domingo, 29 de agosto de 2010

ROSA POETA


Gerana Damulakis

Não só a vida é um negócio muito perigoso, desfrutar a poesia também é um negócio muito perigoso porque aguça a sensibilidade e, se ela envolve tanto a alma, igualmente aprofunda amor - uma delícia - e medo - consciência maior dos riscos.
Tirei da estante João Guimarães Rosa (1908-1967), o grande Rosa. E que beleza este "Pavor".

PAVOR
------João Guimarães Rosa

Em torno de mim
círculos concêntricos se fecham,
como as órbitas lentas de um corvo...
Tudo é torvo e pesado,
falta de ar e de amor...
Para mim já se apagou a última cor.
E a minha alma se enfurna
em poços velhos de hulheiras,
de onde foi tirado e queimado o carvão todo.
Como um cego
que dormisse na treva, amedrontado,
para sonhar que mais uma vez cegou...

in Magma (Nova Fronteira, 1997)

Ilustração: "Parábola dos Cegos", de Peter Bruegel.

20 comentários:

Anônimo disse...

Você escreveu exatamente o que eu vinha pensando, Gerana. Sensibilidade é caminho sem volta. Depois que um sentimento penetra em minha alma, vai crescendo tão rápido, e fica imenso. E falta espaço, e por isso dói tanto.

Abraço.

aeronauta disse...

Meu Deus, que poema grandioso é esse? Negócio bastante perigoso mesmo, a poesia; nos assombra de tal maneira, e também nos maravilha tanto.

Paula: pesponteando disse...

Linda poesia.
E como disses, desffrutar a poesia é perigoso. Acabei de pensar nos poetas e em muitos q gostam de poesia: são seres diferentes, mais snsiveis e mais sofedores...mas é tão bom esse sofrer.
Gosto muito do Rosa.

Bípede Falante disse...

Impressionante!

Alexandre Kovacs disse...

Ótima lembrança desta poesia e também muito apropriada à nossa época.

A ilustração não poderia ter sido melhor escolhida. Fernando Meireles utilizou esta obra como referência na montagem da cena de "blindness - ensaio sobre a cegueira" quando os cegos abandonam o espaço em que foram mantidos em quarentena.

Como diz uma grande escritora: tudo é estilo (até nas postagens). Nunca perco a viagem vindo até aqui.

Unknown disse...

poema de uma rutilância sem fim, apesar de evocar o contrário. lembrou-me um cenário de Borges, mas são almas irmãs: a rosa, o sertão, o tigre, o espelho,


abraço

Unknown disse...

Tudo é vago e muito vário,
meu destino não tem siso,
o que eu quero não tem preço
ter um preço é necessário,
e nada disso é preciso.

Paulo Leminski

Eu gostaria de adicionar uma outra voz poética. Mais nova, com um sentido também maravilhoso, para fazer uma composição.
E poetar é sempre preciso.
Beijos e obrigado pela partilha.

C. Cardoso disse...

Um verdadeiro must Gerana.

Sueli Maia (Mai) disse...

Gerana, este texto com o bônus do Rosa, me dão sobrevida, amiga.
"Tudo é torvo e pesado, falta de ar e de amor..." E pode existir algo tão pertinente e preciso?

E sim, tens razão: "poesia aguça e aprofunda". É que diferente de uma tendinite (que se localiza) sensibilidade, amor e medo de amar e sentir, não se localiza no corpo.

É um privilégio ler-te, compartilhar.

abraço imenso

Tania regina Contreiras disse...

Perigo que é preciso correr, não, Gerana? Belo e belo e profundo sempre o Rosa....
Beijos

jairo cerqueira disse...

Essa faca de dois gumes chamada poesia segue assustando esse 'comboio de cordas' chamado coração.
Lindo Gerana.
Bjs.

Jefferson Bessa disse...

Que pérola esse poema de Guimarães!

O temor e tremor dos poetas.

Um beijo.
Boa semana!
Jefferson.

Anônimo disse...

gente....
"Como um cego
que dormisse na treva, amedrontado,
para sonhar que mais uma vez cegou..."

fala gerana.... isso tem cara de neurose, de padrão, das coisas que deixamos que nos acorrentem...

ai geraninha, quero me livrar desse tipo de pesadelo acordado!

Mas o poema e bárbaro e teu bom gosto indiscutível!

Anônimo disse...

Minha deusa Grega...tô sempre buscando algo, ou algos....
mas agora estou atrás da pessoa mais importante da minha vida... sabe quem é?
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EU!

Álvaro Andrade disse...

Acabo de descobrir o blog, logo quando se fala que poesia atenua tudo...

Dia desses me veio a frase (invertendo outra q ouvi na internet):
poesia é o abismo sobre a corda bamba.

olá.

Francisco de Sousa Vieira Filho disse...

Que senso.e.ábil.idade fazem tão pro.fundo.a.mente...

;)

Álvaro Andrade disse...

obrigado também pela visita.

obs: voltando aq vi que troque as palavras no comentário. era "acentua" e não "atenua".

(minha cabeça vive dando essas panes. bem propício pra poesia. rs)

Lidi disse...

Confesso que não conhecia o Rosa poeta. Maravilhoso. Ainda bem que conheço você, Gerana, para me apresentar boa literatura, boa poesia. Este teu post me fez lembrar de uma frase que ouvi no filme "Lugares Comuns" de Adolfo Aristarain: "A consciência é um dom e um castigo" e de um trecho da canção "Choro Bandido" de Chico Buarque: "[...] os poetas como os cegos podem ver na escuridão". Sim, a sensibilidade é perigosa. A poesia é um grande perigo, mas a vida sem ela seria tão triste. Um beijo, Gerana. Saudade.

Pena disse...

Perfeita Poetiza Amiga:
Um nome a registar:
"...João Guimarães Rosa que desconhecia.
Sensível. Admirável. Divinal a sua escolha fabulosa.
Versos intensos que protagonizam o eterno amor.
Parabéns. Adorei.
Beijinhos amigos.
Com respeito imenso pelo ser divinal que é.
Sempre a estimá-la imenso.

pena

Bem-Haja, preciosa amiga.
É linda, sabia?
Notável em tudo o que faz com carinho, empenho e dedicação.
Fabuloso.

gláucia lemos disse...

Hoje mesmo estive conversando com minha filha sobre sensibilidade. Quanto mais ela é ferida pelas manifestações de arte, mais se refina para os futuros toques. E é mesmo como disse Renata Bezerra: ela dói. O poema de Rosa perfura o íntimo da gente. Tenho um poema de Damário q, se referindo a um certo luar, diz: "...e essa lua tão clara que até dói." É isso. O belo às vezes dói na sensibilidade.