sexta-feira, 31 de outubro de 2008

ARRANJOS


Gerana Damulakis

No tempo presente
e em todo canto,
esgarço o que sou
e o que não; porque
solitária é a noite
sem estrelas,
tão na escuridão profunda
do imaginário abismo,
que se pinta e é assim pintada:
o absoluto ou o nada.
Também sempre pinto
o que escravizo
dentro de mim,
tal como a noite
prenhe de estrelas;
só que na hora mesmo
rasgo o véu negro
rasgo em gritos
rasgo os erros e talvez
os acertos; porque,
agrade ou não,
deixo para a noite
a sua solidão.


De Guardador de mitos, um livro de um outro tempo e de outras histórias que, graças, já passaram.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

PRÊMIO DARDOS


Os blog de Fred Matos, Nas horas e horas e meias, http://eumeuoutro.blogspot.com/, selecionou este blog para o “Prêmio Dardos”, no qual se reconhece os valores que cada blogueiro utiliza para transmitir valores culturais, literários, éticos, pessoais etc. demonstrando sua criatividade. Esse selo foi criado para promover a confraternização entre blogueiros e para demonstrar reconhecimento por um trabalho que agrega valor a Web. Quem recebe e aceita o prêmio deve:

1. Exibir a imagem do selo

2. Linkar o blog do qual recebeu o selo

3. Escolher outros 15 blogues para receber o prêmio.

LISTA DOS 15 BLOGUES

QUIÇA


Fred Matos


um dia um poeta, cujos versos desconheço,
talvez tenha dito certas coisas que me esqueço
mas que sei serem tão óbvias que, todavia,
talvez jamais sejam escritas em juízo perfeito.

são coisas tão claras que me cegam, mas,
tão escuras que me assustam agora
e nas quais não quero pensar, apesar,
de que já as tenha falado de outro jeito.
quiçá estejam nas cogitações dos filósofos
quiçá estejam nos desígnios dos deuses
quiçá inscritas em cada nosso cromossomo

contudo, apenas os loucos e as crianças,
cuja inocência não se tenha corrompido,
são capazes de entender o desmedido.



Fred Matos é autor de Melhor que a encomenda (FUNCEB, 2006). Para ler mais poemas de Fred entre no seu blog http://eumeuoutro.blogspot.com/ , ou diretamente pela minha coluna nos "Favoritos".

terça-feira, 28 de outubro de 2008

SONATA AO LUAR


Gláucia Lemos


Hoje eu toquei somente para você.
Enlouqueceu, você dirá, como eu poderia escutá-la a toda essa distância? Não sabe você que os sons se propagam a quilômetros e se conservam no espaço, não só a imensas distâncias, como também, possivelmente, através de séculos? Dizem. Eu não sei se há verdade nisso, não entendo dos assuntos da Física, com certeza por isso é que eu tanto admiro os físicos. Mas alguém já afirmou que talvez se consiga ainda detectar alguns ecos das pregações de Cristo. Dois mil anos é muito tempo, eu não sei. Digamos que alguém tenha razão. Por que em minutos apenas, e não em séculos, a quilômetros muito mais curtos que a nossa distância até Jerusalém, os sons do piano não poderiam chegar a seus ouvidos?
Não, não sou delirante a ponto de crer em teses improváveis. Só consigo botar fé nas afirmações que me convençam. No entanto acredito que as pessoas se comunicam à distância, quando um fio imponderável se tece entre elas, uma interação amorosa. Certa vez li uns versos apaixonados, de cujo autor não me lembro e diziam: Não acredito que quando choras / não vejas que uma das tuas lágrimas é minha. O poeta falava da comunicação, até choravam a lágrima do outro. — São coisas de poeta, você dirá, mas poetas, meu amigo, são seres especiais, quase sempre têm razão.
Hoje recebi sua mensagem. Não foi preciso mais que um olhar rápido ao envelope, à sua caligrafia nervosa, uns garranchos riscados às pressas que me fizeram sorrir, àquele traço esquisito com o qual você grafa a minha inicial, para ter acesa aquela flama de cumplicidade muda. E a flama cresceu e me iluminou, iluminando todo o meu quarto, onde eu estava arrumando meus livros. Então, sua foto, que maldade! Sua foto. Não se envia foto para quem está com as mãos tão distantes do seu rosto. A quem está com as mãos frias pelo prolongamento no tempo de ausência. Ou se envia? Para que não se turve a imagem que se traz nas pupilas e o espaço ameace apagar, envia-se foto, com certeza.
Se eu disser que beijei o seu nome que assina a mensagem, ficará tão piegas! Muito mais que piegas, ficará tão ridículo! Por isso não direi. Não se usa mais beijar fotos nem cartas, mas na solidão do quarto, muitos dos pós-modernos que condenam românticos, certamente beijam cartas e fotos, porque amar ainda se usa de vez em quando, e sentir a alegria por se saber amado, ainda se usará por muito tempo.
Hoje estudei outra vez a Sonata ao luar. Não consigo mais tocá-la com a desenvoltura com que o fazia há vinte anos passados, por isso tenho que estudá-la muito, para compensar o tempo do silêncio. Mas hoje, tudo foi tão mais simples. A melodia fluía de mim como se a minha emotividade estivesse deslizando pelas teclas do piano. Sabe aquele trecho no qual eu ainda tropeço? Aquele trecho em que se troca a clave? Hoje não tropecei, hoje não perdi o compasso. Hoje eu quase fui parceira de Beethoven. Será que foi porque hoje eu estava tocando para você?



Gláucia Lemos está escrevendo um livro de crônicas neste blog. Esta é mais uma crônica para a reunião futura. Foto de regolare, retirada do Flickr.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

ENSAIOS AMADORES... OU NÃO!

Gerana Damulakis



Ensaios Amadores... ou não! (Scortecci, 2008)é o título do volume de poemas de uma escritora que suspira. Sua marca: o uso de reticências quase a cada verso, o que, de saída, levanta a lembrança de Mario Quintana que dizia serem as reticências como representantes dos suspiros. E um suspiro na poesia sacraliza o lirismo que ela carrega. Tal lirismo, cristalizado na poesia de Letícia Losekann Coelho, encontra sua força quando trabalha o onírico e pontua cada verso projetando imagens deste delírio e deste sonho: um exemplo excelente é o poema “Devaneios dos sonhos”.
Os poemas “Vento” e “Velho guri” são apenas dois exemplos - há outros - que trazem uma complementação ao vigor poético do livro: representam, pois, a inclusão do peso do tempo. E vale dizer mais: dão conta da experiência dos sentidos e, portanto, da sensualidade, tanto as imagens plasmadas em um poema como “O amor”, quanto a fantasia em “Flor da pele”. A uniformidade estilística do livro de Letícia é sinal da segurança no seu fazer poético, porém, sinaliza igualmente a sua persistência no que acredita, sem a necessidade de experimentações várias. O que é o mesmo que dizer que Letícia tem uma maturidade que lhe é inerente e que se materializa no verso, na estrofe, enfim, no poema, pois que não o perde de vista. Sua intenção poética é lançar a emoção e a conseqüente sensação no papel; e, assim como nós fazemos diante de uma impressão que nos comove, a poesia de Letícia suspira... em êxtase!

VENTO
Letícia Losekann Coelho

O vento procura-me pelos cantos...
Preenche-me de lembranças...
Faz o que dorme acordar...
Fecho meus olhos...
E sinto as punhaladas...
Trago meu cigarro amargo...
E quando solto a fumaça...
Vejo o vento partir...
Com as lembranças mortas...
Que insistem em vir aqui...
Exorcizo-te em mim...
Regozijo quando tu te vais...
Para sempre...
Até o vento voltar!

FORÇA



Gláucia Lemos



Roubam meu deus, meu corpo,
minha hora do sono.
meu sangue roubam. E ruem
as sílabas sutis da minha prece.
O riso e o vigor que remanesce
rompem a fio, desfazem-nos em febre.

Só não podem roubar este meu rumo.
Este travo no dente que me impele,
esta trilha riscada em minhas veias,
este poder de ir de olhos vendados
e retomar o passo após o risco.
Só não podem roubar esta certeza
de que sou como o ímpeto dos rios.
Só não podem secar-me a correnteza.


Gláucia Lemos é romancista, cronista, poeta. Depois do recente lançamento de seu romance Bichos de conchas, dá um mergulho na poesia.

sábado, 25 de outubro de 2008

MEU PRIMEIRO SÚBITO AMOR

Gerana Damulakis



Eu corri para a janela ampla que havia no segundo andar da nossa casa na Pituba. Ela dava para o pátio e se podia ver o carro entrando. Corri para ela assim que ouvi o barulho do carro. Vi meu pai sair da direção, minha avó do banco de trás e minha mãe do banco da frente com ele nos braços. Procurei um bom lugar e me escondi. Depois de um tempo que me pareceu enorme, escutei vozes que subiam as escadas, mas segui escondida. Ninguém deu por minha falta porque não ouvi que estavam me procurando. Observei que deixaram o que parecia um embrulho no quarto e desceram. Conferido o silêncio, tratei de ir em busca do que foi colocado no quarto. E lá estava ele no berço. Eu não tinha idéia do que sentia sobre tudo que estava se passando, sobre coisas que estavam mudando; pois era certo que estavam mudando: meu reinado de filha única findando. Então espiei para dentro do berço e botei os olhos na mais bela criatura jamais vista por mim. Ele era lindo, com a cabeça cheia de um cabelinho fino e muito louro, todo gordinho e com um nariz que sobressaía no rostinho perfeito. Foi a maior emoção da minha então curta vida de quase quatro anos. E foi um choque sentir aquela torrente de amor súbito diante da beleza dourada. Daí para frente só aumenta o que sinto por ele: que grande amor. Ele brincou com um monte da mesma boneca, a Barbie, eu brinquei com carrinhos e trens. Fomos um apoio e um conforto em inúmeras situações. Quando fui para a Espanha fazer a pós-graduação, ele me disse que eu era a primeira grande perda da vida dele; naquele tempo nós ficávamos até alta madrugada conversando e de um dia para o outro eu não estaria mais ali no quarto ao lado. Eu fui a primeira grande perda da vida dele e ele foi o meu primeiro grande ganho. Anos depois, eu já de volta, foi a vez dele ir estudar fora, mudou-se para o Rio de Janeiro e a faculdade era pela noite; eu só dormia depois da meia-noite, após telefonar e verificar que ele havia chegado em casa. Com a recente morte de nosso pai, ele tentou preencher meu vazio no que podia, fazendo coisas habituais com as quais meu pai me mimava: comprando montes do chocolate da mesma marca, por exemplo. Também faz questão de dizer “só você para resolver tudo”, que era uma frase que meu pai dizia para mim. Fisicamente somos tão diferentes: ele tem 1,83 m e eu, baixinha, tenho 1,62m, mas somos ambos magrinhos; ele sempre foi louro, e eu jamais fui, mas temos o mesmo nariz de grego (o dele é mais bonito). No trato com as pessoas também somos diferentes; ele é reservado, já eu sou expansiva, mas lá dentro há a mesma intranqüilidade. Hoje, um é para o outro a ponte com um passado comum que gera um conhecimento profundo. Andamos pelas ruas de mãos dadas porque precisamos desse contato, nos perdemos em abraços demorados que dizem mais que palavras e temos o especial gosto ao verificar o quanto nos parecemos nos sentimentos e na maneira de encarar a vida. Somos frutos de uma mesma história.

Foto tirada por Gerácimos Damulakis, meu pai, propositadamente em preto e branco para aproveitar o raio de sol que atingia a meu irmão e a mim, conferindo um ar artístico à fotografia.