terça-feira, 8 de janeiro de 2008

UM CENTÃO





Gerana Damulakis

Manuel Bandeira foi o primeiro poeta que li, não foi o primeiro que ouvi, pois que ouvia muitos poetas serem declamados (isto é outra história), mas Bandeira foi o primeiro que li. E me apaixonei não apenas pela poesia e, sim, pela literatura de um modo definitivo, vida afora. Como a poesia de Manuel Bandeira traz a emoção de forma tão intensa e me arrebata sem exceções, optei pelo poema intitulado “Antologia”. Trata-se de um centão.
Um centão é uma composição poética (ou musical) elaborada com versos de vários autores ou de apenas um autor, assim como diz o nome: “manta de retalhos”, que vem do latim “cento”. A origem do centão é greco-latina: o poeta de então clamava por poemas homéricos e virgilianos como ponto de partida para construção de seu centão. No caso de Bandeira, o poema “Antologia” é um centão com seus versos.
Certa noite, resolvi me dedicar ao centão e procurei a origem de verso por verso, todos pertencentes a poemas memoráveis de Manuel Bandeira. Primeiramente seria maravilhoso sentir “Antologia”, perfeito como se sua feitura não tivesse nada de uma “colcha de retalhos”: fruto da magia do mestre.
Vou numerar os versos para facilitar a decifração do lugar original de cada um deles.

ANTOLOGIA

1 A vida
2 Não vale a pena e a dor de ser vivida.
3 Os corpos se entendem mas as almas não.
4 A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

5 Vou-me embora p’ra Pasárgada!
6 Aqui não sou feliz.
7 Quero esquecer tudo:
8 — A dor de ser homem...
9 Este anseio infinito e vão
10 De possuir o que me possui.
11 Quero descansar
12 Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei...
13 Na vida inteira que podia ter sido e que não foi.
1 4Quero descansar.
15 Morrer.
16 Morrer de corpo e alma.
17 Completamente.
18 (Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.)

19 Quando a Indesejada das gentes chegar
20 Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
21 A mesa posta,
22 Com cada coisa em seu lugar.

Versos 1 e 2: do “Soneto Inglês”.
Verso 3: de “Arte de amar”.
Verso 4:, de “Pneumotórax”.
Versos 5 e 6: de “Vou-me embora p’ra Pasárgada”.
Verso 7: de “Cantiga”.
Verso 8: de “Presepe”.
Versos 9 e 10: de “Resposta a Vinícius”.
Verso 11: de “Cantiga”.
Verso 12: de “Poema só para Jaime Ovalle”.
Verso 13: de “Pneumotórax”.
Verso 14: de “Cantiga”.
Versos 15, 16 e 17: de “A morte absoluta”.
Verso 18: de “Lua nova”.
Versos 19, 20, 21 e 22: de “Consoada”.

SONETO INGLÊS nº 2

Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao generoso sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer de esperança nem de espanto.
Nada pedir nem desejar senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé num mundo além do mundo. E então,
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.

ARTE DE AMAR

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

PNEUMOTÓRAX

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.
.................................................................................
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão
direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

CANTIGA
Nas ondas da praia
Nas ondas do mar
Quero ser feliz
Quero me afogar.
Nas ondas da praia
Quem vem me beijar?
Quero a estrela-d'alva
Rainha do mar.
Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.

PRESEPE
................
Mais do que tudo isso
O amedrontaria
A dor de ser homem,
O horror de ser homem,
— Esse bicho estranho
Que desarrazoa
.......................

RESPOSTA A VINÍCIUS

Poeta sou; pai, pouco; irmão, mais.
Lúcido, sim; eleito, não.
E bem triste de tantos ais
Que me enchem a imaginação.

Com que sonho? Não sei bem não.
Talvez com me bastar, feliz
— Ah feliz como jamais fui! —
Arrancando do coração
— Arrancando pela raiz —
Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui
.

POEMA SÓ PARAJAIME OVALLE
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.

A MORTE ABSOLUTA

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.

LUA NOVA

Meu novo quarto
Virado para o nascente:
Meu quarto, de novo a cavaleiro da entrada da barra.

Depois de dez anos de pátio
Volto a tomar conhecimento da aurora.
Volto a banhar meus olhos no mênstruo incruento das madrugadas.

Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.

Hei de aprender com ele
A partir de uma vez-
Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade.

Não pensem que estou aguardando a lua cheia
- Esse sol da demência
Vaga e noctâmbula.
O que eu mais quero,
O de que preciso
É de lua nova.

CONSOADA

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Aí estão os versos do centão, alguns poemas não foram reproduzidos integralmente por conta do tamanho e “Vou-me embora p’ra Pasárgada”, por ser muito conhecido e facilmente identificável.
Ressalto que Bandeira morreu em 1968; há exatos 40 anos em outubro deste, portanto. A melhor homenagem é sempre a leitura de seus poemas.
Como disse Drummond:
“Ontem, hoje, amanhã: a vida inteira,teu nome é para nós, Manuel, bandeira”.

2 comentários:

Letícia Losekann Coelho disse...

E muito bela essa poesia de Bandeira! Todas são belas...mas esta é especial! Ele une várias...fica lindo!
beijos

Carlos Vilarinho disse...

"A dor e o horror de ser homem." BANDEIRA, sem bandeira.
Grande e belo trabalho esse que fez, Gerana.