quinta-feira, 9 de outubro de 2008

PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA 2008


Gerana Damulakis

Anunciado o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura 2008: Jean-Marie Gustave Le Clézio.
O romance O peixe dourado (Companhia das Letras, 2001) é uma bela amostra da literatura do novo Nobel, nascido em Nice, em 1940. Comentarei em breve.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

ADORMECIDA


Castro Alves

Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.

'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos — beijá-la.

Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
Pra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! - tu és a virgem das campinas!
"Virgem! - tu és a flor de minha vida!..."

De "Espumas Flutuantes".
Foto da Praça Castro Alves, em Salvador - Bahia, de koichimura, retirada do Flickr.

POEMA INESQUECÍVEL: A canção de amor de J. Alfred Prufrock, de T. S. ELIOT


Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites indormidas em hotéis baratos,
Ao lado de botequins onde a serragem
Às conchas das ostras se entrelaça:
Ruas que se alongam como um tedioso argumento
Cujo insidioso intento
É atrair-te a uma angustiante questão . . .
Oh, não perguntes: "Qual?"
Sigamos a cumprir nossa visita.

No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.

Tradução de Ivan Junqueira.

O poema é longo. Fico dividida entre a tradução de Ivan Junqueira e a de João Almeida Flor. Segue outro trecho, mais ou menos na metade do poema; desta vez a tradução é de Almeida Flor.

Vou correr o risco
De perturbar o universo?
Num só minuto há tempo
Para decisões e revisões, a revogar noutro minuto.

Pois já conheço todas bem, conheço todas -
Sei as noites, as tardes, as manhãs,
Às colheres de café andei medindo a minha vida;
Sei que se esvaem as vozes em breve agonia
Abafadas na música de um quarto mais além.
Como havia eu de ousar, assim?

sábado, 4 de outubro de 2008

UM POEMA DE MANUEL ANASTÁCIO

Aestus


A terra cheira a vinho abafado.
As couves, tenras, aconchegam caracóis.
As vides, soltas, erguem falanges, tecem fantasmas.
A terra cheira a vinho abafado.
A mosto guardado em formol,
Como a doçura de quem nunca morreu.
Só mais umas gotas desta dor que, ardendo
Sabe a mel.
Em vez de fumo, nevoeiro,
E em vez de brasas, bagas de romã.



Manuel Anastácio assina o blog Da Condição Humana (http://literaturas.blogs.sapo.pt/) e está preparando um livro de poemas.

Foto de marina vrgs, da série "por dentro - romã", retirada do Flickr.

VERSOS INESQUECÍVEIS



Gerana Damulakis

Sempre que tenho vontade, coloco aqui versos que estão na minha memória e ficam se repetindo em mim. Basta ouvir a palavra "esperança" para lembrar o poema "Viver", do livro As impurezas do branco, de Carlos Drummond de Andrade. Inesquecível a última estrofe:

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?

E aproveito para ir postando fotos dos monumentos aos poetas pelo Brasil. Depois de Cabral em Recife, Drummond no Rio de Janeiro. A foto é "Carlos Drummond de Andrade em Copacabana", de Mauricio M. Favero, retirada do Flickr.

AUSÊNCIA


Gerana Damulakis


Senti muito a ausência de Kátia Borges na nossa reunião de ontem. Eu havia prometido, na anterior, que leria quatro poemas. Fiquei repetindo isto, Kátia. E, pior, enumerando-os, mas não fiz a leitura. Luís Antonio Cajazeira Ramos atacou com Fernando Pessoa e leu os 14 "Passos da Cruz", com repeteco para alguns passos. Imagine o quanto reclamei, dizendo que tenho limite para ouvir poesia em voz alta sem interrupções. Aquela coisa: Lima fica rindo quando eu digo para Luís parar de ler e Luís não atende, obviamente. Lima Trindade leu Eugênio de Andrade; já o escritor Carlos Emílio C. Lima achou o poema fraco. Gláucia Lemos, bela por dentro e por fora, feliz com seu mais novo romance premiado e publicado. Ela e eu não lemos, só ouvimos. A parte que se refere à gastronomia estava péssima: foi a pior reunião em se tratando do que comemos, uma lasanha horrorosa e dois pudins (dois!!!). Vai abaixo um dos quatro poemas que eu pretendia ler para você. É de David Mourão-Ferreira

Tombam secretas madrugadas

e rios densos de pavor

de tuas pernas devassadas

por meu instinto e meu amor.

Em teus joelhos levantados

tocam as pontas de uma estrela.

(Quaisquer receios de pecados

empalidecem à luz dela...)

E as tuas ancas repousadas,

pra que o meu corpo se concentre,

esperam, cativas - que as espadas

de amor se cravem no teu ventre.

Do livro A secreta viagem

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O BRUXO DO COSME VELHO


Ildásio Tavares


A 29 de setembro próximo passado comemorou-se o centenário deste que é um dos grandes escritores da língua portuguesa e, sem dúvida, o seu maior ficcionista. Joaquim Maria Machado de Assis, pobre, mulato, epiléptico, filho de uma lavadeira do Morro do Livramento, é um excelente exemplo da capacidade do ser humano de ultrapassar as suas contingências e subir ao primeiro escalão da espécie humana. Entre outras coisas, fundou a Academia Brasileira de Letras para onde arregimentou a fina flor da inteligência brasileira de sua época que aceitou sua liderança de olhos fechados.
É, inclusive, um tapa de luva na cara dos racistas que um afro-descendente, não só tivesse o respeito e a admiração de todos escritores do seu tempo, mas também que o estilo de narrar de Machado de Assis estivesse longe de identificar-se com uma África selvagem e primitiva. Ele é dos nossos escritores o que melhor esgrimiu a finura, a classe e a sutileza, além de ser um profundo mergulhador no mar desconhecido da alma humana de onde nos trouxe perfis imortais. Não será ocioso repetir como o jogo de ambigüidade no romance Dom Casmurro criou uma dúvida eternamente insolúvel a respeito da honestidade conjugal de Capitu.
Esta ambigüidade é conseguida pura e simplesmente pela sofisticação narrativa. através do ponto de vista do narrador implicado Bentinho que é a única testemunha que nos relata a maneira de agir de sua mulher, uma personagem que vem sendo construída por ele em flash-back, até que culmina com a acusação, que ele procura comprovar para o leitor, a fim de justificar a própria crueldade com sua mulher. Afinal, não há nenhuma certeza, e até um júri já foi feito para decidir se Capitu traiu ou não traiu. Como um verdadeiro bruxo da narrativa, Machado se limita a expor as peças do quebra-cabeça e deixar para o leitor a tarefa de armá-lo.
Se grande romancista, Machado não foi menor no conto e na poesia. Alguns de seus contos ou novelas são antológicos, são leituras obrigatórias tendo encantado as gerações. "Missa do Galo" é um conto cuja linguagem poderíamos apontar como calcada numa atmosfera. em que a sutileza, e os entretons governam a ficção machadiana e não podemos arriscar um palpite sobre o comportamento feminino, este enigma que Machado gostava de construir. Em "O Alienista" temos um fantástico estudo psicopatológico da natureza humana raiando ao absurdo em que o personagem principal é a loucura humana. Outro conto magistral e que todos deviam ler é "O Espelho".
Um dos primeiros cultores deste gênero tão difícil no Brasil, Machado escandiu a narrativa curta com um primoroso tratamento de linguagem, uma prosa castiça, ritmada e de excelente seleção vocabular que superava o gênio português Eça de Queiroz.
A crônica machadiana é essencialmente leve e requintada e nela, ele consegue uma dualidade difícil: captar o sentimento de seu tempo e fazê-lo atravessar o tempo.
Para mim, de grande beleza, com a incrível capacidade de unir pensamento e sentimento, é, sobretudo sua poesia.

Ildásio Tavares assina mais de 10 títulos como poeta, mas tem romances, contos, ensaios e é compositor. Foto "Cem anos", de ailana09, retirada do Flickr.