quarta-feira, 27 de agosto de 2008

BALANÇO GERAL

Gláucia Lemos



Não sei se a vida vale a flor que espreito
Luís Antonio Cajazeira Ramos


O que sobra é a casca da fruta
é o rascunho do texto
é o recibo da conta
é a gota no copo
é o farelo no prato.

O que resta é a pegada no piso
é o bagaço na cesta
é um fio no pente
o batom no guardanapo
o suor na camisa.

O que fica é a ruga no rosto
é a névoa nos olhos.
Na memória que foge
uma lembrança morna,
e um laivo de remorso
boiando no vazio.



Gláucia Lemos é romancista, contista, cronista e poeta. Tem 33 títulos publicados. Foto “El bosc en uma gota”, de queropere, do Flickr.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Há um poeta em mim

Luís Antonio Cajazeira Ramos



Olhando a hora como quem sorrisse...
Fernando Pessoa


O poeta disse que há um Deus em mim...
E o disse sem dizer, ou não dissesse.
Ah, poeta, eu sou o Deus de tua prece,
erva daninha axial de teu jardim.

Melhor: eu sou o totem do esconjuro
que satisfaz a teu mundéu de fé.
Inda melhor: sou tudo que não é
senão o escuro que disfarça o escuro.

Que Deus te disse! Tua própria voz
abre horizontes que se fecham nós,
e o fado triste alegra-se em destino.

Eu creio, poeta (pois que Deus me disse,
da Sua efêmera e espectral ledice):
tu és meu bálsamo do desatino.



Luís Antonio Cajazeira Ramos tem cinco volumes reunindo seus poemas, sendo o mais recente Mais que sempre (7Letras, 2007).

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

BONEQUINHA

Flamarion Silva


Caso de doidice... efeito da lua... maré ruim... coisa de sangue... trabalho feito por Das Candeias de seu João de Eleutério, desprezada que jurou vingança... vento ruim que bateu... coisa de cabeça... treta do homem... mas, o fato é que, a menina morreu pelas festas. No mar.
O homem puxou a poita da canoa, resoluto, enquanto mirava o barco de seu Tião, lá longe. Depois não conseguiu despregar os olhos da menina. Ela, sentada no banquinho do meio, sorrindo, se transformando nos olhos dele, derramando um olhar de feitiço para cima do homem que a via com uns olhos perdidos. O barco de seu Tião já lá longe, a vela cheia, bojuda, deixando para trás a Gerumana e o Oitizeiro de seu Nino. Já lá longe vai o barco de seu Tião.
A menina descamba a cabeça para o lado e sorri boazinha, sorriso de lábios frescos, nos olhos negros o azul do céu e o mar refletem. Nada que transtorne a calma do dia. O homem rema lento. A menina lenta cresce, assim com uns olhos bêbados de se deitar no sono. Sobre ela o homem se ajeita, enquanto afinca já com força o remo na lama. De repente ela grita, um grito que se ouve dela gemendo na alma, na cama canoa. Ais de dor, ais da mulher em parto. A flor em botão que despetala.
O homem sem nome, filho do Cão, arregala os olhos pro mar, pro fundo da lama, e Ela é calma como o silêncio mudo. A boneca a boiar, traz a lembrança do mar da Costa, quando ventava as palhas do coqueiro e tinha-se de se manter o chapéu afincado na cabeça pr’ele não avoar. Diziam que os corpos infantís vinham da África, a dar na costa. Os navios que naufragavam. Era uma alegria só que nem se pensava no desastre, pois tão distante...
Mas, agora, que o corpinho de sua boneca no mar, agora que seus olhos se abriam e viam, o homem não se acreditou são. Levou as mãos à cabeça e gritou:
– Deus! Deus! Deus!
Mas logo parou. Pois o barco de seu Tião já vem lá, saindo à boca do rio.
O homem tem o remo envolto, firme nas mãos rígidas. O barco de seu Tião vem lá com sua vela branca. E o homem, resoluto, ergue bem alto o remo e, sob o céu azul, desce-o com toda a força sobre a cabeça da menina, rachando-a.
– Pai. Pai, ele ainda ouviu ecoar no mangue. E, de lá de dentro, avoou uma garça vermelha, assustadiça.
Caso de doidice... efeito da lua... maré ruim... coisa de sangue...



Flamarion Silva é autor de O Rato do Capitão (FUNCEB, 2006). Foto "Canoa", de Bolivar Trindade, retirada do Flickr.

domingo, 24 de agosto de 2008

HOMERO, GLÓRIA E LENDA



(sobre Homero, o homem e a lenda em torno)

Gerana Damulakis

É ampla a bibliografia sobre a questão homérica que, famosa, sobressai no campo da filologia clássica com várias teorias para explicar a formação dos dois poemas de Homero. Apaixonados, há os que defendem a unidade inflexível dos poemas e há os que argumentam, com base na análise estilística, usando a presença de elementos heterogêneos na intrincada trama, o comprometimento da unidade estrutural na escrita homérica. Dependente desta questão, surge outra: Homero existiu? Se a obra homérica é, como querem alguns, uma obra do povo, por outro lado é indubitável a intervenção de um poeta altamente dotado para distinguir em sua marca assuntos já tradicionais.
Então, houve um homem. A lenda envolveu de tal modo a figura deste homem que nenhum dado tem comprovação histórica. O local de seu nascimento é disputado por oito cidades helênicas. Não há dúvida de que os poemas foram compostos na Ásia Menor, mas em que região exata? Nenhuma cidade apresenta provas de ter visto as obras homéricas aparecerem. Nem tomando por base a língua usada pelo autor surge qualquer elucidação, porque Homero compondo no dialeto jônico não deixou de usar elementos eólicos. E, mesmo este fundo jônico tem modificações, além da mistura de palavras cretenses e cipriotas.
Enfim, a língua não deixa margem a conclusões definitivas. Há uma hipótese que previlegia Mileto, porque o fundador desta cidade era descendente de Nestor, e este Nestor ocupa lugar de destaque, por exemplo, n’A Ilíada, quando Aquiles rende-lhe homenagem. Portanto, por esta via, Homero escreveu no século IX a C., em um lugar jônico da Ásia Menor, provavelmente Mileto. Se ele era de origem nobre e se somamos a isto o fato de que era cego e deixou discípulos, os homérides, os quais os mais significativos viveram em Quios, então, parece que esta é toda a informação que chegou desde a antiguidade.
Quanto ao século no qual Homero viveu, parece não haver dúvida pelo menos por parte do historiador Heródoto, que escreveu no século V a C..: “Homero viveu apenas quatro séculos antes de mim”.
Também a época em que a Ilíada foi escrita tem lá seus argumentos: a queda de Tróia deve ter ocorrido 400 anos antes da composição do poema, pois os fatos eram tão conhecidos dos gregos que Homero sequer se preocupou em introduzir historicamente o público dando as razões da guerra e entra de chofre, começando A Ilíada no nono ano do conflito com a ira de Aquiles. Isto leva a crer que Homero participou do apogeu do movimento épico na Jônia do século VIII a C. e, daí, a tendência é concluir que ele poetou em Quios, tenha ou não nascido neste local.


Foto do "Mapa de Grecia na Idade de Bronce como se describe na Ilíada de Homero", por Image, retirada do Flickr.

PROSA POÉTICA DA CIDADE-MULHER


Carlos Vilarinho


Meus olhos passeiam errantes pela cidade. Palhaços contundentes, cheios de erotismo e palavras berrantes na ânsia do pão misturam-se às imagens dobradas da avenida. Dobraduras de Drummond. Essas ruas agitadas de passantes nuas, sem poetas. Entediadas e enternecidas, longínquas de pensamento. Nas ruas, Deus e o tempo estão presentes. Marcam em absoluto a resolução do homem em tornar- se solitário. Correndo para garantir um lugar ao futuro. Que futuro? A tumba.
Quando ela passou de salto alto e olhar de cama, o frenesi me assaltou. Segui com os olhos. Aquele amor estava nas notas reais de meu bolso. Pensei no texto. Prostituta e literatura, dois amores. Parentes, irmãs, uma dentro da outra. Uma possuía a outra. Afonia geral. Ela, somente ela, descia a ladeira do São Bento e levava consigo o sentimento do mundo. O poeta do condor observava. De repente o temporal desabou e tudo ao redor da praça ficou cinza. O mar ficou cinza e a imagem do forte estava salpicada em minhas lentes. Ela escondia-se sob as árvores do canteiro da igreja. As vozes ressurgiam apressadas. Eu, absorto, olhava a extensão da avenida chuvosa e os transeuntes pobres. Sonhava acordado e embaixo de chuva com o olhar de cama. Excitação que deveria ser efêmera, amor impossível. Benfeitora dos homens solitários.
Não há mais o tempo do carrinho de primavera que passava anunciando sorvete de mangaba, chocolate ou dust miller. Do bom pastel chinês depois da sessão no cinema Guarani. A praça não balança mais com o som de Dôdo e Osmar. A cidade cresceu para os flancos, abriu-se, adentrou-se na mata atlântica e paralela.
Os homens por sua vez, não cresceram em flancos. Tomavam rapidez em si mesmos. Os homens não lêem poesias. Por sua vez, a cidade é mulher, sempre fora mulher. A literatura é mulher. A mulher é um poema belo e inacabado. A cidade é vaidosa e a mulher cresceu mais que os homens. Algumas majestosas. Outras tão majestosas e pedintes de amor que levam um travesseiro na alma. Ela desceu a ladeira de São Bento, seguiu em frente e entrou numa casa de luzes. Bebi e fumei à cidade. Não vi amigos, só trovadores em eco e dança sensual. Os paralelepípedos davam topadas em pés trôpegos num terreiro católico. Chicotes que voam em capoeiras. Então com o limo das pedras e o odor dos becos mijados, já turva a visão em cravo de álcool, vi novamente o salto alto. Ela me olhava em compaixão. Eu lembrei do desejo, mas cambaleante, caí. Agachada e sem nada por baixo, vi o recorte talhado da cidade. Os homens apararam a mata, a mulher é vaidosa e a cidade cresceu mais que os homens.

Carlos Vilarinho é autor de As Sete Faces de Severina Caolha & Outras Histórias (FUNCEB, 2005). Foto de Salvador, Bahia, por LetoCarvalho, retirada do Flickr.

AMOR IMPERATIVO

Alexandre Core







Sei que no início era o Verbo
Num crescente ritmo constante,
Antes do futuro e desse instante,
Nascendo do passado que herdo.

Sabes também que não te espero
Cruzar por um caminho mais distante,
Enfrentar o frio, fio de prata cortante,
E seguir o rumo que eu mais quero.

E esse nosso amar-amei-amamos,
Verbo que tantas vezes conjugamos
No presente e pretérito do indicativo,

Guardado no peito, e que desta feita,
Sempre te encontrou mais-que-perfeita,
Continua me achando imperativo.



Alexandre Core assina o blog Anema & Core: http://anemaecore.blogspot.com/ . Tem entrada pelos meus "Favoritos".

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

AO LUAR



Ruy Espinheira Filho





Ao luar, a um dia só da primavera
oficial, eis que ele escuta a hera

densa de amor acariciando os muros,
abraçando-os, possuindo-os, nos escuros

e nos claros da noite. Ao luar e só,
ele sente mover-se, sob o pó

de antigas primaveras e outras luas,
rostos de casas, campos, gestos, ruas

que há muito desertaram os olhos velhos
que hoje o fitam de todos os espelhos.

Ouvindo a hera, as nuvens, o luar
que canta sobre as árvores e o mar

uma branca magia, ele vê, pálido,
sorrir-lhe o sorriso calmo, cálido,

de uma infanta em plena primavera
ao luar e ao som da hera de outra era.

E então, ao luar, enquanto escuta a hera
cantar, a um dia só da primavera

oficial, eis que ele enlaça a infanta
e dança uma mentira meiga e santa

como só sabe ser o que é história
contada nos boleros da memória.


"Ao Luar" pertence ao livro Memória da Chuva (RJ: Nova Fronteira, 1996).