Gerana Damulakis
Quando meu pai gostava de alguma coisa, gostava também de sair distribuindo essa coisa para todos. Certa feita, ficou muito encantado com uma marca de relógio e comprou vários. Temos exemplares do dito relógio: meu irmão, minha cunhada, minha prima, minha mãe, minha filha e eu. Para mim ele deu dois, um prateado, outro dourado e prateado. Quando estamos juntos parece uma confraria.
Meu pai morreu. E todos seguiram usando seus relógios. Esta semana, meus dois relógios pararam e a causa não era a pilha de um, nem a do outro. O de minha filha anda parando. Já são três relógios.
Faz pouco, falei com meu irmão e ele me disse que o relógio de minha cunhada parou, ele levou para mudar a pilha e não era a pilha. Por sinal, o dele já não estava no seu pulso, mas, não sabe dizer a razão, mudou a pilha e colocou o relógio funcionando ao lado da foto de meu pai. Este também parou. São cinco relógios parados.
Meu irmão me pergunta:
-Então, qual o recado?
- Nenhum. O tempo passou.
Ilustração: A Desintegração da Persistência da Memória, de Salvador Dalí.
16 comentários:
Muito bom o texto, Gerana. Metáfora excelente sobre a passagem do tempo, um final surpreendente. E linda foto tb. Parabéns pela belíssima postagem.
As vezes penso que o chamado "tempo cartesiano" venho para nos abraçar e nos iludir...deixando assim de olharmos para as pequenas coisas da vida...as mais simples...as mais importantes!
"Eu hoje, não sou o mesmo de ontem, e nem vou ser o mesmo de amanha" (K.M)
Intrigante e fantástico. Gostei muito.
Os relógios devem estar pulsando em outra dimensão, quem sabe. abraço
Gerana, que interessante e intensa a sintonia desses relógios e da sua família.
las señales del tiempo...
hermoso,Gerana
mil besos*
Gerana, meu pai me deu praticamente todos os relógios que tive. O que uso agora foi comprado por mim. Meu pai tinha uma relação forte com o tempo, sua casa cheia de relógios, muitos, e sempre me deu inúmeros calendários, folhinhas das farmácias de Valença com fotos de crianças e gatinhos, desde a infância até o último ano que passamos juntos.
Esse ano eu fiz uma folhinha com uma poesia minha e uma foto de um beija-flor. Pra enganar o tempo, a saudade.
beijo
Muito interessante, parece um conto muito bem bolado. O tempo passou, pois não? E a função do relógio não é marcar o tempo? O tempo do próprio marcador do tempo foi vencido.
Gerana, que coisa heim. Vc escreve como uma pluma, aliás, te acho muito delicada.
Mas gostei do seu pai, encantado com as coisas e querendo encantar tbm. Estranho, acabo de fazer um post aí embaixo, que falo de minha mãe, que morreu.
Sabe Gerana, nem sei.
Quanto aos relógios, sim, mostram que o tempo passou. Mas essa frase sua, é composta de muitas, mas muitas imagens.
Me diga, se vc tiver um tempo...vc gostou dos livros do Chico Buarque?
Texto comovente demais. E belíssimo.
¿Cómo dar,sem relógio,tanta conta?
Fantástico relato,Gerana.
olha só Gerana, já tá de noite....cadê vc?
Gerana, coincidências não explicam o que aconteceu. Mas são muitas as possibilidades, só não me atrevo a dizê-las porque seriam especulações.
bj
A Gerana é mesmo pisciana...
Bela crônica. O tempo parado, ah se pudéssemos... E a lembrança do pai ali, nos relógios, a ausência que insiste em ser vigia.
O Tempo, como bem disse Caetano, e um compositor de destinos e tambor de todos os ritmos.
Seu texto enamorou-se com o que disse Caetano.
Parabéns!
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