quinta-feira, 13 de agosto de 2009

PAIXÃO É..., AMOR É..., AMIZADE É...

Gerana Damulakis

A paixão nasce assim, coisa de um instante e, nasceu. É um sentimento arrebatador, que embriaga, que cega. Não é o amor que é cego. Cega é a paixão, estado alucinante, mas, convenhamos, uma delícia. Ainda bem que acaba em tempo, para não enlouquecer o sujeito apaixonado, mas pode se transformar, melhor ainda.
Amor é transformação de algo que existia anteriormente, seja admiração, seja confiança, seja respeito, seja mesmo paixão.
Amizade é o único sentimento que se constrói. Sendo sentimento em permanente construção, são as vivências dos bons e dos maus momentos que conferem o alicerce seguro da amizade, pois que é composição feita tijolo após tijolo. Não há quem obrigue o outro a sentir amizade por quaisquer meios. Sentimento especial, o mais desinteressado e o mais difícil. Uma pedra fora do lugar e fica um edifício feio.
Sem pensar muito, deixando fluir o gosto sem interferência do conhecimento, o romance que retrata a paixão com mais intensidade é Servidão Humana, de Somerset Maugham. O que retrata o amor na sua maior constância ao longo da vida é O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez. E, por fim, a amizade tão bem retratada em Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas.

10 ANOS SEM HERBERTO SALES

Gerana Damulakis

Em 13 de agosto de 1999 morreu Herberto Sales. Autor de um clássico da literatura brasileira do século XX, o romance Cascalho, Herberto deixou uma obra aplaudida. Dos contos, tantos são antológicos, no sentido que a palavra grega encerra, inesquecíveis. Dos romances, mais de uma dezena, destacam-se o já citado Cascalho, Einstein, O Minigênio, Os Pareceres do Tempo. Ainda: três volumes de memórias, vários de literatura infantil, um volume de literatura infanto-juvenil e um de viagem.
Conheci Herberto Sales na Academia de Letras da Bahia. Ele contou casos engraçados, inclusive um deles ficou na minha memória: ele estava com pneumonia, muito febril e certo de que não passava daquela noite; acendeu, então, uma vela e, com o restante do quarto na escuridão, ficou mirando a vela com olhos pregados, esperando com certo deleite ela - a morte - chegar, assim que a vela apagasse, mas ela não apareceu. Ruy Espinheira Filho seguramente lembrará deste episódio narrado naquele fim de tarde.
Meu texto preferido, escrito por Herberto, é o conto “O Automóvel”. Em texto para palestra na ALB, que depois passou a integrar o volume da Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 44, de novembro de 2000, o acadêmico Aramis Ribeiro Costa atenta para uma curiosidade: Maupassant condenava o recurso do acaso na ficção, dizia que não se deve deixar cair uma telha na cabeça de um personagem central. Escreve Aramis: “Herberto, neste 'O Automóvel', ousando contrariar o mestre francês, deixa caírem duas telhas seguidas na cabeça do personagem”.
Realmente o Herberto contista preza na ficção curta o prazer de contar, acima das receitas já confirmadas ou não. Para encontrar o contista Herberto Sales, e dobrar este prazer, vale ler e adentrar tal universo com Ângela Vilma e seu ensaio A Tessitura Humana da Palavra — Herberto Sales, contista. Este volume, que tem o Selo Editorial Letras da Bahia, foi aprovado por Hélio Pólvora, quando fazíamos parte da comissão editorial da FUNCEB, daí que posso testemunhar como todos nós, responsáveis pelas aprovações da Coleção, ficamos encantados com o desenvolvimento do texto ensaístico. Originalmente foi a dissertação de mestrado de Ângela Vilma, mas em livro o que ela apresenta, com sua linguagem sensível para escrever sobre a arte literária, é um texto que suscita imediatamente a vontade de ler e reler Herberto Sales. Ainda agora, reli os capítulos preferidos por Hélio. Conversamos, Aramis e eu, sobre como Ângela Vilma compara os contos “Teoria do Medalhão”, de Machado de Assis e “Teoria do Executivo”, de Herberto Sales. Garanto, o leitor fica tão envolvido, busca os dois contos, e procura compartilhar este prazer acompanhado do livro da ensaísta.
É isso, Herberto, um dia a vela apaga e ela chega mesmo, precisa nos levar. Para alguns, como você, ela não chega completamente (como queria Bandeira naquele poema em que pede para morrer completamente sem sequer deixar um nome). Está escrito na história da literatura brasileira o nome do baiano, imortal da Academia Brasileira de Letras, Herberto Sales.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

PARABÉNS E ALEGRIA PARA LUÍS ANTONIO CAJAZEIRA RAMOS


Gerana Damulakis

Luís Antonio Cajazeira Ramos faz aniversário. Amigo,depois poeta. Assim o vejo. E não adianta ele desejar que seja diferente, que a poesia seja maior que a amizade. Ele é teimoso, que cara teimoso, mas foi sua teimosia que me tirou de casa no ano passado, quando inventou uma tal reunião mensal com um grupo pequeno, só para trocar ideias sobre literatura e fazer leituras em voz alta. Era junho, levei um tempão para sair de casa porque, desde a morte de meu pai, apenas Aramis conseguia que eu desse umas saídas rápidas, porém não mais Academia de Letras, não mais eventos literários, nada com muitas pessoas. O teimoso do Luís insistiu e insistiu. Era junho, ano passado, levei um tempão escolhendo a roupa, quase uma noiva. No meio do caminho, o celular tocou, era o teimoso perguntando a razão do meu atraso. Estou chegando, calma! Eu, meio eufórica, tinha conseguido sair. Melhorei muito de lá para cá. As reuniões todo mês. Graças a Luís, o teimoso.
Mas não gosto de Luís só por conta do episódio: o episódio é ilustrativo. Conheço-o de outros carnavais, há mais de dez anos. Ele escreveu para mim, no exemplar do livro Mais que sempre: “Gerana, a primeira pessoa a reagir com palavra escrita sobre minha palavra escrita. Isto é muito, é sempre, é mais que sempre”. Fiquei tão contente. Ele é teimoso, já escrevi várias vezes, está em tempo de outros indicativos: ele é justo, ele é amigo verdadeiro, não gasta sentimentos à toa. É, lembrei bem, ele é muito justo: sua característica maior.
Seja de Fiat breu, passando por Como se, depois Temporal temporal e Mais que sempre, de Luís Antonio Cajazeira Ramos poderia escolher vários sonetos, mas hoje é dia 12 de agosto, Luís nasceu porque dadas pessoas, lá atrás no tempo, se amaram. A escolha está feita.

AO AMOR
Luís Antonio Cajazeira Ramos

Meus bisavós maternos namoravam
de mãos dadas até já bem velhinhos.
Quando jovens juraram que se amavam,
e a vida nunca mais os viu sozinhos.

Vovó Iaiá e Pai Lulu gostavam
um do outro, tanto, que ninguém sabia,
depois de tanto tempo, se adoravam,
com tanta devoção, Jesus, Maria.

Ele, falante, um bom gourmet, um porto.
Ela, risonha, um bom crochê, conforto.
Ambos, um poema simples, claro e denso.

Não conheci nenhum dos dois. Que pena.
E mesmo assim a vida vale a pena.
Trago em meu sangue seu amor imenso.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

ESTE ERA O CARA

Gerana Damulakis

Este, sim, era o cara! O conto moderno tem três mestres, Guy de Maupassant, A. P. Tchekhov (grafado como está nas traduções do meu querido amigo Boris Schnaiderman, o realmente grande tradutor) e Katherine Mansfield.

Um levou ao outro que levou ao outro, como uma evolução. O próprio Tchekhov reconheceu que Maupassant levou o conto a tal ponto quanto às exigências que seria impossível escrever à maneira dele, daí partiu para a concisão, para a eliminação de tudo o que não fosse indispensável e, grande ousadia!, para o corte do princípio e do fim de uma história.

Grande exemplo de tudo isso é o conto "Angústia". Um cocheiro perde seu filho. Vendo-se obrigado a trabalhar sem descanso, atendendo a pessoas completamente insensíveis ao seu luto e sem ninguém com quem possa desabafar, pois, inclusive seu colega, se afasta enfadado, o homem desafoga com seu cavalo, enquanto este está remoendo o feno, obviamente sem entender sua dor.

R. Magalhães Júnior aponta para a simplicidade do texto. Texto monótono e, no entanto, repleto de emoção! Escreve, então, em A arte do conto: "Um imenso conteúdo de emoção se encerra nos períodos descosidos, na enumeração cinzenta de mesquinhos episódios, sem maior significação aparente, nesse torturante repisar do tema sombrio".

Creio que cada conto de Tchekhov traz duas histórias. Basta sair em busca, ler uma buscando a outra. É aquela coisa: a história atrás da história, que em "Angústia" resulta na história do egoísmo, da insensibilidade dos homens para com a dor alheia. A solidão é o personagem da história atrás da história. A solidão gera o outro personagem: a tamanha angústia da alma.

Este era o cara. Este é o cara!

domingo, 9 de agosto de 2009

Ó PAI


Gerana Damulakis


Por que me abandonaste?
Cristo


Qualquer dia, qualquer mês
e estou só.
Só as estrias de luz mostram o ar
carregando suas massas de partículas
redondas, tantas quantas são
as pessoas da multidão.
Lá fora é onde deve haver alguém.
Por que tarda?
Estou em plena tarde
sem perder o relógio de vista.
Preciso dizer-te isto, meu Pai,
que já vivo a minha tarde
e tenho medo.



Sei que já fiz uma postagem com o mesmo poema, sei que já fiz uma postagem com a mesma foto. Estou, influenciada por Maria Muadiê, me repetindo. Mas, só tenho um ou dois poemas apresentáveis. Mas, não sei passar direito minhas fotos para meu computador. Então,... é tão horrível não ter mais pai, assim como aquele barquinho que vejo daqui, lá no mar, sozinho, cinza no meio de tanto azul. Encerrando, para não amarelar. GD

sábado, 8 de agosto de 2009

NOME DE MULHER

Gerana Damulakis


Qual a importância do nome da personagem? O nome que o autor escolheu para sua personagem, ainda mais se ele for o título do conto ou do romance, vai causar uma caracterização precipitada?

Lembro da exclamação, já tão repetida, de Flaubert: "Madame Bovary, c'est moi!". Então, um tanto do autor está nas suas personagens e o batismo de uma mulher, personagem ficcional, vem trazendo sinais do criador. Quando não se pensa assim, pensa-se que aquele nome de mulher foi escolhido porque combina com a "heroína" do conto ou romance. Veja se consegue imaginar outro nome para ela: uma russa da sociedade, casada, que se apaixona desesperadamente por um conde canalha e que acaba se atirando debaixo de um trem... seu nome, Anna Kariênina. E Rebecca, a inesquecível? E Lolita, de Nabokov, poderia ter outro nome?
O assunto é fascinante e será motivo de uma antologia de contos. Todos os contos trazem no título - e por isso assim se intitulará a antologia - um NOME DE MULHER.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

UM LUAR NA NOITE DOS SANTOS REIS


Gláucia Lemos


Carregar o estandarte do terno da Sempre-viva era o prestígio máximo. Eu era a prestigiada. Dançar, portando aquele pavilhão dourado, bem à frente do rancho, seguida de todas as meninas adornadas com areia brilhante nas tiaras, e de todos os rapazes vestidos com cetim cor-de-ouro e quepes de paetês, era o meu momento de glória. Não havia cansaço.
O terno saía da Estrada da Rainha às 22 horas em ponto, ao som da banda de Bebeto que nos acompanhava com a estridência do seu piston muito afinado. Subíamos a ladeira da Soledade, e, quando entrávamos no Corredor da Lapinha, já sabíamos que nenhum outro terno da noite dos Santos Reis estaria mais vistoso que o terno da Sempre-viva.
Naquele ano não foi diferente. Mas, naquele ano, Carina tinha cismado que haveria de ser a porta-estandarte. Carina era a filha de seu Heitor, o dono do terno. E era a noiva de Bebeto, um noivado que já tinha perdido a graça, pois o noivo nunca resolvia realizar o casamento. Mas eu era a porta-estandarte desde a organização do terno, e não queria ceder o meu espaço. Carina era miudinha, magrinha, com toda aquela sengracice, ela mal conseguia equilibrar o estandarte na cintura para dançar. Assim, eu continuei sendo a porta-estandarte e Carina continuou desfilando na frente das outras meninas, como sempre.
Aconteceu que desde os ensaios daquele ano, Bebeto e eu vínhamos trocando uns olhares diferentes. Alguma coisa estava se passando entre nós que eu não conseguia controlar, quando Bebeto olhava para mim. O que era aquilo, meu Deus do céu? Eu sempre vira Bebeto andando pela Estrada da Rainha, ou atendendo no balcão da loja de ferragens do pai dele, como se fosse um rapaz qualquer dos que moravam no bairro, mas agora os olhos dele me desconcertavam quando ele fazia um ensaio de sorriso malicioso pelo canto da boca, como se fosse um convite velado. Fomos começando uma cumplicidade sem palavras, mas bastante compreendida por nós dois.
Então chegou o dia 5 de janeiro; era a noite do terno sair, já que a festa da Lapinha acontecia na véspera do dia santo. Minha tiara de areia brilhante ofuscava a vista de quem olhava para mim, e eu ainda espalhara uma porção de brilho pelos cabelos, para ficar ainda mais radiante aos olhos de Bebeto. Porque agora eu já me fazia bonita só para ser apreciada por ele .
O terno saiu da Estrada da Rainha com meia hora de atraso. As meninas estavam animadas e o piston de Bebeto, tocando a marcha- rancho da Sempre-viva causava um frêmito de prazer no corpo inteiro. Sabíamos que o nosso terno era o mais esperado pelo pessoal que freqüentava o largo da Lapinha nos festejos dos Santos Reis. E os aplausos eram sempre muito calorosos, por onde passávamos.
Quando entramos na praça toda embandeirada, por acaso olhei para o céu, e encontrei enorme a lua cheia, bem acima da igreja, brilhando mais do que o Sempre-viva, que as luzes da praça não permitiam que fosse percebida. Como meus olhos sempre encontravam os olhos de Bebeto, mostrei-lhe quanto bela estava a lua. E ele, acompanhando meus olhos para o alto, soltou um pouco o piston para dizer
- Esta lua é nossa. Minha e sua.
Eu me derreti em um sorriso. E ao ritmo do rancho, nos encaminhamos para a frente do presépio armado na fachada da igreja, a dançar em homenagem ao Menino-Deus. Todo o povo ao redor aplaudia alegremente. Cheguei-me mais para perto de Carina e falei
- Vamos fazer uma troca. Eu lhe passo o estandarte.
Ela mostrou um sorriso imenso de contentamento. Tomou o estandarte do Sempre-viva e começou a dançar entusiasmada, como sempre desejara. Supondo tratar-se de uma cena programada, o povo voltou a aplaudir e Carina empolgou-se ainda mais.
Olhei para Bebeto e, depois de me confundir no turbilhão do povo, sai a correr pelo fundo da igreja. Sem demora, Bebeto surgiu, à minha procura, pelo lado oposto ao que eu tomara. Livrei-me das sandálias da fantasia, e, de mãos dadas com ele, nos arriscamos a enfrentar a ladeira São Francisco de Paula, a correr quase deslizando pelas perigosas pedras roliças e escorregadias, para descer até a Cidade Baixa.
Lá embaixo, tudo era só ermo noturno e silêncio. Um solene silêncio de cumplicidade, um silêncio que acolhe e causa medo. As lâmpadas dos postes, de claridade precária, anulavam-se ao brilho do luar, que se estendia na praia como um lençol suave e sugestivo. Aquela lua era nossa. Minha e de Bebeto. Em um abraço, rolamos pela praia, apaixonados.
Lá em cima, Carina estava feliz, realizada, por ostentar o pavilhão dourado do terno Sempre-viva, como sempre desejara, e, com tamanha empolgação, aposto que estaria graciosa.
Uma tiara de areia brilhante e um quepe de paetês confundiram-se, envolvidos pelas primeiras ondas que vieram mansas, na madrugada do dia santo dos Reis, enquanto Bebeto e eu despertávamos para um novo dia. A troca estava feita.

Foto: "Coroando o luar", de Carlos Monte Jr.., retirada do Flickr.