quinta-feira, 13 de maio de 2010

EU NÃO POSSUO O MEU CORPO


Gerana Damulakis

É difícil apontar o meu poeta português preferido - talvez seja Mário de Sá-Carneiro - porque simplesmente venero a poesia do país irmão. Em tempo: jamais entendi a razão de Portugal ser nosso país irmão; assim, estava eu com uns 10 anos de idade quando perguntei - não, não perguntei, afirmei logo - para meu pai se o certo não seria país pai.

Mas o assunto é outro (eu sempre acabo em meu pai, desculpem, é que ele vive nos meus pensamentos). O assunto é Fernando Pessoa.

O escritor Luiz Ruffato teve a sorte de fazer uma seleção de textos (poemas, fragmentos de cartas) seguindo seu gosto - que trabalho delicioso! O resultado foi o livro Fernando Pessoa - Quando fui outro (Objetiva/ Alfaguara Brasil, 2006). Dele, retiro o texto bem pessoano que faz pensar e pensar e pensar.

EU NÃO POSSUO O MEU CORPO
Fernando Pessoa

Eu não possuo o meu corpo - como posso eu possuir com ele? Eu não possuo a minha alma - como posso possuir com ela? Não compreendo o meu espírito - como através dele compreender?

Não possuímos nem o corpo nem uma verdade - nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por dentro.

Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer - eu sou eu?

Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu.

Quando outrem possui esse corpo, possui nele o mesmo que eu? Não. Possui outra sensação.

Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como sabemos nós o que possuímos?

Se do que comes, dissesses, "eu possuo isto", eu compreendia-te. Porque sem dúvida o que comes, tu o incluis em ti, tu o transformas em matéria tua, tu o sentes entrar em ti e pertencer-te. Mas do que comes não falas tu de "posse". A que chamas tu possuir?


Ilustração: de Almada Negreiros: Retrato do Poeta Fernando Pessoa, 1954.

24 comentários:

M. disse...

Obrigada, Gerana. Eu adoro Pessoa. Bj

Lisarda disse...

Já que não possuímos, o melhor é entregarnos.
E ficar pensando, pensando,pensando...

Tania regina Contreiras disse...

Amiga, esse é pra pensar, pensar, sonhar...

Mas, que ilusão enomre, mesmo: se nãopossuo a mi, como possuir?

Ai, esse é para levar hoooooras ruminando.

Beijo,
Tãnia

C. Cardoso disse...

"Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu".
O Eu sentimento cujos contornos vão para além do corpóreo...
Gerana todos os rios vão dar ao mar, o seu Mar é o seu pai.

Unknown disse...

Os mistérios insondáveis do Pessoa, alma de fina quintessência. Poeta que eu gosto com desmesura. Abraço

Sueli Maia (Mai) disse...

E há tanta filosofia em sua poesia que o poema penetra na língua e se demora.

Sempre bom.

beijos e bom final de semana

Bípede Falante disse...

Gostaria que fosse possível possuir.

Juan Moravagine Carneiro disse...

Gostei muito deste post...não só por ser Historiador e a questão de Portugal me fascinar...ou pelo fato de gostar muito de Mario de Sá - Carneiro...

...Mas sim por Fernando Pessoa ser citado...um grande poeta...um dos meus preferidos como autor e como homem em seu cotidiano...

Tabacaria é uma poema que mudou minha maneira de perceber o mundo...

Sempre necessito reler este poema para continuar ver a vida com outros olhos...

Agradecido pelas visitas ao Rembrandt


Abraço

Anônimo disse...

Talvez por não podermos possuirmos nada privilegiamos tanto o ter em detrimento do ser e do sentir. Liga não, são pensamentos de uma sexta-feira de uma semana difícil, difícil.
Um beijo.

gláucia lemos disse...

Texto para ser refletido, enfim, filosofar é aclarar os nossos pensamentos e ampliar as nossas possibilidades de concluir. Gosto de textos que levam à reflexão. Muito bom, Gerana.

silvia zappia disse...

pienso y pienso y pienso: qué poseo yo? no sé...
a qué le llamo poseer:ya tampoco lo sé...

gracias por Pessoa!
besos*

Ana Tapadas disse...

Querida Gerana:
Que texto maravilha! Ah se eu conhecesse as fronteiras da minha alma...adorei.
É linda a forma como apresentas a questão. País-irmão, sem «cliché», sem preconceitos - pai pode ser uma relação complicada.
Beijinhos

Jairo Cerqueira disse...

"Toda posse é ilegal". (Proudhon)
Beleza de poema, Gerana. Também gosto do Pessoa na pessoa.
Bom final de semana.

Susy Freitas disse...

o Mário de Sá-Carneiro que me desculpe, mas superar o Pessoa é tarefa impossível.

Valéria Martins disse...

Que curioso, não conheço esse livro do Ruffato, nem sabia que ele tinha livro pela Alfaguara.

Quanto ao Pessoa, bem, ele é o divino. Visitei o túmulo dele dentro do mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa, esse ano.

Beijos, querida Gerana! Bom fim de semana!

Edu O. disse...

Menina, que poema maravilhoso! Tem a ver com meu próximo espetáculo "O Corpo Perturbador". Virei aqui para pescar coisas que me inspirem.

nydia bonetti disse...

Fernando... só poderia ser Pessoa. Também gosto demais dos poetas portugueses, Gerana. A língua é mesmo nossa Pátria. Beijoos

Jefferson Bessa disse...

Gerana, que coincidência, porque nesse trecho já me detive algumas vezes; está no Livro do Desassossego de Bernardo Soares. Ao ler sua postagem, fui ao livro e encontrei o marcador na página em que estava este trecho
(364). rs. Fiquei surpreso!

Pessoa sempre me traz grandes questionamentos. Pensar o conhecimento é uma das grandes perguntas presentes em Fernando Pessoa.

Como sempre, é muito bom vir a este blog.
Beijos.

Valéria Martins disse...

Querida Gerana, que delícia! Eu acho que vc deve ser muito feliz.

Beijos

Marta disse...

adorei, Gerana!
obrigada por este post.
e não é por ser portuguesa mas achei uma ternura país pai.
país pai imagino, ainda, que possa ser um pai como o seu.
e voltei a comover-me, aqui.
obrigada, Gerana.

Anônimo disse...

Poxa
fico 9875183956197 dias sem aparecer, volto e tem mil coisas.....tenho que tomar um café, ir ao banheiro e depois voltar. Hehehehhe

Anônimo disse...

Ave Maria Gerana, eu sempre encasqueto com isso. Se os outros sentem o mesmo gosto, se sentem a mesma dor, e mais ainda...quem é esse eu que me vê e me desperta, e me chama...e tem outros...

Ele mesmo disse: eu que aguente comigo e com os comigos de mim. Ele, em Pessoa é meu predileto.

Agora, país pai é genial. Vc já era genial né?

E seu pai...tem que estar aqui, deve, faz parte. E seu relógio...vai bem?

E essa agora da Betina ser eu.... veja tá uma bagunça a minha identidade.

Adoro as suas histórias pessoais.

GED disse...

A vida tem destas coisas. Eu devo ser o único português que não gosta de Pessoa, aliás detesto-o, poeta sombrio. Ainda mais quando o meu país tem Cesariny, Sá Carneiro, Cesário Verde, Joaquim Pessoa.
Abraço
Henrique
PS: país irmão? Talvez, se aceitarmos prosaicamente que a nossa pátria é a lingua portuguesa. Quanto ao resto, acredito piamente que brasileiros e portugueses se desconhecem em absoluto. Uma pena

Fernando Campanella disse...

Pessoa com suas reflexões profundas que tanto dizem à minha alma. Um abraço, Gerana.