, como haviam feito, em outros tempos, os navegadores do passado.
Aquela semi-escuridão na qual se achava imerso, sentado e mal podendo, tão estreito era o espaço entre as fileiras de cadeiras, esticar suas pernas, a bordo de um avião gigantesco, junto a mais de uma centena de pessoas que nunca vira antes, sem lhes saber os nomes ou que lhes fossem, ao menos, simpáticos, deixava-o deprimido e a considerar a situação em que se achava como se fosse um castigo. Bem sabendo que das trevas que cercavam o avião em que viajava, não havia qualquer possibilidade de emergir a figura insólita e gigantesca do Adamastor. E ele queria vê-lo.
Chegando a Paris, conheceu uma jovem morena, mignon e de cabelos pretos. Para sua surpresa, ela era brasileira. O que queria, no entanto, era encontrar uma francesa; ou uma espanhola, caso não estivesse uma francesa, disponível. Uma francesa do Midi, falando um francês forçando os erres, sabendo dançar o flamengo e sendo capaz de lhe contar histórias antigas sobre a Catalunha; ou uma espanhola que lhe falasse de Granada ou de Sevilha, tocasse castanholas, podendo mesmo chamar-se Carmen, disposta a cobri-lo de beijos e carícias, que segundo haviam lhe dito, somente as andaluzas sabem fazer.
Teve, porém, de contentar-se com a brasileira. E ela, em verdade, esforçou-se, para satisfazer seus desejos. Não eram, porém, as mesmas coisas que estavam a acontecer, comparadas que fossem com as que desejara.
Nas longas conversas que enchiam as noites dos seus encontros, nas quais as palavras e as canções eram mais freqüentes que os gestos e os afagos, ele descobriu que ela somente desejava um homem comum, que a possuísse sucessivas vezes; jamais um Quixote recheado de sonhos; viu então que ela jamais poderia igualar-se à Dulcinéia idealizada pelo engenhoso cavaleiro de la Mancha.
Seguiram, certa vez, para a Alemanha. Andaram por Munich, por Colônia e Frankfurt. Percorreram o Reno, do sul para o norte, da fronteira com a Suiça até a Holanda. Pararam mais tempo em Heidelberg, às margens do Neckar.
De longe, ainda na estrada, antes de entrar na cidade, viram o céu, de azul, tornar-se vermelho. Focos de luz imensos envolviam, por todos os lados, um imenso castelo e criavam aos olhos dos que o viam, no alto de um monte, na outra margem do rio, a impressão de ele estar a flutuar no espaço – pois não se avistava a encosta do monte sobre o qual se erguia e o separava das águas cobertas de espumas alvas do rio tumultuoso e veloz que por ali passava.
Sentados num banco ficaram a contemplá-lo por um tempo longo. Suas torres e os contornos dos seus muros desenhavam-se contra um céu artificialmente vermelho. E foi naquela ocasião que eles sonharam o mesmo sonho. Ele nela encontrou a francesa do Midi, a espanhola de Granada, uma valquíria evadia das sagas germânicas, uma fada encantada; e nele ela encontrou um cavaleiro andante, um amante incansável, um Don Juan que escapara de antigos romances, um Rolando furioso a lutar contra os mouros, nas altas montanhas dos Pirineus cobertos pela neve.
Subitamente, contudo, o castelo dissolveu-se no ar; não mais o viam; e o vermelho do céu tornou-se escuridão. Retornavam à realidade. Ergueram-se, então, do banco onde estavam sentados e, mudos e sem mãos dadas, regressaram ao quarto do hotel onde haviam se hospedado.
No dia seguinte, seguiram para a Holanda. E em Otterlo, no museu Kröller-Muller, onde se encontram expostos centenas de telas e desenhos de Van Gogh, permaneceram, pasmos e calados, durante mais de uma hora, frente a “Le Semeur au coucher de soleil”, olhando um camponês a espalhar sementes sobre o campo que o cercava, sob a luz de um sol estranhamente amarelo, fixo na linha do horizonte. O amarelo é a cor do encontro com Van Gogh. Depois que somos por ele envoltos, difícil dele será apartar-nos, a fim de regressar ao mundo real. Quando ele nos penetra, nos ultrapassa os sentidos e nos atinge a alma. E, imersos no amarelo, eles de novo sonharam.
De volta ao Brasil, ele recebeu a notícia da morte súbita da brasileira morena, mignon e de cabelos pretos, que não era francesa nem era espanhola. Percebeu, então, que somente uma parte dela havia morrido; outra permanecera viva. E ele a recordou, inteira, sentada ao seu lado, frente a um castelo, em Heidelberg e, de novo com ele, olhando, encantada, em Oterloo, um quadro de Van Gogh. Preferiu, então, volver ao sonho e fugir da realidade. Dirigiu-se até a estante, e suas mãos ainda indecisas dela retiraram o catálogo do museu onde haviam estado. Ele e ela o tiveram nas mãos enquanto percorreram seus corredores e suas salas. Colocou-o sobre a mesa e sobre a sua capa, a sua mão espalmada. E viu, então, surgir à sua frente, não a francesa do Midi, falando um francês carregado nos erres, nem a espanhola de Sevilha que até podia chamar-se Carmen, nem a valquíria germânica, mas “la petite Arlésienne” pintada, certa vez, por Van Gogh, agora cercada, por todos os lados, por imensos girassóis.


Waldir Freitas Oliveira tem dezenas de títulos publicados. Está na Antologia Panorâmica do Conto Baiano – Século XX, organizada por mim, com o conto “Jean Le Corse”.
De Van Gogh : “La petite Arlésienne”, oil on canvas, 1890. Kröller-Müller Museum, Otterlo, The Netherlands.

terça-feira, 30 de junho de 2009

DO BLOG PARA O LIVRO


Gerana Damulakis

Na Academia de Letras da Bahia, quando se discutia sobre blog e literatura, eu falei que o caminho será sempre o do livro. Alguém já disse há muito tempo que tudo deve acabar em livro (usando outras palavras, claro!).
Acompanho o blog de Saramago desde seu começo, http://caderno.josesaramago.org/, diariamente. Leio outra vez se não houver nova postagem.
Do blog para o livro, O Caderno: o lançamento se deu em Portugal. Fiquei daqui admirando as fotos (por Vítor Dinis Silva) do evento no http://bibliotecariodebabel.com/, de José Mário Silva. Pedi a foto que acompanha a postagem.
É a segunda vez que trago o assunto do livro O Caderno para o Leitora, sinal da minha impaciência básica quando desejo o que não possuo.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

NASCER É PERTENCER

Gerana Damulakis


Quando organizei a Antologia Panorâmica do Conto Baiano – século XX - (Editus, Coleção Nordestina, 2004), recebi uma diatribe por não haver incluído escritores que, apesar de não terem nascido na Bahia, viveram, ou vivem na Bahia. Quero, no entanto, tratar da polêmica por um viés pessoal e, contas feitas, como alguém pode se desvincular do pessoal? Um observador da literatura – para não usar a pomposa palavra “crítico” – é uma mistura de conhecimento e de gosto pessoal. Jamais abolirá o gosto pessoal, por mais que seja (e deve ser) imune às simpatias e às antipatias.
A questão ressurgirá com a Atualização do Conto Baiano: a questão relacionada ao lugar de nascimento. Haverá outras questões por conta das ausências na nova reunião. O tal viés pessoal traz uma lembrança cara e carrega uma certeza. É a certeza que faz com que eu fique firme no meu critério sobre a necessidade de ter nascido na Bahia para constar da antologia regional.
A lembrança cara: meu avô viveu décadas no Brasil – em Angra dos Reis (RJ), em Santos (SP), em Torres (RS) e em Salvador (BA). Falava português muito bem, porém, jamais conseguiu dizer o “ão”. Até já contei aqui o quanto eu era uma netinha chata, ficava mandando ele dizer “João”, e ele só dizia “Jon”, assim como “pon”, o que seria "pão" etc. Adorava a Bahia, a cor do mar de Salvador (também já contei aqui), não tinha o que dizer dos brasileiros que não fosse elogio. Na hora da morte – ele morreu em casa, com a família ao redor – foi falando e morrendo, falando e morrendo... todo o tempo em grego, como se nunca houvesse conhecido o português.
A certeza: não adianta, a pessoa nasce e morre pertencendo a determinado lugar. O blá-blá-blá de que não pertenço a isso aqui, nasci no lugar errado e variantes (que não eram o caso de meu avô em relação à Grécia) são infantilidades. Os problemas estão dentro, seguirão com a pessoa na mudança de lugar, sem dúvida. O inferno são os outros (de Sartre) é uma bela frase, só que o inferno não são aqueles que estão em certo lugar; o inferno somos nós mesmos, o que trazemos dentro.
Jorge Amado morou na França, morou no Rio de Janeiro. Jorge Amado é um romancista francês? Jorge Amado é um romancista carioca? Ele entrou para a história da literatura como romancista baiano, qualquer questionamento seria ridículo.

sábado, 27 de junho de 2009

SOB A CHUVA LÁ FORA

Flamarion Silva

A rua quieta. O carro vermelho parado bem rente ao muro vizinho. O gato “Lord” sobre o muro. Começou a chover fininho. O vento agitava com leveza as folhas da roseira branca de Lídia, que àquela noite ainda não voltara para casa. A chuva começou a cair mais forte e o ruído que fez sobre o carro vermelho parado bem rente ao muro vizinho não incomodou o sono de ninguém. A água da chuva fez um córrego bem no meio da rua. Um pedaço de papel foi levado pela água e foi se desviando de pequenos obstáculos. Destino trágico. A boca negra do bueiro o engoliu faminta. O vento ficou bravo de repente e deu um safanão na roseira branca de Lídia e ela esbateu-se contra o muro. Coitadinha. A luz cor de bronze do poste tremeluziu. De repente, a constatação: a casa do vizinho estava morrendo, de tristeza. Aquela, encostada à casa de Lídia. Suas paredes tão frias! Todo o tempo fechada e nenhuma voz a lhe humanizar. Morria sem gemidos, resignada. A casa de Lídia era amarela, na varanda havia plantas nos caqueiros e no teto balançava um bebedouro de passarinho. Sua borda era vermelha e florida. O portão da casa de Lídia era branco e de ferro. Quando aberto, emitia uma risada. Mas naquele momento ele estava com feição preocupada. Vez ou outra espichava os olhos para fora, ver se Lídia já vinha descendo a rua. Mas a maior parte do tempo ele preocupava-se mesmo era com a segurança da casa. O outro portão, o da casa colada à casa de Lídia, era de madeira e já não esperava ninguém. Outrora fora alegre e muito receptível. Nos vincos de sua madeira apodrecida, a memória de um senhor e uma senhora já velhos que mudaram de casa. Nunca mais voltariam. A partir daí teve início a morte lenta desse portão. – E esta chuva que não passa. Deus queira, Lídia tenha levado a sua sombrinha japonesa e automática que faz “flop!” quando se abre – o homem pensou – Lídia é prevenida. Marluce também toma lá os seus cuidados, mas a sua sombrinha não tem o mesmo espírito alegre que tem o da sombrinha de Lídia. Não se compara. Por esse momento um vulto surgiu crescendo na parede da sala, onde o homem se encontrava, encostado à janela. Era Marluce. – Você não vem dormir? O homem não se assustou com a presença furtiva da mulher. Não era raro ela invadir os seus pensamentos. – Olhe só esta chuva – ele disse. – Vou deitar – disse a mulher, e sua sombra foi-se escorregando pela parede, sumindo-se pelo corredor. Outra vez só, com seus pensamentos e aflições, o homem ansiava por ver Lídia descer a rua, abrir o portão e a porta de casa. Precisava ter a certeza de que ela chegaria bem. Minutos se passaram. O sono já lhe fechava os olhos. – Paciência – ele disse, já dando os primeiros passos em direção ao quarto, onde, com certeza, sua mulher já passeava por sonhos distantes. Mas algo lhe disse para esperar mais um pouco, pois logo Lídia surgiria lá em cima, talvez meio ensopada de chuva, e o portão se abriria com sua habitual risada. – Sim, sim – ele agora tinha certeza, Lídia descia a rua. A sombrinha pequena esforçava-se para proteger sua dona. Não era possível ouvir os passos de Lídia, mas dentro do coração do homem algo começou a bater mais forte. Lídia abriu o portão e ele sorriu. O homem escondido na janela também sorriu tranqüilo. Poderia, enfim, ir dormir. Mas antes, olhou mais uma vez a rua. A água da chuva começou a cair com mais intensidade. Um sentimento, que o homem não compreendeu, perpassou-lhe a alma. Pungentes gotas de chuva caíam sobre o vermelho metálico do carro encostado ao muro da casa defronte. Parecia haver se instaurado um tumulto na solidão das criaturas frias, quase mortas, daquela rua.


Flamarion Silva é autor de O Rato do Capitão, da Coleção Selo Letras da Bahia (SCT, EGBA, 2006).
Foto: "Portão de ferro", por Mónica (Monguinhas), retirada do Flickr.

DAS DELICADAS FÁBULAS

Gláucia Lemos


O visual do livro Fábulas delicadas - muito bem casado ao título - leva a pensar em um projeto para ser presenteado. Reportou-me ao Presente de um poeta de Pablo Neruda, tradução de Thiago de Melo, editora Vergara & Riba, SP 2001, que, não tendo embora reunido o melhor da produção de Neruda, traz um visual na capa como no miolo - ilustrado com pinturas em aquarela sobre papel couché - de um dos mais belos e bem cuidados livros de poesias que já conheci. É aquele volume que a gente olha e diz Lindo! E só depois é que folheia. Assim é a primeira impressão causada pelo Fábulas delicadas de Eliana Mara Chiossi, editora Escrituras SP 2009, recém lançado.
Contos, eu não diria que sejam. A autora tem grande talento para frases curtas, bem inspiradas e metafóricas. Às vezes sentimos uma história que se esconde sob a poesia das sentenças, histórias que não se permitem desvelar, como se tivessem medo ou pudor de romper a névoa sob a qual seu mistério se guarda. Não que a pequena extensão dos textos seja o que lhes negue ingresso ao nicho do gênero da contística. Existem, na boa literatura, inúmeros, incontáveis textos, que sendo embora de pequeno tamanho, não se lhes pode negar a classificação de contos, a partir de que são trabalhados com suficiente engenho na qualidade literária, por isso que nos oferecem obras de arte verdadeiras. Não são contos os textos de Fábulas delicadas porque se revestem de frases, que eu diria versos dispostos em formato de prosa, que mal permitem entrever um ponto de partida e não levam a um enredo , no que pese a agradabilidade da leitura, que conduza o leitor a acompanhar como tal. Senão em raros casos como em "Mãe" por exemplo, no qual um episódio se apresenta, e de uma maneira reveladora para a prosadora não mostrada o bastante neste primeiro livro, neste em qual a autora preferiu colocar-se no seu inspirado pendor poético.
Mais tendente para crônicas e muito mais para prosa-poética, o livro é dividido em nove partes, que a autora nomeou conforme lhe pareceu apropriado para os textos nelas enfeixados.
Sem embargo de não estar procedendo a uma crítica, e sim apenas esboçando uma resenha, não quero deixar de evidenciar o cunho de feminilidade que evola de todas as composições, quer no lirismo de entrega e doação ao ser a quem dedica seu amor, quer ao expressar a mulher no seu desassombro de iras, de angústias e de suas perplexidades. Tudo em que a autora se coloca traz uma carga emocional que, vindo às vezes cifrada nas imagens de águas, de pássaros, da casa, define a atávica e transcendental angústia feminina por libertação, e pelo conhecimento das suas próprias ansiedades e perguntas. Poucas vezes Eliana Mara Chiossi se entrega a filosofar em torno de coisas imergindo para a frieza do intelecto em confronto com o calor da emoção, mas o faz muito bem quando o faz, tal nas reflexões sobre o abacaxi e sobre a laranja. No geral, temos o ser poético se doando a seus momentos de comunicação, necessários e indispensáveis a todos os que vêm a este mundo portando dentro de si um outro mundo de mistérios do qual nem os próprios conhecem a exata decifração.

TRECHO DE "CRIME OCULTO"


Carlos Vilarinho


Naquele dia eu estava aborrecido. A mulher tinha cobrado mais atenção de minha parte, como se eu tivesse que procurá-la para amar novamente. Ora, foram trinta e cinco anos juntos, tivemos duas filhas já criadas e casadas. Cada uma com seu macho, eles que cuidassem delas de agora em diante. A mulher rezava ao deitar, rezava para pegar no sono, rezava para acordar, rezava para levantar... Diabo de tanta reza! Já não agüentava mais, então lhe perguntei o que ela fazia de fato na igreja se gastava toda a reza dentro de casa. Ela pensou que eu estivesse ciumando, ora, veja! Sorriu e dissimulou sensualidade pífia.

- “Ridícula!”

Aquilo me aporrinhou tanto que saí de casa tremendo de desgosto e nauseabundo. Além de ter tomado duas cápsulas de Rivotril. Louco de dispepsia, ouvi o grito da mulher ao sair.

“Estás sob a influência de Satanás, velho.”

E mais, em tom bíblico:

“Antes da ruína, vem o orgulho... Antes da queda vem a presunção”.

Assim cheguei à rua principal de Brotas, ofegante e enojado pelo aborrecimento causado por Regina Astrid que um dia foi uma bela mulher e levou-me para o altar. A moça com olhar de cio passou por mim e não pôs as vistas em mim como de costume...


Carlos Vilarinho é autor do volume de contos As Sete Faces de Severina Caolha & Outras Histórias, do Selo Editorial Letras da Bahia (SCT, FUNCEB, 2005).
Foto: "Satanás", por Erredé, reirada do Flickr.