quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

SEXTA-FEIRA: ILDÁSIO TAVARES NOS ENCONTROS LITERÁRIOS DA ALB

RÉSTIA DE LUZ
----------------------Ildásio Tavares


Para Gerana




Ainda ontem, entrei sem querer
naquela
pensão barata (mas limpa e asseada)
onde nos encontrávamos felizes nos
finais de tarde. Entrei sem querer,
eu juro. Procurava uma peça de carro
numa daquelas lojas perto da estação
e quando dei por mim, estava bem na porta.
Resistir, quem havia de?

Na penumbra furtiva do corredor,
o coração descarrilou até o quarto
17 que me aguardava calado como uma
verdade eterna. Tudo igual. A cama
imaculadamente branca; um criado mudo;
duas cadeiras de palhinha puídas; e a
bacia de louça cor de rosa em que te lavavas depois,
ocultando teu gesto,constrangida,
para não te banalizares – tua aura de
deusa profanada por uma intimidade prosaica.

Quanta vez este teu recato ante a promiscuidade
me excitou, te enlacei por detrás
e te trouxe de volta ao vendaval da cama!
Tu sempre resistias. Você é louco, menino? Ele chega
cedo do trabalho. Olhe aquela réstia de luz na persiana
que engatinha sorrateira a caminho da noite. Mas
resistias um resistir indeciso, querendo mesmo te
entregar, e desta vez com mais volúpia.

É um amor bem mais amor esse amor
que me fazes depois, tu murmuraste
um dia, abaixando os olhos, com esse
teu jeito envergonhado e tímido de
tudo fazer e nada comentar. Foi num desses dias em que
sentimos a terra tremer embaixo de nós e até pensamos
que era o trem. La estava a réstia de luz que engatinhava
pela persiana, prestes a engendrar a noite.

Não sei se foi ele, se fui eu ou que foi.
Ninguém entende a lógica das mulheres.
Faz bastante tempo que nos vimos.
Foi no meio da rua, por acaso. Tu nem
quiseste sentar para tomar alguma coisa, conversar.
Era um final de tarde. Tinhas pressa.
O que a gente tem pra conversar,
conversa aqui mesmo, rapaz, diga.

Eu tentei reviver em minhas trôpegas palavras
nossos momentos de esplendor, cerzir retalhos do passado
como uma colcha de delírio.
Tu ouviste calada e no final
disseste. Acabou, menino, passou, esqueça.
Com um sorriso didático e nada teu.

Com um ar preocupado, consultaste
teu relógio e foste embora, sem um adeus,
pisando nas nuvens num passo curto
e ligeiro. Eu via uma pessoa mas era outra
pessoa. No quarto imóvel da
pensão barata, a réstia de luz desenhava
preguiçosamente as horas diminutas do
final da tarde, recorrente indiferença
de todos os dias. Sinete azul da eternidade.


Este poema está no livro 50 Poemas Escolhidos pelo Autor (Ildásio Tavares - Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2006). O poeta dedicou-me o poema porque eu ouvi todas as modificações que ele fez ( e foram muitas) por vezes até altas madrugadas, quando ele telefonava por conta de uma nova solução. Valeu a pena, ganhei, em papel, todas as versões que o poema teve ao longo de sua feitura. E, assim, ele a mim foi dedicado.
Ildásio Tavares é graduado em Letras pela Universidade Federal da Bahia, fez o Mestrado na Southern Illinois University, o Doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Pós-Doutorado na Universidade de Lisboa.

9 comentários:

Anônimo disse...

Que bonito, eim Gerana?
"cerzir retalhos do passado
como uma colcha de delírio." é demais de bom e de bonito.

Fred Matos disse...

É um ótimo poema, Gerana.
Acho que há material suficiente para editar um livro com textos dedicados a você, atestando o quanto você é querida.
Beijos

dade amorim disse...

Belo poema, Gerana. Esse trabalho que se segue ao primeiro poema equivale a uma oficina de poesia e é uma delícia.
Gostei de conhecer o resultado desse trabalho de Ildásio/Gerana.

Beijo!

Unknown disse...

É sempre bom ter poetas como o Ildásio. Ele põe visgo nas palavras e transmite uma espécie de contiguidade do dia-a-dia, como um discurso sereno a fluir com calma e precisão.

Gerana Damulakis disse...

Eu acho este poema de uma beleza ímpar, desde seu nascedouro. E foi uma honra acompanhar todas as modificações realizadas (Ildásio é incansável, perfeccionista), daí que tenho aqui, em papel, a genética do poema: um presente e tanto, além de, ao fim e ao cabo, o poema ter sido dedicado por conta do quanto ele me fascinou (é muito difícil um poema que conta uma história e, ainda assim, segue sendo um poema, sem dúvida).
O poema é uma bela história de amor.
Como diz Aramis (e eu repito): poesia é a ficção do sentimento.

Anônimo disse...

Já estive aqui hoje, volto para dizer do quanto gostei de seu texto no blog de Katia Borges. Valeu!

Anônimo disse...

Este comentário (abaixo) era para o último post do blog do Mayrant Gallo, mas como eu não tenho conta no Google, não pude comentar por lá. Peço permissão para comentar aqui.

Li todos que estão aí. O que li menos e gostei mais foi o Tom Correia, precisamente alguns textos na Verbo21. Seu livro
Memorial dos medíocres é bom. O livro A dama do Velho Chico, de Carlos Barbosa, tenta, mas não consegue fazer nada com uma boa história, o romance é frouxo, em linguagem e estrutura. Lima Trindade é esforçado, apenas. Sabemos, contudo, que em literatura esforço é uma partícula do processo. Rios parece um Bukowski que malogrou. Não me animei. Mayrant tem melhorado muito, principalmente nas narrativas policiais. Acho que a sua veia literária está aí. Não levem como críticas negativas ou amargas, por favor. Gosto muito da atitude de vcs, do encontro, e o Líder é uma delícia. Abraços. Daniel Bonfim.

Paula: pesponteando disse...

Ainda estou ao lado do eu lirico, lá na pnsão ouvindo seu pesar de amor...estou encatnada, pois ñ conhecia dana do Ildasio...bjs

Non je ne regrette rien: Ediney Santana disse...

considero esse senhor poeta um dos mais relevantes vivos na nossa literatura