
Machado de Assis morreu no dia 29 de setembro de 1908.
Aviso que a lista não segue a preferência maior enquanto os demais são menos inesquecíveis. Inesquecível é inesquecível, obviamente. Todos no mesmo patamar. O que fiz foi levantar da cadeira e passar rapidamente o olhar pelas prateleiras das estantes e quando o olhar parava, anotava o título, deixando, assim, que meu inconsciente ditasse. Quer forma mais confiável do que esta? Ledo engano. Pois que não parei primeiramente na frente dos russos (quantos romances inesquecíveis eles escreveram!) e o único russo que surgiu na memória foi Soljenitsin por conta de sua morte recente; pois que também nem cheguei na parte da literatura japonesa (que vem me seduzindo nos últimos três anos) e, que absurdo!, deixei de olhar para Hemingway e Fitzgerald e John Dos Passos e....
A LISTA (toda semana 10 títulos)
1- Daniel Deronda, de George Eliot
2- Auto-de-Fé, de Elias Canetti
3- O tambor, de Günter Grass
4- Retrato de uma senhora, de Henry James
5- Barragem contra o Pacífico, de Marguerite Duras
6- Eugênia Grandet, de Honoré de Balzac
7- Emma, de Jane Austen
8- Amsterdam, de Ian McEwan
9- O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago
10- Um dia na vida de Ivan Denisovich, de Alexandre Soljenitsin
TRECHOS DE O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago (foto).
Podia ser verdade, podia ser mentira, é essa a insuficiência das palavras, ou, pelo contrário, a sua condenação por duplicidade sistemática, uma palavra mente, com a mesma palavra se diz a verdade, não somos o que dizemos, somos o crédito que nos dão.
A mais inútil coisa deste mundo é o arrependimento, em geral quem se diz arrependido quer apenas conquistar perdão e esquecimento, no fundo, cada um de nós continua a prezar as suas culpas.
O jogo entre uma memória que puxa e um esquecimento que empurra é jogo inútil, o esquecimento acaba por ganhar sempre.
O mundo esquece tudo, o mundo esquece tanto que nem sequer dá pela falta do que esqueceu.
Não esquecer que todas as cartas de amor são ridículas, isto é o que se escreve quando já a morte vem subindo a escada, quando se torna de súbito claro que verdadeiramente ridículo é não ter recebido nunca uma carta de amor.
A solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz.
Descobri que Gláucia Lemos tem sonetos engavetados. Garanto que vou conseguir que ela prometa a postagem deles aqui. Adianto que são da década de 90, é apenas o que sei. Foto "4 Círios", de Oswilio, retirada do Flickr.
(sobre os fragmentos líricos de Safo de Lesbos)
Gerana Damulakis
Um ícone (eikón ou imago) significa, como um termo de retórica, a inclusão de uma condição ou requisito numa determinada figura. O ícone vai tomando força ao longo do tempo nos exemplos repetidos, na reiteração daquela essência que o qualifica. Assim ocorreu com a figura de Safo.
Em 1845, o poeta francês queria publicar As lésbicas; passados 10 anos, Baudelaire publica seu livro conservando as três peças malditas (“Lesbos” e “Les femmes damnées” I e II ), que justificavam o título anterior e, agora, apenas fazem parte de uma das subdivisões de Les fleurs du mal, na edição de 1857. A lésbica baudelairiana é um exemplo na formação do ícone sáfico que vinha sendo montado desde Ovídio.
Nos registros iconográficos e literários gregos, Safo é uma mulher bela e alta. Ovídio a transforma, dando uma visão oposta do ideal antigo: uma mulher baixa e de tez escura. O mesmo aconteceu com sua história: Safo lançando-se de cima de um rochedo, num gesto suicida está de acordo com o gosto romântico, mas na narração de Ovídio, a intenção de Safo era cumprir o ritual de purificação do amor excessivo que sentia pelo barqueiro Fáon, ressurgindo daquelas águas curada pelos deuses, pois, na Antiguidade, o amor era uma doença com sintomas evidentes no corpo enfermo.
Foi o século XIX que cuidou de imprimir a imagem de Safo como uma mulher decadente numa corrida alucinada em direção ao abismo. Baudelaire e Verlaine ajudaram na formação deste ícone, atraídos, eles também, por tal fantasia.
Atualmente, os helenistas estão mostrando que as apreciações tanto da obra quanto dos sentimentos de Safo foram falseadas, amiúde com base nos preconceitos ligados à moral da poeta. Esta teoria está alicerçada no testemunho do poeta Alceu, contemporâneo e concidadão de Safo, e do filósofo Platão: para eles, Safo era uma bela mulher pura de sentimentos, chefe de um culto devotado a Afrodite.
Este culto foi uma academia (a Casa das Musas) de música e canto para moças, suas alunas, chamadas de suas hetairas (companheiras) que recebiam lições de caráter moral, social e literário, e que colocava Safo numa posição de honra e respeito na sociedade de Mittilene, principal cidade da Ilha de Lesbos. Por tais fatos, na construção do mito sáfico, atribuíram-lhe amores homossexuais e, por fim, o termo lésbica, que vem diretamente da relação com a pátria de Safo.
A verdade, no entanto, está na consideração que a obra da poeta adquiriu desde Platão e depois, com Plutarco, que a comparavam com as Musas, filhas de Zeus e Memória, sendo Safo mais do que uma inspirada por estas musas, mas ela própria uma deusa: a “Décima Musa”.
Única mulher entre os poetas da Grécia Arcaica, sua obra foi mal vista pela Igreja Católica, guardiã da Antiguidade durante a Idade Média, que tratou de queimar quase tudo no ano de 1073, por ordem do papa Gregório VII. Porém, no século XIX, viu-se que o Egito também era uma fonte destas obras; parte das poesias de Safo foi encontrada em papiros egípcios embrulhando múmias de crocodilos. Contudo, era pouco: de uma obra que ultrapassou os 10 mil versos, temos apenas alguns fragmentos. Servem, ainda assim, para marcar o nascimento do lirismo e a separação entre este e a épica tradicional.
Safo substituiu os heróis e os feitos gloriosos por sentimentos pessoais, cantando o “eu” e suas emoções. Na lírica, o comum é o amor. Nada comum é a apresentação do amor fora da conhecida disposição dos opostos, o bem e o mal, ou melhor, o bom e o mau. Safo cria a fusão no termo glykypikron (doceamargo), para o amor que simultaneamente traz prazer e dor. Ela diz: “... de novo, Eros/ que nos quebranta os corpos e me arrebata,/ invencível serpente”.
Este epônimo glykypikron, dado a Eros pela primeira vez, definiu, por fim e na íntegra, o que designa a expressão de Eros: desejo violento e brutal que invade completamente a alma e, triste paradoxo, rouba a identidade ou consciência; por tal, doce desejo, desejo amargo.
E Safo canta os deuses e suas forças, canta epitalâminos, paixões, saudades, enfim, sentimentos governados por Afrodite e Eros, tendo como primeiro ato a sedução. Os gregos têm a sedução como uma arte; faz-se necessário exercê-la, urge encantar, fascinar o outro: é a Persuasão, filha de Afrodite:
Quem, de novo,
Deve trazer a Persuasiva para teu amor?
Uma pergunta da poeta, parafraseada há mais de dois milênios nos cantos de amor, na invocação de Afrodite e nas lágrimas de Hécade, a força do dor, que ajudou a criar o mito da vida e da morte de Safo. Seu salto do alto das falésias de Lêucade lembra Psyché, ao deixar os mortais, também de uma falésia, para juntar-se ao divino Eros. O único poema inteiro que nos chegou ou qualquer fragmento poético de Safo, seja um verso, seja apenas uma palavra, está sempre expressando a força e o poder de Eros sobre todos nós.
Foto, Eros e Psyché, de Canova, por Sore Lovepain, retirada do Flickr.