segunda-feira, 1 de setembro de 2008

SETEMBRO DE 1908: PARA MACHADO, O AMOR

Gerana Damulakis

Machado de Assis morreu no dia 29 de setembro de 1908.
Minha homenagem será trazer, sobre alguns temas, algumas frases do Bruxo do Cosme Velho (epíteto que, consagrado a Machado, ficou conhecido no meio literário por conta do poema de Carlos Drummond de Andrade, "A um bruxo, com amor", quando o poeta refere-se à casa número 18 da rua Cosme Velho, Rio de Janeiro, onde morou Machado de Assis.

Do AMOR, por Machado de Assis

Cada qual sabe amar a seu modo; o modo pouco importa; o essencial é que saiba amar. (Ressureição)

O amor é uma carta, mais ou menos longa, escrita em papel velino, corte-dourado, muito cheiroso e catita; carta de parabéns quando se lê, carta de pêsames quando se acabou de ler. (A mão e a luva)

O amor nasce muita vez do costume. (A mão e a luva)

Iaiá ignorava tudo; não soletrava o amor, aprendera-o de um lance. (Iaiá Garcia)

Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis (...). (Memórias póstumas de Brás Cubas)

Os melhores amores nascem de um minuto.
(do Epistolário, carta a Salvador de Mendonça)

domingo, 31 de agosto de 2008

OS 100 ROMANCES INESQUECÍVEIS

Gerana Damulakis



Quando Kátia Borges começou, lá no blog Madame K http://mmeka.wordpress.com/, a listar suas 100 músicas prediletas, fiquei com vontade de fazer o mesmo, listando meus 100 romances inesquecíveis e/ou os 100 poemas que não deixam meus pensamentos. Comentei com Kátia que iria fazer isto e ela me deu a idéia de destacar um, usando trecho do texto, sempre que enumerasse 10 deles, tal como ela faz com a lista: 10 de cada vez, e ela coloca o vídeo de uma das músicas.

Aviso que a lista não segue a preferência maior enquanto os demais são menos inesquecíveis. Inesquecível é inesquecível, obviamente. Todos no mesmo patamar. O que fiz foi levantar da cadeira e passar rapidamente o olhar pelas prateleiras das estantes e quando o olhar parava, anotava o título, deixando, assim, que meu inconsciente ditasse. Quer forma mais confiável do que esta? Ledo engano. Pois que não parei primeiramente na frente dos russos (quantos romances inesquecíveis eles escreveram!) e o único russo que surgiu na memória foi Soljenitsin por conta de sua morte recente; pois que também nem cheguei na parte da literatura japonesa (que vem me seduzindo nos últimos três anos) e, que absurdo!, deixei de olhar para Hemingway e Fitzgerald e John Dos Passos e....

A LISTA (toda semana 10 títulos)

1- Daniel Deronda, de George Eliot

2- Auto-de-Fé, de Elias Canetti

3- O tambor, de Günter Grass

4- Retrato de uma senhora, de Henry James

5- Barragem contra o Pacífico, de Marguerite Duras

6- Eugênia Grandet, de Honoré de Balzac

7- Emma, de Jane Austen

8- Amsterdam, de Ian McEwan

9- O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago

10- Um dia na vida de Ivan Denisovich, de Alexandre Soljenitsin

TRECHOS DE O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago (foto).

Podia ser verdade, podia ser mentira, é essa a insuficiência das palavras, ou, pelo contrário, a sua condenação por duplicidade sistemática, uma palavra mente, com a mesma palavra se diz a verdade, não somos o que dizemos, somos o crédito que nos dão.

A mais inútil coisa deste mundo é o arrependimento, em geral quem se diz arrependido quer apenas conquistar perdão e esquecimento, no fundo, cada um de nós continua a prezar as suas culpas.

O jogo entre uma memória que puxa e um esquecimento que empurra é jogo inútil, o esquecimento acaba por ganhar sempre.

O mundo esquece tudo, o mundo esquece tanto que nem sequer dá pela falta do que esqueceu.

Não esquecer que todas as cartas de amor são ridículas, isto é o que se escreve quando já a morte vem subindo a escada, quando se torna de súbito claro que verdadeiramente ridículo é não ter recebido nunca uma carta de amor.

A solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz.

21

Luiz Britto


Na palidez marmórea da tarde,
apenas uma xícara vazia
uma mancha molhada na mesa,
flores fanadas num vaso,
uma tarde tão fria

E um canto lúgubre de plátanos e
pântanos,
uma certa presença erradia,
dores inauditas e secretas,
que fazem caminho nas penedias

Uma viola parada, a cítara muda,
a harpa que hoje morria,
e o vento passando, como sempre
trazendo a espuma longínqua do mar
numa despedida cheia de bizarria


2 1 --- o vigésimo primeiro texto de VESTÍGIOS DA NOITE SOBERANA, livro de poemas. Foto de giusmelix, retirada do Flickr.

sábado, 30 de agosto de 2008

CERIMÔNIA DE CASAMENTO


Fred Matos

Para Sonia Sant’Anna


O vestido era o mesmo que não usou há vinte anos quando um infarto fulminante lhe matou o noivo nas vésperas do casamento. Todo esse tempo ficara protegido das traças e do tempo por bolotas de naftalina, guardado em uma caixa de papelão. Ainda no dia do enterro decidira que nova boda seria questão de tempo. Chorara mais a não consecução dos seus projetos do que pela vida de Miguel, perdida tão cedo.
Agora, a caminho da igreja, com meia hora de atraso como convém, se recorda de todas as trapaças que a sorte lhe pregou: aquele infarto que tardando alguns dias a teria tornado viúva, uma condição bem mais adequada às suas expectativas. O namoro com Rodrigo, sua única paixão, que lhe custou dez longos anos de adiamento do sonho, marcando e remarcando a data ao sabor de uma miríade de circunstâncias racionalmente defensáveis. Até o dia em que ele a trocou por uma colega de trabalho que o levou ao altar como quem vai ao cinema.
A Rodrigo se seguiu uma fase de namoros breves, pois resolvera não conceder a mais ninguém prazo maior que três meses para a decisão pelo enlace. Foram tantos os namorados que de muitos não consegue se lembrar. Um dia entendeu o conselho de Margarida, sua melhor amiga, que lhe havia dito que casamento é um investimento de longo prazo, como o de ações na Bolsa de Valores, e concluiu que talvez a sua ansiedade para recolher os dividendos fosse a causa do seu insucesso, afinal, excluindo o fato da morte prematura de Miguel e a canalhice de Rodrigo, fora sua a responsabilidade pelos malogros seguintes.
Analisando suas atitudes e resolvida a tratar o assunto com a lógica do mercado, Helena comprou e leu com afinco alguns compêndios de marketing e traçou seu plano estratégico focando seus esforços sobre um “target” formado por homens solitários na faixa etária dos 40 aos 50 anos, com boa educação e condições financeiras estáveis. Inteligente que é, investiu em um microcomputador conectado na Internet e foi à caça nas salas virtuais dedicadas ao seu público-alvo. Durante quase um ano dedicou diariamente quatro horas das suas noites teclando com desconhecidos. Marcou encontro com alguns e, tantas as decepções sofridas, já estava pra jogar a tolha quando conheceu Arthur, que preenchia todos os requisitos.
A igreja estava linda. À sua entrada os músicos iniciaram a valsa nupcial. Esperando-a no altar Arthur, cuja inacreditável timidez era responsável por uma cinqüentenária castidade. Ao seu lado, ainda firme, apesar de já beirar os oitenta anos, caminhava Raul, seu pai, vindo do interior para cumprir o ritual de entrega da filha ao noivo. A cerimônia decorreu sem surpresas. O casal retirou-se da festa à francesa para a lua de mel e o vestido voltou à caixa de papelão.
Naquele mesmo dia, enquanto o avião decolava para Miami, decidiu que nova boda seria questão de tempo: é um desperdício que um vestido tão lindo seja usado somente uma vez. A técnica para conseguir noivos já está dominada. Agora Helena quer aprender a se livrar de esposos.



Este conto pertence ao livro Melhor que a encomenda (FUNCEB, 2006) com modificações na revisão do autor. Foto de vamonessa, retirada do Flickr.

SONETO DA CELEBRAÇÃO


Gláucia Lemos










Hoje em nenhum momento te celebro.
Queimei-te a mirra da ternura extinta.
Renego enfim a crença que foi minha,
e não remanesceu à vã entrega.

Celebras tudo que és: não mais que penas
de cauda de pavão em cores tinta.
Resgato minha luz, eis que ela é minha,
inútil para ungir almas pequenas.

Não sou mais que uma luz de lamparina,
mas afugento a treva, a dor e o luto.
Eu sou o canto de uma cavatina!

Fecho o painel no qual louvei teu vulto,
e abro a janela. A brisa matutina
vai apagando os círios do teu culto.

1997 Salvador.


Descobri que Gláucia Lemos tem sonetos engavetados. Garanto que vou conseguir que ela prometa a postagem deles aqui. Adianto que são da década de 90, é apenas o que sei. Foto "4 Círios", de Oswilio, retirada do Flickr.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

O NASCIMENTO DO LIRISMO





(sobre os fragmentos líricos de Safo de Lesbos)

Gerana Damulakis




Um ícone (eikón ou imago) significa, como um termo de retórica, a inclusão de uma condição ou requisito numa determinada figura. O ícone vai tomando força ao longo do tempo nos exemplos repetidos, na reiteração daquela essência que o qualifica. Assim ocorreu com a figura de Safo.
Em 1845, o poeta francês queria publicar As lésbicas; passados 10 anos, Baudelaire publica seu livro conservando as três peças malditas (“Lesbos” e “Les femmes damnées” I e II ), que justificavam o título anterior e, agora, apenas fazem parte de uma das subdivisões de Les fleurs du mal, na edição de 1857. A lésbica baudelairiana é um exemplo na formação do ícone sáfico que vinha sendo montado desde Ovídio.

Nos registros iconográficos e literários gregos, Safo é uma mulher bela e alta. Ovídio a transforma, dando uma visão oposta do ideal antigo: uma mulher baixa e de tez escura. O mesmo aconteceu com sua história: Safo lançando-se de cima de um rochedo, num gesto suicida está de acordo com o gosto romântico, mas na narração de Ovídio, a intenção de Safo era cumprir o ritual de purificação do amor excessivo que sentia pelo barqueiro Fáon, ressurgindo daquelas águas curada pelos deuses, pois, na Antiguidade, o amor era uma doença com sintomas evidentes no corpo enfermo.

Foi o século XIX que cuidou de imprimir a imagem de Safo como uma mulher decadente numa corrida alucinada em direção ao abismo. Baudelaire e Verlaine ajudaram na formação deste ícone, atraídos, eles também, por tal fantasia.

Atualmente, os helenistas estão mostrando que as apreciações tanto da obra quanto dos sentimentos de Safo foram falseadas, amiúde com base nos preconceitos ligados à moral da poeta. Esta teoria está alicerçada no testemunho do poeta Alceu, contemporâneo e concidadão de Safo, e do filósofo Platão: para eles, Safo era uma bela mulher pura de sentimentos, chefe de um culto devotado a Afrodite.

Este culto foi uma academia (a Casa das Musas) de música e canto para moças, suas alunas, chamadas de suas hetairas (companheiras) que recebiam lições de caráter moral, social e literário, e que colocava Safo numa posição de honra e respeito na sociedade de Mittilene, principal cidade da Ilha de Lesbos. Por tais fatos, na construção do mito sáfico, atribuíram-lhe amores homossexuais e, por fim, o termo lésbica, que vem diretamente da relação com a pátria de Safo.

A verdade, no entanto, está na consideração que a obra da poeta adquiriu desde Platão e depois, com Plutarco, que a comparavam com as Musas, filhas de Zeus e Memória, sendo Safo mais do que uma inspirada por estas musas, mas ela própria uma deusa: a “Décima Musa”.

Única mulher entre os poetas da Grécia Arcaica, sua obra foi mal vista pela Igreja Católica, guardiã da Antiguidade durante a Idade Média, que tratou de queimar quase tudo no ano de 1073, por ordem do papa Gregório VII. Porém, no século XIX, viu-se que o Egito também era uma fonte destas obras; parte das poesias de Safo foi encontrada em papiros egípcios embrulhando múmias de crocodilos. Contudo, era pouco: de uma obra que ultrapassou os 10 mil versos, temos apenas alguns fragmentos. Servem, ainda assim, para marcar o nascimento do lirismo e a separação entre este e a épica tradicional.

Safo substituiu os heróis e os feitos gloriosos por sentimentos pessoais, cantando o “eu” e suas emoções. Na lírica, o comum é o amor. Nada comum é a apresentação do amor fora da conhecida disposição dos opostos, o bem e o mal, ou melhor, o bom e o mau. Safo cria a fusão no termo glykypikron (doceamargo), para o amor que simultaneamente traz prazer e dor. Ela diz: “... de novo, Eros/ que nos quebranta os corpos e me arrebata,/ invencível serpente”.

Este epônimo glykypikron, dado a Eros pela primeira vez, definiu, por fim e na íntegra, o que designa a expressão de Eros: desejo violento e brutal que invade completamente a alma e, triste paradoxo, rouba a identidade ou consciência; por tal, doce desejo, desejo amargo.
E Safo canta os deuses e suas forças, canta epitalâminos, paixões, saudades, enfim, sentimentos governados por Afrodite e Eros, tendo como primeiro ato a sedução. Os gregos têm a sedução como uma arte; faz-se necessário exercê-la, urge encantar, fascinar o outro: é a Persuasão, filha de Afrodite:

Quem, de novo,
Deve trazer a Persuasiva para teu amor?

Uma pergunta da poeta, parafraseada há mais de dois milênios nos cantos de amor, na invocação de Afrodite e nas lágrimas de Hécade, a força do dor, que ajudou a criar o mito da vida e da morte de Safo. Seu salto do alto das falésias de Lêucade lembra Psyché, ao deixar os mortais, também de uma falésia, para juntar-se ao divino Eros. O único poema inteiro que nos chegou ou qualquer fragmento poético de Safo, seja um verso, seja apenas uma palavra, está sempre expressando a força e o poder de Eros sobre todos nós.


Foto, Eros e Psyché, de Canova, por Sore Lovepain, retirada do Flickr.

CAMILA

Fred Matos


o que há de ser é chuva
é água lambendo a terra
é lama vedando caminhos
é limo na pedra molhada

na vidraça embaçada
Camila é uma sombra
não sonha com olhos de ver

cansada de tudo já não tem frio
a última lágrima faz muito secou
ainda na boca o travo do vinho

Camila não pensa o passado
azulcíssimo o olhar perdido vazio
não sabe das mãos
inventando outros caminhos

tecendo um invisível fio
de uma meada não coisa
tornada aqui em peixe
em pássaros que não voam

flores eternamente viçosas
mares impossíveis céus
inolvidáveis auroras

mãos ágeis automáticas
mãos crispadas máquinas
mãos autônomas exatas
tecendo sóis olhos azuis

tecendo escarlate relva
imaculada vidraça tecendo
onde Camila criança sorri

quando a chuva cessar
quando os grãos germinarem
quando brotarem gerânios
nas floreiras da sua janela
trarei pão e promessas
trarei lume e alento
trarei os sonhos que roubei
as mãos máquinas cansadas
serão mãos para carinhos
enquanto durem os suprimentos
enquanto o inverno não venha

enquanto nossos exaustos corpos
não se amoldarem à terra
e aos astros nossos olhos.



Fred Matos é autor de Melhor que a encomenda (FUNCEB, 2006). Foto de ***LEE***, retirada do Flickr.