quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

ALVORADA


Flamarion Silva


Enamoravam-se. Não dos sabidos modos das gentes grandes. Que, também, estas, assim não de forma direta, enrolam os meios feito cipós. Nada dizem, mas, no não dizer, tudo dizem. Entendimento mais doido! Entendem-se. Assim meio bichinhos no farejar do amor.
Quero dizer que sim: enamoravam-se os dois. Porém, olhe só o descabimento! Manuelito de Dasdores, bicho mais feio se tirando de bonito, e logo para cima dela, Nióbe, toda do outro moço, Neco, já enamorada. Mas isso foi quando meninos, cheirando a leite.
Bichinhavam-se. Certos e incertos do amor e das quizilas, emaranhavam-se por caminhos de fontes, rios e matos.
Nhô Manuelito, bicho feio, arrepare que te mato.”
E no bojo do outro, Neco caía feito bicho, todo armado de unhas e dentes. Tudo pelo amor, só existido em sonho, e dormido, pela menina “Nióbe, que é bonita”, e ninguém supõe essa arte. Só Deus, este criador, que entre um bocejar e outro vai tecelando artifícios.
— E façam-se crescidos, Ele diz. E num momento aquela mangueirinha de antes nunca vista, arvoreceu. As paredes da casa, ontem apenas caiadas, Rosaram-se. E toda a gente, até Manuelito, que Deus, por engenhosidade nunca mata, tudo Deus coloriu, modificou, cresceu...
Nióbe bonitona, cheiosa. Neco um tipo fortão, de remar. Manuelito, nem digo, para desgraça de Neco, agigantou-se. Até que ela, a moça Nióbe, a Manuelito ofereceu um olhar derramado, certa feita. Foi quando suspirou:
Tão fortão o Manuelito; iche que arrepio toda!”
Desde então Nióbe teve os olhos despertados para este moço.
Hum, Neco logo se arrochou. Não de forma amostrada, ocultos os músculos, escondida no canto do olho uma outra arte, maliciosa:
Peixeirinha, peixeirona.”
E foi lá na rua do lado de lá que aconteceu um baile. Casa de seu Nezito.
Me concede a honra dessa dança, Dadinha?”
Dadinha toda se vai dançar com o moço que a convida.
Desafastada! Desafastada!”, recomendara o pai que a filha dançasse, pela honra, que é só o que pobre e moça têm.
Mais tarde, festa rolada, regada à bebida, moços empolgados, afogueados, a homens todos tirados.
Dança essa dança, Nióbe?”, pergunta Manuelito. Desconcedido o pedido, se já tão cansadinha a moça, se suara todo um disco com Neco, por vontade e gosto dela e dele; um caco, ela.
Mas Neco, Neco, diabo de premeditação! Bebeu no intento, o Cão.
Nióbe descansada no banquinho. Do outro lado da sala Neco nem diz. Diz, só no olhar:
Vem dançar com eu.”
Mas Neco, fui chamada ind’agora.” ressalva ela.
Chamou, quem, e eu, fui?”
Neco, Neco, fui chamada pelo Manuelito e não fui; isso dá briga.”
Adiante, adiante.”
Nada mais dizem. Já dançam pela sala.
Então é assim, sinhá falsa?” alto diz o moço Manuelito, já apegado no bracinho de Nióbe, repuxando-o.
Desafasta! Desafasta!”, diz, abrindo os braços, Neco.
Desafasta! Desafasta!”, dizem todos, abrindo.
Na sala apenas Neco e Manuelito; Nióbe entre eles.
Neco puxa a faca.
Peixeirinha, peixeirona.”
Manuelito não se acovarda, não. Abre as pernas, ginga o corpo. Um golpe, um bote, coisa assim parecida. Atarantada, a moça, no meio.
Manuelito larga o pé. Neco avança. Entre os dois, a moça. Neco enfia a faca, albiventre de virgem, sangrado.
Branquirubra, Nióbe jaz.




Flamarion Silva é autor de O Rato do Capitão (Secretaria da Cultura e Turismo, EGBA, 2006). Coleção Selo Letras da Bahia, 108).
Foto de Mari Curbani, retirada do Flickr.

4 comentários:

Anônimo disse...

Além da linguagem gostosa no ritmo natural do mateiro, que dá ao texto um clima apropriado, remetendo a algumas narrativas de Aleilton Fonseca, ressalto a capacidade de síntese que, em um conto curto narra uma longa história de rivalidade na disputa pela mesma mulher. Um texto feliz, Flamarion, parabéns!

Letícia Losekann Coelho disse...

ótimo conto! A disputa por uma mulher, que é objeto de desejo por sua beleza...Acaba com a morte, mas não dos competidores, mas sim dela! Adorei o conto, é tão real que dá para imaginar de forma clara as cenas!
Estou quase terminando o livro, muito bom!
beijos

Anônimo disse...

Flamarion: como sempre, meus aplausos. Bravo!

Anônimo disse...

Muitíssimo obrigado pelas palavras positivas, Gláucia, Tita e Gerana. Elas são importantes para mim, que faço do exercício da escrita uma labuta, prazerosa, é claro. Beijos.