quarta-feira, 22 de outubro de 2008

É FICÇÃO

Agora aviso quando um texto é ficção porque, quem me conhece, tem a incrível mania de achar que me coloco no que escrevo. Coloco, mas nem sempre e nem em tudo. Nos contos “Fascinação” e “Encantação”, não há uma palavra que tenha relação comigo e, ainda assim, tive que explicar, por exemplo, que a personagem do texto “Fascinação” não era eu.
Ao colocar os dois títulos juntos, “Fascinação” e “Encantação”, vejo que tenho fascinação, que me encanta, o nosso “ão”. Como dizem que a origem de tudo está na infância, lembrei-me de meu avô. Ele era grego, veio para o Brasil com 37 anos, ou seja, em idade já tardia para a assimilação de todos os fonemas de uma língua estrangeira. Eu tinha um gosto especial em pegar meu avô com uma palavra que ele não conhecia: a primeira vez que o peguei foi com a palavra “obsoleto”, ele não soube dizer o que significava. Certo, o assunto detonador foi o “ão”. Ele não conseguia dizer as palavras que tivessem o “ão”. Eu, netinha chata, ficava: “Diga pão, meu avô”. E ele: “Pon”. E eu: “Pão, pão, pão, tão fácil; diga João”. E ele: “Jon”. Não sei como ele me agüentava. Para meu querido avô, que de tão longe veio, dedico todos os textos que tragam “ão” no título.
Que não é o caso deste abaixo: um conto, ou uma crônica na tênue fronteira com o conto, intitulado “As sem-razões da paixão”. Pura ficção, está avisado. GD
----------------------------------------------------------------------------------------------------- AS SEM- RAZÕES DA PAIXÃO
Gerana Damulakis


Nem me pergunte sobre ela, sobre ele, sobre ambos. Não sei de nada. Para explicar as razões de uma paixão que não se realiza são precisos conhecimento e muito mais arte que qualquer psicologia possa achar factível nas palavras. No poema “As Sem-Razões do Amor”, Carlos Drummond de Andrade dá um show de entendimento e a última estrofe coroa o poema, coroa o sentimento, de forma única e, para dizer melhor, de forma completa. Trata, porém, do amor. Paixão é outra coisa.
Aqui, no entanto, não há palavras, versos, estrofes. Aqui há a paixão. Certo é que por vezes arrefece, depois volta. Nunca se tocaram, nem me pergunte qual a razão, mais uma vez garanto não saber. Um dia, faz anos, ele disse que teve uma paixão enrustida por uma amiga e em oportunidade surgida, não criada, calhou de ficarem a sós. Não trocaram uma palavra sobre sentimento ou sobre tesão, apenas se tocaram. Deste toque foram direto para um amasso total. Grudaram. Tinham represado muito desejo. Bastou tocar e explodiu. Excitante, claro que é excitante.
Pensando direitinho, acho que ele contou a historinha já sabendo que ela ficaria excitada, tentada a fazer igual, e a guardaria para sempre na memória. Não deu outra. Ela guardou na memória. O que intriga é a razão da paixão no ar entre os dois. Da parte dela, acho que vem da admiração, da maneira que ela imagina que ele sente as coisas da alma. Da parte dele, não vejo qual razão poderia ser; talvez física, talvez a expansividade dela seja atraente. Quem pode atestar as sem-razões da paixão?
Os anos foram passando e nada fora acrescentado ao suposto romance. Estava ali, entretanto. Estava ali o desejo. Ele ia envelhecendo, ela também obviamente. Mas ele tem duas décadas na frente dela e seu envelhecimento é mais visível nesta etapa da vida. Os pés-de- galinha ao redor dos olhos dele estão tão profundos. O olhar, todavia belo. No total, porém, ele não emanava atração, não tinha qualquer parte ou detalhe sensual. E como despertava essa coisa invisível e poderosa? Ela fica toda contente quando sente isso. E nem pensa em explicações. Quem pensa sou eu, quem matuta razões sou eu.
Um dia tudo retorna, a tensão no ar, ele sem as rugas no rosto, só a poesia na alma. Ela, querendo flutuar nas nuvens, nas nuvens – lugar onde apenas a paixão é capaz de nos colocar. Ela entra no escritório dele, fala coisas inteligentes, tenta impressioná-lo, tenta reter aquele olhar de admiração que voltou e, pronto, ela está totalmente enamorada outra vez. Ele pensa bastante no que não houve. Não sei se pensa no que pode haver. Será? Ele está velho e ela está velha. Continuamos sem entender as razões da paixão. Ano entra, ano se vai. E a vida está passando. Mas nós, seguramente, nos apaixonamos.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

CANTO DE EURÍDICE


Gustavo Felicíssimo


Senta e escuta o orvalho no vale
e o verde do campo
enquanto contemplo a tua carne vertiginosa
e te falo sobre a vida
onde apenas os mortos sobrevivem.
Os sonhos, meu amado,
me faziam companhia durante o crepúsculo
e neles te encontrava,
o teu canto escutava,
mas te alcançar já não podia.
Pedi aos deuses que viesses em hora mágica,
quando a luz se avizinhasse
e me prendesse nos teus abraços,
que me lembrasse dos teus passos
e o sabor dulcíssimo do beijo.
Ofereci-me em sacrifício,
despi-me das fontes, das nascentes
e passei a mendigar pelos caminhos;
coroada de espinhos
vi a existência caindo sobre os pântanos.
Atirei-me ao fogo
e além do fogo nada mais conheci;
resisti à dor e a tudo que há de vil,
desejei adormecer
e adormecer também não pude.
Aceitei os desígnios divinos
e feito um pégaso preso ao arado,
entre as cinzas ardendo,
luzi meu próprio sofrimento;
recolhi-me ao tormento, insignificante.
Silenciei-me na insana luta
e frágil feito a flor do jasmineiro,
sôfrega, esperei por tua chegada
como se espera um deus
junto à tarde imaculada das madressilvas.
Dá-me agora, amor, o sabor da tua pele,
o prazer inenarrável do sorriso
e afasta dos olhos meus tanta amargura;
segura-me pela cintura
e toma posse do que é seu.



Gustavo Felicíssimo é poeta, ensaísta e editor. Tem no prelo a obra FRUTO DE OURO, A POESIA GRAPIÚNA EM QUESTÃO (ensaios sobre a obra de 23 poetas grapiúnas).
Foto "Eurídice", de kairos_dd, retirada do Flickr.

CONVITE DE LETÍCIA COELHO


Convido você a participar da próxima edição do Coletânea Artesanal intitulada "Metamorfose" que estará no ar no dia 30 de novembro http://www.coletaneartesanal.wordpress.com/Envie seus textos até o dia 28 de novembro de 2008 para leticia.lo.coelho@gmail.com ou http://br.mc523.mail.yahoo.com/mc/compose?to=lunnaguedes@gmail.com


Metamorfose

A ilusão que nos acompanha a cada passo...
Aquele que bem pode ser o último, antes da queda, que leva ao fim, ao declínio.
O medo se transforma em inimigo!
E você não mais se reconhece quando olha no espelho - não possui mais olhos para ver o que está lá.

O desafio de ter o último pensamento...
Que pode ou não ser perfeito, que pode ou não definir toda uma vida, uma história e pode bem ser o fim de uma existência
porque nunca mais será como foi um dia.
Sofreguidão...
Sentir que só existe uma certeza:
Todo mundo um dia morre.



Tela "Sol Poente", de Tarsila do Amaral, retirada do site oficial: http://www.tarsiladoamaral.com.br/

SEM GUARITA

Luís Antonio Cajazeira Ramos


A saudade reside em meu portão.
Às vezes entro e saio sem notá-la.
Quando a encaro, porém, falta-me a fala.
Não há palavras para a solidão.

Terrível o lugar de seu plantão.
Sentinela invasora, não se abala.
Se entro ou saio, fuzila-me sem bala.
Caso contrário, prende-me no chão.

Tento ficar em casa em companhia.
Tento entrar e sair acompanhado.
Mas seu olhar me caça noite e dia.

Penso mudar de casa e dar um basta.
Mas nessas horas ela adianta o fado.
Mais se aproxima, e tudo mais se afasta.


Luís Antonio Cajazeira Ramos é autor de Fiat breu (Papel em Branco, 1996), Como se (Editorial Letras da Bahia, 1999), Temporal temporal (Relume Dumará, 2002) e Mais que sempre (7Letras, 2007).

domingo, 19 de outubro de 2008

ERSATZ

Manuel Anastácio









Em vez do ramo de flores
Que não te ofereço
Porque uma flor cortada
É um membro da terra decepado,
Ofereço-te um ramo de dores ardentes
Em amarelo iluminado.
São já tuas as flores
Em mim nascentes,
Porque em mim nada floresce
Que a ti não deva as sementes.


Manuel Anastácio é poeta, assina o blog Da Condição Humana (http://literaturas.blogs.sapo.pt/ ,ou use a entrada pelos meus favoritos).
Foto de marciookabe, flores numa Praça em Salvador, Bahia, retirada do Flickr.

sábado, 18 de outubro de 2008

SONETO DOS RESTOS


Ildásio Tavares

Cultivem outros requintadas flores,
exóticas, perfumes envolventes:
da corriqueira flor indiferentes,
em doçura de pétalas, nas cores.

Cultivem rubras rosas, seus ardores
ou as que, brancas, são evanescentes;
não as que são comuns, mas diferentes,
que para os olhos sejam esplendores.

Eu hei de cultivar, fiel assim,
flores selvagens que arranquei de mim
e que fizeram da ansiedade o leito.

Não são gardênias, lírios, alecrim,
são restos, vão chegando quase ao fim,
desamparadamente insatisfeitos.


17.X.08
Itapuã 5

Para os que não sabem, acima, local e data em que o poema nasceu e o n° da versão pela qual passou o poema em modificações. Considero como data a do nascimento.
Depois é o crescimento. Somos assim, nascemos num dia que nunca muda e depois temos um currículo. Este soneto, talvez ainda passe por modificações e aí teremos Itapuã 6,7,8 etc.

Tela "O Lago", de Tarsila do Amaral, de 1928. Retirado do site oficial http://www.tarsiladoamaral.com.br/

CONVITE



VENHAM PARTICIPAR DA DISCUSSÃO COM JOÃO HENRIQUE,
De políticas públicas de cultura.


Com quase três milhões de habitantes e um orçamento beirando os três bilhões de reais, a cidade de Salvador carece de uma política pública de inclusão cultural. Pensando nisso, os escritores Ildásio Tavares, Oleone Coelho Fontes e Antonio Lins, a pedido do prefeito João Henrique, prepararam um projeto denominado CULTURA E ARTE PARA TODOS, que será inserido no programa de governo do candidato e apresentado a artistas, intelectuais e produtores de cultura, em coquetel, no próximo dia 22 de Outubro, Quarta-feira, às 19 H, no Café Machiavelli (Pirâmide do Rio Vermelho) Rua João Gomes, 249. Rio Vermelho.