Gerana Damulakis
Nos anos 80, Millôr Fernandes começou a mostrar ao público, em suas colunas nas revistas Veja e Isto é e no Jornal do Brasil, a poesia de Manoel de Barros. Outros fizeram o mesmo: Fausto Wolff, Antônio Houaiss, entre eles. Os intelectuais iniciaram, através de tanta recomendação, o reconhecimento dos poemas que a Civilização Brasileira publicou, em quase a sua totalidade, sob o título de Gramática expositiva do chão, em 1990. Daí em diante Manoel de Barros seguiu encantando.
Com pelo menos 30 livros publicados, desde 1937, e muito aclamado pela crítica, vencedor de, no mínimo, 10 prêmios literários, certamente o autor da Gramática... entrou na história da poesia nacional ocupando um lugar semelhante ao que ocupa Clarice Lispector na prosa brasileira, seja pelo que há de comum entre os dois escritores, nas suas lutas com as palavras para que digam além do que elas podem, seja pela proposta movida por uma intensa insatisfação quanto à ordem natural das coisas.
Atentando para frases do tipo: “Eu escrevo com o corpo/ Poesia não é para compreender, mas para incorporar”, em Arranjos para assobio, ou para a pequena estrofe: “Caracol é uma casa que se anda/ E a lesma é um ser que se reside”, do Retrato..., tem-se, de saída, a originalidade pela qual o vate do Pantanal seduziu seus aficionados. Os temas são a infância, a natureza e o Pantanal, registrados no universo verbal que lhes confere sentidos diversos, sentidos oníricos, por vezes fantásticos.
Repito: o que fez Clarice Lispector (10 de dezembro de1920 - 9 de dezembro de1977) com palavra na prosa parece ser o que faz Manoel de Barros (19 de dezembro de 1916- ) com a poesia. Estilo feito de invenções e de achados, substantivos são adjetivados, adjetivos e verbos são substantivados, violenta-se a regência verbal e neologismos ornamentam os versos, ou melhor, as frases. Como saber qual dos dois escritores disse:
Ri de novo, em leves murmúrios como os da água
e estupefato como uma parede branca ao luar.
Ambas são frases de Clarice Lispector.
É preciso ir mais adiante um pouco para constatar o paralelo:
O silêncio piscava nos vaga-lumes (...) os vaga-lumes abriam pontos lívidos na penumbra.
Mais uma vez, Clarice Lispector. Estou certa de que houve quem pensasse que esta última frase era de Manoel.
Agora estas frases:
Os silêncios me praticam (...) Sou livre para o desfrute das aves (...) Quero cristianizar as águas, e mais estas: Só não desejo cair em sensatez./ Não quero a boa razão das coisas./ Quero o feitiço das palavras. De Manoel de Barros, do Retrato do artista quando coisa (Record, 1998).
O estilo de achados - flagrantes poéticos e iluminações - acaba comovendo mais ainda quando presente no gênero que lhe fica melhor, que é a poesia. Primeiramente é encantador, mas o risco é o de que possa descair em verbalismo, do que, vale ressaltar, Lispector livrou-se justamente devido ao gênero por ela praticado.
Uma outra pedra de toque da poesia de Manoel é o efeito da frase. Muitos, os que torcem o nariz para sua obra, rotulam-no de mero “frasista”. Pode-se dizer e classificar o poeta de vários modos, até de ecologista da palavra, mas é certo que ele chegou num momento do século passado que parecia totalmente sem perspectivas de algo diferente daquele “grafismo”, já tão longa e fartamente em moda, e deslumbrou.
15 comentários:
É verdade, eles se encontram nas iluminações, nas palavras que de repente brilham por um sentido que não os originais, os do dicionário.
Também se arriscaram ao frasismo, Clarice principalmente. Até hoje ouço essa crítica quanto a textos dela. Pessoalmente, acho que ela passou no teste.
Beijo pra você.
Nunca tinha pensado nessa relação entre os dois escritores. Enquanto escrevo estou lembrando de uns tantos achados de Barros e de uns tantos encantos da Clarice. É impossível sair impune diante da escritura desses dois.
Gerana, fico sempre agradecida por você aqui me presentear com lembranças e/ou novidades ou novas maneiras de ler velhas leituras.
super interessante esse texto, Gerana, adorei.
beijo
Adoro Manoel...
'não tenho bens de acontecimento'
Clarice, nem comento. Mas Manoel merece mais atenção do que lhe dão, penso eu.
Muito interessante esse paralelo traçado por você entre esses dois grandes expoentes da escrita brasileira. Mas gostei mesmo foi da construção do seu artigo. Muito bom, como sempre.
Salve!
Muito obrigada pela visita e por seu comentário. Hoje a conexão está dando uma colher de chá, , estou conseguindo abrir alguns blogs menos carregado e deixar o meu profundo agradecimento - é muito bom poder contar com você. Aos pouquinhos eu vou dando conta de tantos amigos, de tantos comentários e de tantas leituras interessantes que aparece. Divulgar esse imenso país com suas belezas naturais e multiplicidades culturais é a minha verdadeira intenção, afinal ninguém pode amar aquilo que não conhece, não é verdade ? Eu me apaixonei pelo Brasil aos 12 anos de idade quando li Ariano Suassuna em "O Auto da Compadecida" - Chicó foi o meu primeiro amor..Penso que falta ao povo brasileiro é esse sentimento de pertencimento, de vontade de preservar o seu espaço lutando por um mundo cada vez melhor. Vemos tantas coisas na TV, escandalos de dinheiro em cueca, em bolsas, em malas e até na meia. Se essa raça de políticos amassem o Brasil e seu povo, isso não aconteceria. Com certeza que não. Porque eles só estão pensando neles próprios, dane-se quem vem atrás : farinha pouca, meu pirão primeiro, é o pensamento de quem não tem esse sentimento de pertencimento por uma nação tão linda, tão especial. Sim, porque aqui ainda é o melhor lugar para se morar. Por isso faço questão de divulgar a nossa cultura, o nosso povo, quem sabe um dia a ficha cai...Pode até ser uma ideologia, mas acredito que o melhor caminho seja a educação, o conhecimento.
Só sei que a coisa me parece estar dando certo, porque até já andei conhecendo alguns blogs iguais aos meus, a cópia é tão grande que até o layout e o corpo de letras são iguais - assim ninguém merece...
Que a Paz e o Bem estejam sempre com você e mais uma vez muito obrigada pelo seu carinho para com o meu trabalho.
Um grande abraço,
Silvana Nunes.'.
Saudações Florestais !
Gerana,
muito gostoso de ler seu texto. Clarice é impecável nas palavras, e Manoel, nossa,surpreendeu sempre.
ESte texto é como uom presente de Natal para seus leitores. Beijão
Adoro Clarice. Não conheço muito a poesia de Manoel de Barros, mas vou procurar conhecê-la melhor e tenho certeza de que, depois do teu texto, será inevitável a associação entre estes dois artistas da palavra. Excelente post, Gerana. Um beijo.
Gerana, dois grandes artífices da palavra vc apresenta. Uma palavra proferida por ele vai além do que ela é capaz. É impressionante o que ele consegue criar com palavras, uma sintaxe completamente subvertida e que diz tanto... Fico aturdido lendo Manoel, me perguntando: "Como essa lucidez aqui nao foi dita antes?" E é o mesmo o que há com Clarice: lucidez obscura. Fico extasiado com eles.
Bravo!!!Que bom ver dialogar Clarice e Manoel de Barros...
Agora estou perante uma leitora crítica no seu auge! Gostei mesmo muito, pois é impressionante o que fizeste.
Foi a blogosfera que me aproximou desses autores. Conheço algo de Clarice, mas pouco de Barros.Confesso que eles não são muito conhecidos em «papel» deste lado do mar.
Chego a envergonhar-me de vir aqui comentar e deixar a minha ignorância falar.
Vales a pena, amiga!
Beijinho
Minha esposa quando leu Manoel de Barros se encantou, mas depois que conheceu Guimarães Rosa, ficou um tanto frustrada. Sua impressão é que Manoel bebeu demais em Guimarães. Também tenho essa impressão, mas gosto da sua poesia.
Sou manoelino!
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