sábado, 6 de fevereiro de 2010

A GAVETA DO POETA



Gerana Damulakis

Sidney Wanderley tem estrada, vários títulos publicados, de Quisera ter a beleza que (Escrituras, 1997), De Riacho do Meio a Viçosa de Alagoas (Escrituras, 1998), passando por Na pele do lado, Nesta calçada, Três vozes nordestinas, Entropia. No meio do caminho, pois foi no volume de poemas intitulado Desde Sempre (Escrituras, 2000), tive a honra de figurar nas “orelhas”, com um parágrafo, onde acentuei a autocrítica do poeta. Realmente ele, este poeta, é assim. No seu mais recente livro, Chuva e não (Editora Catavento, 2009),do qual dei notícia aqui no Leitora, ele escreveu: “Este livro reúne o que o autor suporta ler de quanto produziu em trinta e três anos de exercício literário”. Geralmente, o autor assim tão rigoroso com sua poesia, nos oferece sempre o melhor do melhor. Mas, curiosa como sou, fico imaginando quantos poemas, que poderiam nos encantar, estão todavia guardados. Daí, instigo Sidney, peço poemas, procuro saber o que anda escrevendo. E me dou bem. Ele me enviou por e-mail o poema abaixo.

Admiro bastante seus traços: a ironia fina como uma navalha, que passa por nossa pele durante a leitura e gera um arrepio, assim como a naturalidade, com a qual ele coloca em versos temas tão fortes, como a morte na cadência do agora e, outra vez, o humor que, ao fim e ao cabo, chega lá na já apontada ironia. Obrigada, Sidney, por abrir a gaveta.


O IMPREVIDENTE
-----------Sidney Wanderley

Na tarde em que morreu
não parecia inconformado.
Pensava que, como o outro,
raiado o terceiro dia,
quando muito, uma semana,
e ei-lo ressuscitado.
Mas o tempo foi passando
e logo se acostumou
à recente condição
de morto definitivo.
Lamentava tão somente
o esquecimento do que
duplamente lhe seria
de extrema serventia:
travesseiro e cobertor,
cobertor e travesseiro
– pois a cama ali é dura,
pois a cama ali é fria,
e no silêncio enervante
daquele quarto sombrio,
não há corpo que se atreva
a lhe fazer companhia.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

SALVADOR: PLENA DE VERÃO


Gerana Damulakis

Desde que li As Pequenas Memórias (Companhia das Letras, 2006), de José Saramago, que olho a beleza de outra maneira. Isso porque gravei de forma irremediável as palavras da avó do grande escritor português. Ela admirou a beleza da noite e disse uma frase que simplesmente ficou cravada: “O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer”.


Passo olhando o mar, o azul pleno de verão, essa minha cidade exuberante de cores, e penso que realmente é uma pena ter que ir embora. Que pelo menos seja com a idade e a lucidez (sem lucidez, não adianta) da avó de Saramago. É pedir muito, mas assim somos todos nós: cheios de esperanças. Sei que é um tanto mórbido admirar a beleza da vida e pensar imediatamente no fim. Sempre fui desse jeito, só que a bela e verdadeira frase não foi dita por mim. Não tem importância, admiro quem soube dizê-la.

Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: "O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer." Assim mesmo. Eu estava lá.
José Saramago


Imagem de Salvador:
http://img253.imageshack.us/i/salvadordu7.jpg/

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

GLÁUCIA LEMOS NO TCA


Dia 7 próximo, domingo à tarde, Gláucia Lemos estará conversando com o público, sobre sua criação, seu livro mais recente, e respondendo curiosidades dos leitores, em participação do evento Conversa com o Escritor, no Vão das Letras, paralelo à feira de livros, a cargo da Câmara do Livro, um projeto da Fundação Pedro Calmon.
No foyer do TCA.
Entrada franca.
Gláucia Lemos é escritora baiana, autora de vários títulos. Sua produção inclui desde literatura infanto-juvenil, como a coleção "Marujo Verde", com quatro volumes publicados, até contos, ensaios, resenhas e romances, alguns dos quais premiados, tais como: O Riso da Raposa, pela Academia de Letras da Bahia, e A Metade da Maçã, pela Secretaria de Cultura de Recife, além do prêmio da União Brasileira de Escritores para As Chamas da Memória e o Prêmio de Literatura da UBE/Scortecci, para Bichos de Conchas. Sua obra publicada já ultrapassou três dezenas de títulos.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

UM POEMA BEM AMADO


Gerana Damulakis

Sei que os poemas devem ser lidos em voz baixa, sussurrando, mas este "Amar", de Carlos Drummond de Andrade, pede uma leitura para ser ouvida. Vale reparar na beleza do verbo "malamar" que, de saída, contraria a gramática. Justamente pela transgressão, "malamar" em lugar de "mal amar", nessa aproximação tão evidente com a maneira como se fala, como se diz, é que há o ganho, o lucro se dá: a consequência estilística é notável. O "malamar" é um amar de "qualquer jeito", sem atenção, sem empenho no amor.

Na segunda estrofe, "amar" se avizinha da palavra "mar" e, seguindo, aparece o "sal". O sal da vida é o amor. O amor é o tempero da vida, dá-lhe gosto e ao mesmo tempo traz-lhe algo de acre, agro, ácido. Já na terceira estrofe está o deserto, inverso do mar, só que continuamos amando, mesmo tendo feito o resumo emocional, abarcado o mar e o deserto, sentido a brisa marinha e o chão de ferro: "este o nosso destino: amor sem conta".

AMAR
---------Carlos Drummond de Andrade

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.


Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

in Claro Enigma

"NASCIDA PARA O PECADO"

Gerana Damulakis

Quando leio a poesia de Gilka Machado (1893-1980) costumo lembrar da poesia de Florbela Espanca (1894-1930), seja porque ambas levaram para seus versos a indignação com a condição da mulher aprisionada aos conceitos machistas da época, seja porque ambas carregaram seus poemas de sensualidade.

A própria Gilka se definia como uma mulher "nascida para o pecado" e, apesar de sua produção poética ter sido considerada, em alguns momentos, como imoral, conseguiu uma popularidade impressionante; de resto, evidência do quanto as mulheres se identificavam e tomavam para si o que aquela poesia clamava.

Enquadrada no simbolismo, ou, às vezes, num momento mais perto do modernismo - por conta de certos livros -, publicou mais de uma dezena de títulos e teve a obra reunida em edições nos anos 1978 e 1991.


O romancista baiano Jorge Amado foi o capitão de sua candidatura à Academia Brasileira de Letras, todavia a poeta assim não desejou. Pouco depois, a Academia conferiu-lhe o prêmio Machado de Assis.


FECUNDAÇÃO
-----------Gilka Machado

Teus olhos me olham
longamente,
profundamente,
imperiosamente...
De dentro deles teu amor me espia.

Teus olhos me olham numa tortura
de alma que quer ser corpo,
de criação que anseia ser criatura.

Tua mão contém a minha
de momento a momento:
é uma ave aflita
meu pensamento
na tua mão.

Nada me dizes,
porém entra-me a carne a persuasão
de que teus dedos criam raízes
na minha mão.

Teu olhar abre os braços,
de longe,
à forma inquieta de meu ser;
abre os braços e enlaça-me toda a alma.

Tem teu mórbido olhar
penetrações supremas
e sinto, por senti-lo, tal prazer,
há nos meus poros tal palpitação,
que me vem a ilusão
de que se vai abrir
todo meu corpo
em poemas.

in Sublimação, 1928

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

MORRE TOMÁS ELOY MARTÍNEZ

Gerana Damulakis

No dia 31 de janeiro de 2010 morreu o escritor argentino Tomás Eloy Martínez, nascido em 1934. Sua obra está traduzida para mais de trinta idiomas. Pode ser lembrado principalmente por livros como Santa Evita e O cantor de tango.

Sua característica maior foi combinar ficção e realidade. Recebeu importantes prêmios, tais como o internacional Alfaguara de Romance, em 2002, por O voo da rainha, e o prêmio Ortega y Gasset de Jornalismo, em 2009.

A homenagem que uma leitora de Martínez pode fazer é lembrar momentos prazerosos que sua literatura proporcionou. Lemos, a escritora Ângela Vilma e eu, A mão do amo (Companhia das Letras, 2008), romance diferente, fora da sua linha supracitada. Cheguei a escrever uma pequena resenha aqui no Leitora. Como eu vinha "dizendo", Ângela e eu lemos o romance e trocamos impressões sobre o personagem Carmona. Ela me disse que viajou com ele durante a narração de uma insólita viagem de trem. Para mim, inesquecível foi a imagem daquela casa que, após a morte da mãe de Carmona, ficou suja e cheia de gatos, emblemática da transformação na vida do personagem, então solitário, esquisito e totalmente perdido com a falta do poder exercido pela mãe.

Purgatório (Companhia das Letras, 2009) é um romance de amor, mas traz a marca de Martínez, que não deixava a crítica política. Um casal foi separado no auge da ditadura argentina. O pai de Emilia, pessoa importante junto aos grandes das Forças Armadas, tratou de fazer sumir o genro. Emilia jamais acreditou que Simón morreu e começou a seguir pistas falsas, indo morar no Rio, depois em Caracas e, por fim, em Nova Jersey, quando o reencontrou. Só que, trinta anos se passaram, ela ficou velha e Simón permaneceu com a mesma aparência como na época em que desapareceu. Eles se reencontraram com muito amor. Emilia podia, enfim, viver tudo o que guardou para ele. O desfecho? Não conto, mas asseguro que vale a pena, não se trata de um Dorian Gray, a razão do não envelhecimento de Simón é outra.

Deixo um pequeno trecho retirado de uma daquelas páginas com pontinhas dobradas do meu volume de Purgatório.

Aquilo que não chega a ser nunca sabe que poderia ter sido. Os romances são escritos para isso: para compensar no mundo real a ausência perpétua daquilo que nunca existiu.



Foto by Gonzalo Martinez

VIAGENS COM MURAKAMI

Gerana Damulakis

Enfatizo meu gosto pela literatura japonesa em todas as oportunidades. Hoje, senti falta de mais uma obra da ficção singular de Haruki Murakami ao constatar que em Portugal já há mais títulos traduzidos do que aqui e acaba de ser lançado mais um volume; nós temos apenas seis títulos. Qualquer um deles proporciona uma leitura fascinante, porque os romances de Haruki são viagens extraordinárias, no sentido literal.
Pelo fio da falta, tomo outra vez, não seu último romance - Após o anoitecer (Alfaguara/Objetiva, 2009)-, mas o penúltimo romance de Murakami: Kafka à beira-mar (Alfaguara/Objetiva, 2008) e releio as páginas com as pontinhas dobradas, sinal de importância para mim, em busca do que me suscitaram.

A felicidade é invariável. Mas a infelicidade apresenta inúmeras facetas, se modifica de pessoa para pessoa. Exatamente como disse Tolstói. A felicidade é uma alegoria, a infelicidade é uma história.

Sou como um corvo desgarrado do bando. Essa é a razão por que adotei o nome Kafka. Kafka significa corvo em tcheco.