domingo, 15 de março de 2009

GRANDE BAÚ, A INFÂNCIA

Gerana Damulakis


Recebi a reedição do livro Grande baú, a infância, de Arriete Vilela. A escritora é de Alagoas, tem vários títulos publicados e muitos prêmios em sua bagagem. Faz bastante tempo que venho recebendo seus livros, seguindo sua produção literária e, principalmente, admirando seus textos.
Como escrevi, este Grande baú... é uma reedição, mas, ainda que logo no início a leitura me certificasse que os textos já foram lidos por mim em algum outro ano, não consegui parar de ler. Arriete tem um estilo que faz fluir a frase, o parágrafo, cada texto, enfim. E o conteúdo é um transporte do leitor para um tempo e uma criança que cativam. O texto nº 9 é especial; começa assim:
"- Avó, eu tenho medo.
- Está com medo de quê, menina?
- Eu não estou com medo, avó. Eu tenho medo."
Quando a menina lista de um só fôlego seus medos, garanto que cada leitor se identificará com muitos deles: são os medos que povoam a infância. Só que o mesmo leitor tomará um choque quando perceber que a menina disse tanto e a avó já não estava ali, havia passado para outro cômodo. "Teria me escutado a avó? Teria?"
É um livro repleto de emoções, é um encontro com um ontem carregado de intensidade, é enternecedor... Arriete traz sempre para seus livros, além do talento evidente, uma pungência que só pode ser traduzida em uma palavra: vida.

CAIO FERNANDO ABREU: ÊXTASE


Gerana Damulakis

A literatura brasileira nos anos 80 do século passado tem uma marca forte: o conto de Caio Fernando Abreu. A incorporação da cultura pop, do rock, de tudo que não é considerado material digno, literário (como apontava o próprio autor), foi um choque necessário. A leitura dos textos de Caio Fernando Abreu causa êxtase, um êxtase literário.
Só para lembrar: quando, no conto "Morangos mofados", ele encerra dialogando com A hora da estrela, de Clarice Lispector, isto é o verdadeiro êxtase literário.
E as frases que pinçamos aqui e ali, que ficam na memória como parte de nós, como: "... tudo já passou e minha vida não passa de um ontem não resolvido, bom isso".
"A cada junho, sei que não suportarei o próximo agosto."
"O infinito é nunca. Ou sempre."
"Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra."

sábado, 14 de março de 2009

quarta-feira, 11 de março de 2009

APARTAMENTO 1001



Gláucia Lemos


Saiu do banheiro enxugando as mãos e sentou-se na borda da cama. Olhos no relógio, pouco mais de zero hora. Levantou-se bruscamente. Contemplou ainda uma vez o companheiro silencioso sob o cobertor de lã colorida. Era muito bonito. Fascinante demais para ser tão amado. O fascínio pode tornar as pessoas excessivamente seguras. Conceder-lhes a falsa impressão de absoluto poder e levá-las ao fio da navalha, a zombar dos limites. Os mais belos deveriam nascer cegos, para que os espelhos não viessem a cegar suas almas. Os espelhos cruéis que não a poupavam de testemunhar no próprio rosto as marcas do tempo.
O suspiro saiu profundo e dolorido, como se o arrancasse de dentro da alma.
Dois passos até a janela. O silêncio da rua era algumas vezes maculado pelos motores dos carros que transitavam maciamente. Convenceu-se de que nunca estariam dormindo todas as pessoas de uma cidade. Havia muitos olhos insones. Mesmo no décimo andar, escutava os motores resfolegando insistentes. Nunca permitiam que a noite dormisse, sempre haveria algum rumor no silêncio das ruas, como no silêncio das almas, onde o rumor do feito e do desfeito persistiria até que se consumassem as consciências. Que estariam fazendo outras pessoas despertas naquele momento? Quantas delas teriam a crepitar no íntimo o mesmo fogareu de angústias e horror que consumia sua paz? Todos têm suas dores, dizem. Mas, todos as têm tão intensas? Um choro convulsivo tomou-a inteiramente e ela levou as mãos ao rosto, limpando as lágrimas e cobrindo a boca, como temendo que os soluços despertassem o homem.
De repente, como se não fosse óbvio, descobriu que estava nua. Apanhou o vestido ao pé da cama e se vestiu apressada. Arrumou os cabelos ligeiramente com dedos nervosos. Alcançou o chaveiro em cima da mesinha e o ruído sobre o mármore lhe pareceu um gemido áspero. Nas faces brancas do homem quieto, a pouca luz fraca do spot projetava-se como o enfoque a uma obra de arte. Contemplou-o uma última vez com olhos de dor e despedida. O desenho do nariz, a boca sensual. Quanto era belo! Desligou a luz. Saiu, fechando maciamente o trinco, enquanto ainda todas as coisas estavam envoltas em tons de sépia.
O elevador não demorou, àquela hora ninguém estaria utilizando alguma das cabines. A descida fez-se muito rápida.
No saguão silencioso o ritmo dos saltos semelhava marcação de relógio. O recepcionista do plantão cochilava por trás do jornal que conservava aberto, fingindo ler. Como um robô, o manobrista esticou a mão, seguida de um bocejo, recebendo as chaves.
- O Mercedes branco.
Manobrou, abriu a porta na penumbra, recebeu a gorjeta e retornou à porta de blindex, empertigado, de olhos sonolentos, sem olhar o rosto da mulher, enquanto ela se foi. Estava mais que acostumado a ver senhoras distintas deixando os quartos do hotel antes do amanhecer. Sempre sozinhas, os parceiros desciam depois, ou não desciam, ficavam para o café da manhã, no próprio hotel. Uma a mais, uma a menos, não tinha por que estar olhando os rostos, todas tinham a mesma cara misteriosa, de olhos enormes às vezes encravados em olheiras acinzentadas, rímel nas pestanas, e volumosos cabelos tingidos. E aquele caminhar arrogante de queixo levantado e passos largos. Todas empacotadas em roupas sedosas e sapatos de saltos. E deixando um leve perfume no ar, quando passavam, como se tivessem o mundo a seu dispor. Era só mais uma.
O Mercedes acompanhou pelas avenidas o rolar dos pneus de outros raros carros boêmios. A maresia suave turvava o parabrisa.
Parou em frente ao prédio. Lentamente o portão de aço foi se movimentando e o carro transpôs, descendo a rampa do estacionamento para sua vaga. Ainda não havia ninguém por ali. Só o gato marisco que morava na garagem e dormia embaixo da caminhoneta azul-piscina.
Saltou apressada, bateu a porta com cuidado. Era preciso substituir a velha placa. Abriu o bagageiro depois que afrouxou o único parafuso que retinha a placa, e aparafusou a que retirara da mala. O container da coleta de lixo que se encontrava ao lado das garagens, ainda com restos de papéis, estava bem à mão para receber a placa rejeitada. De quanta manobra se necessitava para viver um mero plano de vida, pensou. Mas agora tinha a respiração opressa, quase insuportável. Caminhou até o elevador e sem demora subiu ao apartamento.
Inutilmente tentou dormir algumas horas antes de retornar à garagem. Uma agitação interior não permitiu. De olhos no relógio aguardou. até que depois das oito desceu, confortada pelo banho quente e por novas roupas. Rádio ligado, atenta ao noticiário da manhã, rodou até a periferia da cidade, sem mais que as notícias corriqueiras de todos os dias. Um crime a mais, um assalto a mais. Lá estava uma oficina de pintura a qual nunca recorrera.
- Quero trocar a cor. Sempre quis um carro vermelho. Quero um tom bem forte, cor de sangue.
Havia muito sangue nos lençóis. Só um pequeno corte na garganta. Canivete ou outro pequeno objeto cortante, o perito escreveu no laudo Era um belo pescoço de grego, ensangüentado.
Ninguém notou quem entrou ou saiu do apartamento 1001 do hotel cinco estrelas. O hóspede ali estava há uma semana, era hóspede costumeiro, todas as vezes que retornava à cidade ocupava aquele mesmo apartamento. A recepção não soube informar quem teria subido, eram tantas as mulheres elegantes que subiam em companhia de certos hóspedes, executivos, políticos de prestígio, celebridades, gente que exigia a maior discrição.
O manobrista não tinha idéia, eram tantas as senhoras distintas que saiam nas madrugadas dos sábados.




Gláucia Lemos é autora de mais de 30 títulos. Coloquei esta foto de nós duas porque não vi Gláucia nas nossas três últimas reuniões: em dezembro, ela viajou; depois, na reunião de janeiro, eu não pude ir e na de fevereiro, ela gripou. Total que: estou com saudades.

terça-feira, 10 de março de 2009

EM VÁRIAS FASES DA VIDA: BALZAC

Gerana Damulakis

É interessante como a obra de Balzac está presente em várias fases da minha vida. Estou lendo História dos Treze (Ferragus, A Duquesa de Langeais, A Menina dos Olhos de Ouro, em volume único da L&PM Editores).

"Saudai-me, pois estou seriamente na iminência de tornar-me um gênio", escreveu Balzac em carta à sua irmã.

De fato, ele foi um gênio.

domingo, 8 de março de 2009

MINICONTO DE ANTÔNIO TORRES


MAS O RIO CONTINUA LINDO
Pensa o desempregado ao pular do Corcovado.


Foto de mistca, retirada do Flickr.

sábado, 7 de março de 2009

PARA A MARIA HELENA


Manuel Anastácio


No horizonte, na ténue linha onde os gritos morrem
E se cala o eco,
As montanhas concentram-se num fractal
Onde o bem e o mal tomam formas
De insuportáveis dimensões.
Antes do horizonte, insustentáveis, as coisas fogem ao
olhar,
E os sentidos obrigam a um só momento.
Antes do horizonte não há memória nem pensamento,
E a erosão destrói a história e qualquer outra ilusória
narração.
As imagens, oxidadas, envelhecem, veladas em poeira e
abrasão.
Os mantos abrem buracos por onde o coração das coisas
vê as estrelas
E Abraão, sem vê-las, planeia veredas.
Mas antes do horizonte apenas seguem sendas e atalhos
Cortados em retalhos sem limite.
Antes do horizonte, os caminhos
Esbarram na impossibilidade de atravessar o que a luz
obriga.
Dos mais curtos, dos prometidos, há pedaços.
Há fragmentos de percursos interrompidos.
Há farrapos de mera possibilidade.
E, na verdade, perdidos,
Somos rendidos nos caminhos pelos deuses que passam
E nos trespassam com sonhos e promessas
Que se esbatem no horizonte.

A erosão corrói a cutícula do universo
E há no seu inverso, a deposição, o mistério das coisas
como elas são.



Manuel Anastácio é poeta e professor, assina o blog Da Condição Humana: http://literaturas.blogs.sapo.pt/
Conservei a ortografia do português europeu.
Ilustração da postagem: "Lamentação da Virgem", de "As Horas da Cruz" do Mestre de Rohan. 1435