sexta-feira, 30 de novembro de 2007

SEM TÉDIO E SEM SAUDADE

Gláucia Lemos



Aqui não tenho ninguém comigo. Tenho a minha alegria particular. No meio da tarde apanho um chapéu e saio ao sol. Os gravilhões do jardim trincam sob meus pés, venço o jardim onde guardo os meus silêncios e venero as alamandas, as espirradeiras e as buganvílias, pela festa que me oferecem de graça. Caminho sobre areia da rua sem me incomodar com a poeira fina do verão.
A maré que subiu sem justificativa, inaugurando um dezembro qual se fora março, atravessou o cais e, se arrastando até a rua, quase interrompe o meu percurso. Passa límpida e rasa a água franzida, tangida pelo vento, e eu entro por ela, sem descalçar as sandálias, divertindo-me com essa rebeldia infantil extemporânea. Caminho ao ritmo do chap chap que meus passos orquestram, rompendo a corrente, leve, com a água me banhando as panturrilhas. É tão simples esse prazer simplório, mas agora é como se o tivesse pela primeira vez, e descubro o conforto da água fria na pele dos meus pés, que quase afundam na lama fina e clara e limpa da areia inundada. Arde o sol nos braços e no decote. Parece derreter o filtro que me protege. Fico cheirando a um coquetel de bronzeador e maresia, então sorrio de mim. Ando inclinada a me gratificar com esses pequenos grãos de satisfação. Eu já sabia que, às vezes, os grãos são mais saborosos que as fatias generosas. Por isso tento racionalizar o meu momento para possuí-lo inteiro. Raros são os que possuímos inteiros.
Minha filha está em um curso na Espanha, minha irmã em uma excursão com amigas, eu acabo de desistir de uma viagem à Argélia (alô Camus, sem por isso deixar de amá-lo fielmente como aprendi)). Estou plena e tranqüila nesse esconderijo do mundo, uma ponta insignificante do continente, tentativa de voluntário exílio, entre nativos de corpos tisnados e balaios de crustáceos, vivendo solidão sem tédio e sem saudade, a mais que perfeita solidão. E isto também se chama Liberdade. Esta solidão — a que quero reter, cada vez que atravesso a baía retornando, e me enfio indefesa na guerrilha urbana, na qual inevitáveis punhais despertam nas gentes o primitivo impulso de fugir aos predadores, nossos próprios semelhantes.
Aqui descubro o fascínio da fotografia, nas manhãs em que me aventuro pelos troncos cinzentos que a natureza retorce com arte somente sua; pelos arranjos eventuais dos barcos encalhados na maré-baixa, que nem sabem da harmonia e do ritmo que exibem em suas formas; no contraste dos galhos coloridos de hibiscos debruçados por cima dos muros em ruínas limosas. Descubro esse mundo e me apaixono, com a paixão guardada em pequeninos rolos de celulóide. É uma alegria nova, uma paixão solitária que se realiza em si mesma quase egoísta, refletindo para dentro de mim a criação que de mim foi descoberta, no encontro dos detalhes.
Retorno da padaria com os braços cheirando a pão quente. Pão de milho que ainda se faz com gosto de milho. Refaço o percurso da volta, com direito a novo mergulho de pés calçados, no transbordo da maré.
Há duas redes de madras esperando na varanda com a paciência monacal que só as redes nas varandas parecem ter. Chego-me, a concha me abraça. Capitu aproxima-se abanando a cauda e lambendo o sal dos meus pés que estão sobrando pela borda rendada, enquanto aguardo a revoada de periquitos que, a cada fim de tarde, atravessa o espaço no rumo do poente espalhando pelo ar uma longa harmonia barroca em vários diapasões.
Esvoaça uma garriça no beiral da casa, onde adivinho um ninho. Um ninho! É um berço de palhas, uma manjedoura... Natal é quase amanhã.
Fecho os olhos. Lembro-me de que ainda é tempo de acreditar. Acho que acredito em quê... Na tranqüilidade que pode ser. Ainda pode ser. Na alegria que é bonita e, algumas vezes, está guardada em rolos de celulóide. Sobretudo acredito na solidão perfeita. Sem tédio e sem saudade.



Gláucia Lemos é autora de mais de três dezenas de títulos. Entre os premiados estão O riso da raposa, A metade da maçã e As chamas da memória.



VESTIDO BRANCO


Carlos Vilarinho

Estava embaixo da mesa catando pimenta. Esparramou toda no chão, dizem que é um perigo. Contudo acho que naquele dia desmitifiquei a ação da pimenta, pelo menos sobre mim. Lá embaixo da mesa, de quatro, ouvi os passos. Não eram passos de salto alto, mas eram de mulher. Dizem também que mulher e pimenta se completam. Continuei a catá-las. A pimenta me tomou por inteiro, que entrei em transe picante, ouvi o tilintar dos talheres sendo lavados por minha sobrinha. Ouvi também a louça, presente de minha avó estilhaçar-se. Minha sobrinha achava que eu não sabia, mas era facilmente perceptível o estado de letargia que ficava quando fumava maconha.
— Ai, Amelinha, acho que preciso de um amante.
Voltei do transe imediatamente. Era a voz de Harmonia. Desde que a conheci, o nome me instigava a conversar com ela. Convertia-se num imenso vai-e-vem. Harmonia era uma mulher sexy, tinha trinta e um anos. Madura o suficiente para ser verdadeiramente mulher, diria Balzac. Conversávamos durante horas, sentia um comichão por dentro quando falávamos. Que mesmo do alto dos meus quarenta e quatro anos não sabia discernir com precisão o que aquilo representava. Harmonia uma vez fez queixas coléricas a respeito do marido dela. Segundo me disse ele a qualificou de uma pífia dona de casa.
— Que absurdo!!
Disse pensando em raptá-la.
— E ele não faz nada, Vadinho. Mal sabe fritar um ovo.
Isso tem tempo. Mas a mágoa ainda passeia dentro dela. Pois já me repetiu duas vezes.
Minha sobrinha Amelinha guardava os domingos na minha casa. Eu sabia o que ela fazia escondida. E ela me olhava todas as vezes que eu ia ao sótão, demorava horas e voltava aéreo. Longe dessa desconfiança interativa, tratava-se de uma excelente menina. Conversávamos sobre filosofia e linguagem. Amelinha sempre trazia uma novidade da faculdade que estudava. Comecei sem entender a amizade de Harmonia e Amelinha, dada a diferença de idade. Depois não foi difícil perceber que Harmonia precisava de alguém para conversar. Na verdade desconfiei que ela ia conversar era comigo.
Então de quatro, como estava catando pimentas, ouvi uma boa parte do desejo obscuro de Harmonia embaixo da mesa.
— Ai, Amelinha, não agüento mais aquele cara.
Vi então uma reunião de pimentas vermelhas, caíram todas formando imagem estelar. Aí vi também os pés de Harmonia. Estavam enfiados em uma sandália cheia de miçangas. Uma sandália marrom, toda enfeitada. Eram lindos os pés de Harmonia, tinha as unhas feitas e sem cutículas. Lembrei-me então que Harmonia só andava de salto alto. Me estiquei um pouco mais para a frente e vi a ponta do vestido rodado de Harmonia. Era todo branco. Vi também o começo das pernas, uma canela compacta e bem morena.
— Tio, já catou?
— Quem é?
—Sou eu, Harmonia.
Harmonia abriu um largo sorriso e um brilho piscou em seus olhos. Me ajudou a levantar e comentou até que eu estava mais magro. Fiquei contente e lembrei do chá de ervas emagrecedoras que Amelinha me presenteara. Eu tomava o chá em jejum logo quando acordava. Estava desconfiado que não estava adiantando nada quanto ao emagrecimento, até porque quando dava umas dez, dez e meia, abria a primeira cerveja depois de ter entornado uma folha podre, erva-doce. Comia moela e coraçãozinho de frango. Harmonia comentou ratificando meu peso. Olhei então para ela toda, vestida de branco e de sandálias de miçangas. Estava linda assim e me repreendia envergonhada. Então eu tirava os olhos de mira e deixava os de esconso.
— Não sabia que estava, Vadinho.
Ri satisfeito com o semblante de Harmonia e falei sobre as pimentas.
— Há uma lenda que pimenta no chão é sorte no amor. Dizem que um largo sorriso se abrirá e todo o universo, a partir do ardor da pimenta, se unirá em conjunto com dois casais próximos e que até então não sabem que se amam.
Falei com a cara mais deslavada e num blefe gigantesco. Lembrando instantaneamente de um autor romano, lá pelos séculos do império, que dizia o seguinte: “Qual homem experiente que não combina beijos e palavras de amor?”. Quase que repito a frase subitamente. Parei no meio da oração e olhei Harmonia rindo para mim, esquecendo do conjugue estorvo.
— O quê?
— Nada...
Disse-lhe que tinha escrito um novo poema. E ela mais do que depressa se ajeitou na minha mesa esperando para ouvir.
— Fiz pensando em você.
Blefei de novo, acreditando eu mesmo no meu blefe. Amelinha riu e como se estivesse tudo combinado entre elas. Saiu. Eu notei tudo. Lembrei das sandálias de miçangas e das canelas. Pedi para que pegasse água e quando se voltou para ir à cozinha, fitei em zoom ou raios-X se Harmonia usava algo por baixo do vestido. Era uma calcinha branca bem comportada. Mesmo assim suscitou meu desejo. E agora propositalmente com os olhos de mira, pus as vistas no decote. Harmonia encabulou-se e tentou esconder o volume, mas como? Mesmo encabulada Harmonia sorria e exalava uma suavidade plena que só as grandes mulheres são donas. E eu disse.
— Você tem duas qualidades raríssimas em uma pessoa, sobretudo porque és mulher.
Ela continuou encabulada, mas agora mais curiosa.
— Vou lhe dizer...
Harmonia se desnudou. Senti languidez em seu semblante e um orgasmo singelo de carência. Antes de dizer recordei as falas que tivéramos entre nós. E ali naquela hora percebi que ela só tivera mesmo vontade de ter orgasmo.
— Você é dona de uma autenticidade ímpar e o que é mais importante, talvez em conseqüência disso a sua sabedoria seja tão latente...
Queria continuar a falar algo mais, mas não tinha o que falar. Harmonia então me beijou suavemente passando a mão com cheiro de creme sob a minha face.
— ... e também é doce e suave...
Harmonia colocou o rosto bem em frente ao meu.
— ...e também é...
Sempre andava com metáforas e comparações, achava importante fazer link de uma coisa à outra.
— ...e também é morena como jabuticaba...
Ridículo, me senti. Mas foi tão simples, aliás, simplório, que singelamente Harmonia quedou-se aos meus encantos metafóricos. Me beijou, aí eu disse.
— Que homem experiente não combina beijos com palavras de amor?

25/11/ 2007
Carlos Vilarinho é autor de As Sete Faces de Severina Caolha & Outras Histórias (SCT, FUNCEB, 2005)

sábado, 24 de novembro de 2007

LUNARIS

Gerana Damulakis




Carlos Ribeiro é experimentado contista e romancista, só para ficar na literatura e deixar o jornalista um pouco longe dos comentários desta coluna. Lunaris (EPP Publicações e Publicidade, 2007) é seu mais recente romance; simplesmente não há como ignorar o quanto é instigante sua leitura. Ir descobrindo quem é o personagem, para qual lugar caminha, esta é a grande chave do romance. A epígrafe é de Stanislaw Lem, autor polonês consagrado no século XX como grande nome da literatura científica, cuja obra mais importante e conhecida, Solaris (Relume-Dumara, 2003), é de 1961 e hoje é tida como um clássico da ficção científica, já com versão cinematográfica. Solaris é um planeta com órbita entre dois sóis, tendo como exclusivo ser vivo um oceano inteligente, responsável pela existência do próprio planeta. Quem deseja que façamos o paralelo com Lunaris é o próprio autor, pois há aqui mais do que sugestão, há indicação explícita: “Este lugar — que chamava de Lunaris, numa referência ao romance Solaris, de Stanislav Lem —, era uma forma especial de pensar”. Em Solaris, o psicólogo Kris Kelvin vai à estação para socorrer os cientistas que estudam o planeta inteligente. O que se passa é o seguinte: os tripulantes ficam espantados porque imagens de seus próprios pensamentos são corporificadas pelo oceano. Kelvin recebe, inclusive, a visita de sua mulher que se suicidou há 10 anos. Não há propriamente um diálogo entre as duas obras, a de Lem e a de Ribeiro: antes, há uma ponte, uma obra e sua ligação com a outra, tal como ocorreu com o romance O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati (Nova Fronteira, 1984) e o poema de Konstantinos Kaváfis, “À espera dos bárbaros”, ambos de um lado da margem, enquanto do outro está o romance homônimo do poema, que J.M. Coetzee, Prêmio Nobel de Literatura de 2003, escreveu: entre as obras uma bela ponte.
Voltando à leitura de Lunaris: para Alberto, personagem de Carlos Ribeiro, basta lançar uma garrafa ao mar, ou jogar um aviãozinho de papel ao ar, que prontamente é atendido e visitado por Hélio, habitante de Lunaris, pois que este lugar é assim como uma possibilidade. Em meio ao dilema entre viver para trocar lâmpadas e comprar pão, ou viver numa dimensão, digamos, mais elevada que o reles dia-a-dia da humanidade, Alberto entra no ensaio das idéias, discutindo literatura, nomes e valores, mitos como Glauber Rocha para, mais uma vez, sentir-se com vontade de escapar. Estes são ótimos momentos.
Quando se desloca para outro plano, Alberto vislumbra uma vida que pode ser, mas no final — e é um grande final — ele se vê prestes a ter que optar. Nada mais pode ser dito aqui sem causar prejuízo na leitura. No total, o oceano de Solaris é, em Lunaris, o próprio Alberto, haja vista ser ele quem “refaz pessoas, reconstrói acontecimentos, elimina todos aqueles que o aborrecem”, na medida em que sabe como escapulir de um mundo para outro.
A estrutura do romance é muito bem lograda, com capítulos curtos que vão num crescendo de interesse para o leitor. Chega a ser ousadia dizer que neste crescendo, cresce também o escritor — ousadia, pois Carlos Ribeiro já é portador de uma obra importante —, mas é notório que Lunaris confirma a competência da arte de Carlos Ribeiro.

Este texto é a coluna Olho Crítico da Página Aberta do jornal Tribuna da Bahia, 24/11/2007.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

"ESTOU FARTO DO LIRISMO..."



Gerana Damulakis


É fácil constatar que a crítica literária, tal como a crônica, sofre por ser datada. Ressalva feita para quando o autor está morto, portanto a obra concluída e, no extremo, sem riscos de que apareçam títulos póstumos. O fato é que avaliar um escritor em plena produção carrega uma gama de equívocos que apenas o futuro apontará.
Fica patente quando se pode averiguar isto num livro como A Leitora e seus Personagens, daquela que talvez tenha tido a maior lucidez analítica na crítica brasileira do meado do século XX: Lúcia Miguel Pereira. O brilho de seu pensamento, nas décadas de 40 e 50, percorreu as obras das mais diversas correntes literárias do país. Com uma cultura invulgar, uma bagagem de leituras invejável e uma percepção crítica como poucos, Lucia Miguel marcou seu lugar como militante na imprensa literária. Mas nada disso evitou o erro que só o tempo, implacável, acentua.
A leitura da reunião de textos críticos deixa evidente um caso interessante. Trata-se da avaliação dos, então, últimos poemas de Manuel Bandeira, vistos pela crítica no Jornal do Comércio, em 1936. Quase uma diatribe, não fosse seu cuidado para com o poeta amigo, Lúcia diz encontrar "uma nova maneira" na poesia de Bandeira. Tal maneira nova seria a ironia, avaliada como que uma negação de tudo aquilo em que o poeta acreditara, "alguma coisa de tenso, de voluntariamente desprendido". E conclui: "essa é a grande modificação". Então transcreve uma das estrofes de "Poética", poema que consta do livro Libertinagem: "Quero antes o lirismo dos loucos/ O lirismo dos bêbados/ O lirismo difícil e pungente dos bêbados/ O lirismo dos clowns de Shakespeare./ — Não quero mais saber do lirismo que não é libertação".
A crítica vê na ânsia de libertação uma obrigação do poeta em zombar de tudo e não se deixar dominar por coisa alguma, pois a ironia está "corroendo sua inspiração". Ora, tanto a poesia posterior de Bandeira quanto o próprio Manuel em seu livro Itinerário de Pasárgada, sua autobiografia literária, atestam que o lirismo não deixou os versos do poeta de Estrela da Tarde nem o poeta teve tal intenção. A feitura do poema estava intimamente ligada ao momento modernista, daí um grito, não contra o lirismo, mas contra certos tipos de lirismo: "Estou farto do lirismo comedido/ do lirismo bem comportado..."
Imagine-se se fosse levado a sério o fim do lirismo em favor da ironia absoluta. Enfim, a ironia incorporou-se à lírica moderna. Hoje, tão distantes daquele momento, atestamos o lirismo mais do que presente, a própria poesia: o lirismo pungente de Ruy Espinheira Filho quando diz: "Quero/ me apagar na noite,/ ser a noite/ esse grande silêncio/ lá fora,/ onde espero que o mundo/ não esteja mais". O lirismo Femina de Myriam Fraga: "Revesti-me de mistério/ Por ser frágil,/ Pois bem sei que decifrar-me/ É destruir-me". O lirismo a plenos pulmões de Ildásio Tavares: "Há um resto de mim em toda a parte/ Que nunca pude ser inteiramente". O lirismo musical de Aramis Ribeiro Costa: “O sol brilhando em plena madrugada/ O desejo de ser – sem ser loucura/ A vida, num segundo, iluminada”. O lirismo apurado de Florisvaldo Mattos: "Nada sei do que me contam/ as furiosas páginas dos diários mudos". Os versos líricos de Luís Antonio Cajazeira Ramos: "O sonho acabou./ Não mais acordei./ Mas tudo que sou-/ -be, no sonho, deixei". O lirismo refinado de Maria da Conceição Paranhos: "Mor ventura não há neste meu fado/ do que mirar teu corpo e usufruí-lo,/ pausadamente, a mão a desvesti-lo,/ saboreando teu olhar de dardos,..."
Lucia Miguel Pereira reclamava do fim da simplicidade de Bandeira. A lírica moderna pode não ter o acesso fácil de outros tempos, mas aí reside o seu fascínio. O lirismo é categoria tradicional e eterna na poesia, seja ele mais claro, seja obscuro e mágico. Menos mal que a crítica não pode ver além de seu tempo.



Este texto foi publicado no caderno 2 do jornal A TARDE, coluna Leitura Crítica, em 01/08/2001.

RESUMO

Gerana Damulakis


Não cheguei na lua.
Andei apenas pelas ruas
molhadas, cheias de buracos
que transbordam de pedras.
Nem plantei uma árvore,
nem colhi frutos,
mas não arranquei rosas.
Não escrevi um livro.
Apenas passei páginas,
lisas e lidas.
Não conquistei meu chão,
meu corpo é pequeno,
grande minha solidão,
e apenas consigo
abrir meu coração no tímido pedaço
de meu espaço;
semeio de paz o meu redor,
tento criar ilusões para
a difícil realidade da vida.

1993

A DAMA



Carlos Vilarinho


Foi lá na redação que vi Danyella. Estava sentado ouvindo o editor, pensando em tomar café. Ela veio e sentou-se ao meu lado. Não havia pensado em meu comportamento idossincrático-meditativo ao longo da vida. Não sabia o que eu era. E agora sei quem sou. Tudo de praxe durante o falatório, a não ser quando o poeta tomou a palavra.
— Tudo, companheiros, é uma questão natural. Se analisarmos o tempo em sua passagem iminentemente e, muito natural, efêmera... e, com a nossa perspicácia, ao observar e interpretar os fatos para depois criá-lo e recriá-lo teremos a notícia...
Eu tinha uma bolha no pé. Calçava um único tênis que possuía velho e surrado. Quando o poeta Carlos começou a falar, não sei por que, mas a coceira parou, deu um tempo. Pensei na passagem do tempo para escrever minha matéria. Então, olhei Danyella ao meu lado. Ela estava com uma calça colada ao corpo. Desenhava toda sua perna. Algo fantástico contatou minha energia com a dela que, sem querer e, com o pensamento voltado a um texto que teria que escrever, esperei Danyella levantar.
— ...não que não tentemos, não que não pensemos, não que não saibamos e alguns não sabem, mas as mulheres devem ser bem tratadas...
A bolha no pé voltou a coçar. Estava usando também um desodorante forte, ativo, e aquilo me deixava renitioso. O poeta Carlos é um bom amigo, um sujeito muito parecido comigo. Gostava de beber cerveja e falar na seleção brasileira. Enxergava nas entrelinhas e era até um pouco histriônico com relação às mulheres. O poeta era tão sensível que me fazia observá-lo ali com uma coceira nos pés. Sentia a volúpia da coceira. Notei então a mira acre e o bigode revoltoso de Valcélio a espionar, indignado, a minha coceira.
— ...e foi assim que Nietsche chorou, amigos... eu, enquanto jornalista, e com tantos fatos falsos noticiados pelo mundo afora, criados a partir da imaginação de um homem, digo-lhes que o que estão querendo fazer com nossa classe é um absurdo.
A reunião decidiria o dissídio coletivo. Havia no paroxismo da vida uma existência paradoxal, que era o jornalista desinformado. A turma toda estava além da indignação. Não abri a boca para dizer que era verdade tudo aquilo, o fato do desconhecimento, mas a minha presença incomodava boa parte da redação. Danyella então se levantou e ali eu senti o que há muito não sentia. Um tremor no coração e um desejo quase incontrolável. Durante o seu andar até a cafeteira envolvi-me numa espécie de transe em conexão com o universo feminino. Danyella me causaria, a partir daquele dia, muito embaraço de excitação espontânea.
— ...Fernando Pessoa genialmente falou que ficava no cimo de um outeiro olhando o seu rebanho, ótimo, amigos, se tivéssemos agora um Fernando, ou melhor, Alberto Caeiro, a nos olhar e nos guardar lá de cima no papel que está no seu pensamento...
Não sei quanto tempo o poeta falou, não prestei mais atenção depois que pus meus olhos em Danyella. Passei o resto daquele dia inquieto e excitado. Segui a mulher até o lado de fora da redação e minha excitação amoleceu quando a vi entrar num carro e seguir com um outro homem. A bolha de meu pé voltou a incomodar, o sangue corria dentro de mim com mais intensidade, tornou-se um córrego que parecia jazer de tristeza pela ausência de Danyella.
— Jornalista, para que lado fica o amor?
Um velho que ficava todos os dias na porta do jornal, limpando sapatos, me perguntou isso. Aliás, ele já havia me perguntado em outras situações e eu, indignado e sempre injuriado com as coisas da vida, resmunguei:
— HUMPF!!!!
Naquele dia eu respondi:
— O amor acaba de entrar num carro.
E foi ele mesmo, o engraxate, quem me contou sobre Danyella.
— É, eu vi. Aquela dama causa frisson em todo mundo quando chega. Ela é casada com um palermão que aparece de vez em quando na televisão, convocando o povo para ir à vigília dos crentes... Tem também um filho com o tal palerma chamado Esdras. È muito tímida, sensível e carente...
— Como é que você sabe disso tudo?
— Jornalista, tenho sessenta anos e já tive meia dúzia de mulheres, conheço todas... a dona que virou sua cabeça tropeçou no próprio salto e segurou-se em mim e eu a segurei para não cair. Acredita, jornalista, que só com esse toque ela ficou toda arrepiada?
A imagem dos seios arrepiados de Danyella veio imediatamente à minha cabeça. E saí para beber, levando comigo na obscuridade dos pensamentos aquela dama que só mil talheres iriam satisfazê-la.
Ao chegar à redação no dia seguinte, rodei em torno de mim mesmo para buscá-la. Não a vi, quase entro no desespero quando, em seguida, ouvi um melífluo “licença”. Era ela. Ouvi ao mesmo tempo o estrondo retumbante do meu coração acelerado. Danyella olhou dentro dos meus olhos e riu um riso contido num sopro de respiração. Eu ri também e emendei.
— Toda licença do mundo para a dama seguir seu caminho suavemente.
Ela olhou novamente e riu um riso menos contido. Lembrei do engraxate e imaginei os pêlos eriçados do sexo de Danyella, junto a uma gota de suor. Não sei por que, mas veio à minha mente Dom Pedro II. Tempos atrás havia lido um livro sobre o imperador deposto. Dom Pedro teve muitas mulheres e uma dedicatória que fez para uma delas ficou em meu pensamento: “Não consigo mais segurar a pena, ardo de desejo de cobri-la de carícias”. Um dia direi isso a Danyella, prometi a mim mesmo. Depois de alguns meses, estávamos bem próximos. Sabia que de uma forma ou de outra Danyella me admirava e pensava em mim. Sabia que me olhava enquanto os meus olhos não estavam ao alcance dos olhos dela. Esgueirava-se na cadeira para ver como eu tratava as outras colegas, denotando um arroubo ciumento que a sua discrição e complacência não deixavam transparecer o que sentia por dentro; talvez passeasse por seu coração a dúvida de ser especial. Não deveria duvidar se me conhecesse perspicazmente. Enfim, estávamos na atmosfera romântica marcada por um ponto de intersecção que nos unia em algum lugar do universo. Trabalhávamos um em frente ao outro e cada vez mais eu a desejava. Acho que ela também. Inventei até um projeto fantasma para ficarmos juntos, discutirmos e, enquanto discutíamos, eu a imaginava nua, sem o seu vestido azul. Um dia, entretanto, tudo começara a se concretizar ao cair no chão a caneta com que trabalhava; abaixei para pegar. Foi assim que vi o talho de Danyella todo descoberto. Ela estava só de vestido, sem nada por baixo. Fiquei nervoso com a visão que tivera, e ela percebeu. Riu de esconso e levantou-se para ir à cafeteira. Olhou para mim de soslaio e quebrou para o banheiro. Eu fui atrás. Ela entrou, esperou que eu entrasse e trancou a porta.
— Estou pronta.
Beijei a mulher com furor, segurei o sexo com vontade, coloquei-a em cima da pia que quebrou. Levei-a então para o vaso, sentei e encaixei Danyella sem dar espaço a vácuo. Ela escorregou em cima de mim teso, duro e viril, soltou um urro de amor contido. Como dois animais, em transe de orgasmo, nos amamos no banheiro da redação por quarenta minutos. Ao sairmos, deparamo-nos com o poeta Carlos escorado na parede com dor de barriga, eis que me disse:
— Não há nada senão o fetiche
Não há nada senão o cio dolorido e desejoso de um poeta
Não há nada como saciar a dor
Não há nada como beber o amor...
Na última carta que mandei a Danyella, coloquei a frase que prometi a mim mesmo “Não consigo mais segurar a pena, ardo de desejo de cobri-la de carícias”

18/11/07



Carlos Vilarinho é ficcionista e cronista, autor de As sete faces de Severina Caolha & outras histórias (SCT, FUNCEB, 2005). Coleção Editorial Selo Letras da Bahia, 103


terça-feira, 20 de novembro de 2007

OS TEXTOS

Os textos postados, "Crônica e poesia: a tênue fronteira" e "A literatura baiana contemporânea" foram publicados, respectivamente, na Revista iararana nº 5 - março a junho de 2001 e no caderno Idéias, do Jornal do Brasil, em 03/11/2001 ( este último trazia um título diferente: "O que é que a Bahia tem").
GD