terça-feira, 15 de dezembro de 2009

ANGÚSTIA: UNIVERSALISMO CONVERGENTE

Gerana Damulakis

O menino é o pai do homem
E eu hei de atar meus dias,
cada qual, com elos da piedade
natural.
--------William Wordsworth


Um momento forte une dois contos de mestres desta arte. Trata-se de “Angústia”, de Tchekhov, e “Bicuíba: uma biografia”, conto de Hélio Pólvora, incluído no livro O Grito da Perdiz (Difel, 1983). A aproximação entre as duas prosas pretende não apenas localizar e pôr em foco a situação que os une, mas trazer algo mais sólido e pertinaz ao tempo: o próprio texto que encerra o pensamento.

São dois contistas de procedências tão diversas — um pertence ao cabedal portentoso da literatura russa, o outro faz parte da não menos poderosa (para nós, pelo menos) literatura grapiúna, cuja existência é fato, separada e distinta no seu pathos em relação ao restante da arte literária baiana —, procedências diferentes, como eu dizia, a ponto de levar nossa convergência entre ambos para um grau maior, governado pelo que se costuma chamar de temática universalizante.

“Coisa esquisita: a morte se enganar de porta” — palavras do pobre cocheiro, cujo filho morrera. É assim em “Angústia”, de Tchekhov: embora entorpecido pela dor, o cocheiro se via obrigado a trabalhar servindo a uma freguesia alheia a seu pesar, incapaz até de escutar sua história; por fim, o cocheiro acaba desabafando com o próprio cavalo, enquanto este mastigava o feno, também alheio. Os episódios, ou melhor, as tentativas de desabafo e atenção por parte do cocheiro não passam de um reforço à dor verdadeira, que é a perda do filho, porque o conto tem no seu conteúdo esta emoção maior e nada mais interessa. Interessa apenas o erro da morte, o engano da batida na porta. O cocheiro diz que o filho deveria substituí-lo agora que está velho; o cocheiro quer a ordem natural das coisas. A partir do momento em que a ordem natural não se dá, o que se dá é o mais trágico acontecimento da existência, a maior perda: a tortura que a alma não aceita.

Em “Bicuíba” o objetivo é semelhante dentro de suas técnicas narrativas: a opressão com o paradigma temporal invertido da existência. O apelido Bicuíba, do personagem de Pólvora, é explicado apenas no final, esclarecendo ser uma árvore de pau nobre, semelhante aos cedros e jacarandás. “Você caiu como cai a árvore lascada pelo raio” — constatação da morte de Bicuíba. E o pai escuta o filho mais velho dizer: “José era boa pessoa”, e fecha a cara em sinal de amuo, olha para os filhos e netos, e acrescenta, “julga-se no dever” de acrescentar: “E trabalhador. Muito trabalhador. Saía de madrugada, às vezes passava a noite fora. Sim, senhor, ele cavava a vida”. Para o pai, a morte do filho “foi um choque, (...), um baque no peito”. Terminam dormindo juntos, pai e filho, lado a lado, “por coincidência na fila de gavetas anônimas”.

É tão “normal” que o pai morra primeiro que o filho, que Hélio não relata a morte de Bicuíba; ele narra primeiramente a morte do pai, embora fique claro que Bicuíba morreu antes do velho. O conto de Pólvora, consistente e denso, deseja a vastidão de uma vida, ao tempo em que interroga sua validade e remete o leitor ao final, ainda buscando o enigma mais entranhado que a arte pode revelar. Nessa fusão de culturas e mesmo nessa mescla de vidas e cotidianos comuns, conciliados num pesadelo perseverado de perdas, o propósito é exceder a mortalidade e sorver a morte na vida, converter o efêmero e o transitório em intemporal.

À guisa de complemento: o paralelo se deu entre os personagens, o cocheiro tchekhoviano e o pai do grapiúna Bicuíba, deixando divisar a mesma angústia, a da descrença diante do espetáculo da vida — e da morte, com sua fina ironia.


Tu, que és filho do Gozo,
Grita em volta de mim, deixa-me
ouvir teus gritos.
---------------William Wordsworth


Texto retirado, mas com cortes para adaptar ao blog, de O Rio e a Ponte — À Margem de Leituras Escolhidas. Damulakis, Gerana. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, Fundação Cultural, EGBA, 1999. (Coleção Selo Editorial Letras da Bahia, 48)

Ilustração: O sinal da angústia (1932), de Salvador Dali.

4 comentários:

Unknown disse...

Acho interessante a figura do narrador no conto do Hélio. A referência sempre em "você", o desconcerto com o apelido de Bicuíba que ele (o narrador) desconhecia. E no conto do Thcekov a incomunicabilidade. A angústia que não pode ser compartilhada e ele só encontra ouvidos no animal que puxa o coche. Afora é claro os palelismos e similitudes que você muito bem sinaliza no texto. A clarividência universal. Um abraço.

Non je ne regrette rien: Ediney Santana disse...

Tenho Livros do Hélio,
Esses conto em especial tem algo de desconforto para o personagem central
abraços
Ps- e para o leitor também que é jogado em um labiritno de informações

Bípede Implume disse...

Olá Gerana
Obrigada pelo gentil comentário no Diletantes, sobre Lisboa.
Tentei já agradecer mas não consegui entrar nos Comentários.
O meu carinho, pelo teu amor a Lisboa, minha cidade preferida.
Beijinho.
Isabel

Nydia Bonetti disse...

Difícil partilhar angústias, mesmo tendo quem nos ouça. Esta especialmente, a da inversão da "ordem natural das coisas", que me parece ser a maior das angústias, acho imcompartilhável, em qualquer língua, em qualquer tempo ou lugar.

Que belo texto, Gerana. Abraço!