Gerana Damulakis
Não costumo ler biografias, memórias, relatos de viagens. Abro exceção para o escritor Paul Theroux e, por isso, digo outra vez: tudo é estilo.
Depois de O Grande Bazar Ferroviário (Objetiva, 2004), Theroux transformou mais uma viagem em livro: O Safári da Estrela Negra (Objetiva, 2009). E já encomendei o próximo: Até o fim do mundo (Objetiva, 2010). Mas, há uma curiosidade neste safári que reproduzo, quase na totalidade, no trecho retirado de Theroux.
O jovem e lascivo Flaubert - tinha apenas 27 anos - foi a Esna em busca de uma renomada cortesã, Kuchuk Hanem, "Pequena Princesa", e de sua famosa "Dança da Abelha". Esna, naquele tempo, era a cidade mais depravada do Egito, lotada de prostitutas que, por lei, tinham sido recolhidas no Cairo e deportadas para lá. Flaubert encontrou Kuchuk Hanem, que dançou nua para ele, em meio a músicos vendados.
A Dança da Abelha foi descrita como "basicamente um número cômico, em que a dançarina, atacada por uma abelha, tem que tirar toda a roupa". Mas o termo "abelha" é uma clara alusão, pois significa "clitóris" em arábe. Flaubert dormiu com a dançarina e registrou minuciosamente, em suas anotações de viagem, as particularidades de cada cópula, a temperatura de cada parte do corpo da mulher, seu próprio desempenho ("Eu me sentia como um tigre") e até os percevejos da cama, que ele adorou ("Gosto de um toque de pungência em tudo"). Ele anatomizou sua experiência egípcia em todos os sentidos da palavra, tornando-se um guia informal e um exemplo para mim.
(...)Ao deixar o quarto de Kuchuk, depois do encontro sexual, ele escreve: "Como seria lisonjeiro para o amor-próprio se, no momento de ir embora, eu tivesse certeza de que deixei uma lembrança, que ela pensará mais em mim do que nos outros que estiveram ali, que eu irei permanecer no coração dela!"
Mas isso é apenas um lamento, ele sabia que logo seria esquecido, pois admite mais tarde que, mesmo "tecendo uma estética em torno dela", a cortesã - vá lá, prostituta - não poderia estar pensando nele. E conclui: "Viajar nos faz ficar modestos - percebemos o lugar minúsculo que ocupamos no mundo."
Paul Theroux in O Safári da Estrela Negra - Uma viagem através da África
Gustave Flaubert (Illustration: Corbis)
20 comentários:
Maravilha, Gerana. E o fim, fantástico: o mundo é mesmo grande!
beijos
Parece que foi nessa viagem que, além de aprender sobre a nossa pouca importância no mundo, interessou-se por um quadro - e esse interesse levou-o a escrever a "As Tentações de Santao Antão", que os amigos-juízes literários acharam uma droga, o que o levou a escrever "Madame Bovary". Mas, para mim (e Valéry pensa de modo análogo), se "Madame Bovary" inicia o Realismo, "As Tentações..." inicia o romance moderno, abolindo fronteiras entre romance, drama e poema.
Um abraço, Gerana.
Uma leitura divertida e certamente prazerosa, que generosamente partilhas conosco, as minúcias de tuas viagens literárias. Aprendo muito contigo e com tuas descobertas. Jamais saberia de Paul Theroux, não fosse aqui.
abraço de admiração
e obrigada pelas palavras, sempre tão gentís.
a literatura se faz também na carne, gostei e vou ler,
abraço
Boa dica, devidamente anotada para a lista das breves futuras leituras!
Boa dica, devidamente anotada para a lista das breves futuras leituras!
Menina, é isso que eu sinto quando retorno de viagens e como eu mudei depois que ando por ai. Deixar alguns sapos passarem,pro exemplo. Em viagem temos a certeza de que tudo é passageiro, acaba com tempo determinado. Voltamos miúdos, pequenos embora tenhamos crescido bastante.
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Para você ver a loucura em que estou, nem atenção aos e-amigos eu estou dando. Aproveitei agora qe escrevi no Monólogos para me dar de presente as visistas.
A vida interior de um escritor como ele é, ou deve ser, imensa. O Guy de Maupassant que escreve sobre coisas, digamos, mais rotineiras, morreu de sífilis. E não teve a ousadia de escrever como a teve Flaubert. De outro lado, o Paul Theroux é um escritor extraordinário.
Obrigado por partilhar, e parabéns pelo texto, ficou ótimo. Beijos.
sorprendente!
nada leí de Theroux,(tampoco le bigrafías, memorias ni relatos de viajes,salvo Gao Xing-Yang)
qué interesante entrada,Gerana (en tu blog se aprende y se aprehende)
besitos*
O mel das abelhas...sabroso post.
Interessante, coisa que a Gerana faz habitualmente.
Querida amiga, bom fim de semana.
Beijos.
Maravilha , Gerana!
Copio Rayuela: neste seu blog se aprende e se apreende...
Grande abraço, amiga!
Parece ótimo Gerana...
esse trecho me fisgou...
Beijos
Leca
Você sempre nos surpreendendo...
Imenso abraço!
Uma mestra na arte de recuperar autores e de pôr obras em perspectiva!
Beijo
Ando perdida no Verão.
Adorei a leitura. Obrigada por compartilhar! Vai diretamente para minha lista de leituras!
Beijos querida ;)
Li o comentário de Djabal e me lembrei, se a memória não me engana, que Maupassant era discípulo de Flaubert e que era este quem determinava quando Maupassant deveria ou não publicar seus textos.
Excelente seu texto, Gerana.
Abraço.
"Viajar nos faz ficar modestos - percebemos o lugar minúsculo que ocupamos no mundo." Nunca li nada que descrevesse melhor o que sinto quando viajo. Beijooos.
Delíciosa história, deliciosa conclusão. Viajemos!
Que texto delicioso! Tinha que ser Flaubert! O que se esperar de Flaubert senão esse tipo de aventura?
Também não leio biografias, memórias nem relatos de viagem, exceção para Viagem a Portugal de um certo José Saramago...rsrsrsrs. Mas Saramago é Saramago, como esse relato sobre Flaubert que me faz comentar também: Mas Flaubert é Flaubert! com seus pensamentos. Fiquei curiosa sobre Paul Theroux, gostei do estilo.
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