Gláucia Lemos
-------------------( A Maria Antônia Ramos Coutinho
-------------------- e seu encantamento por Ravel )
Venho trazida do meu sono a pouco e pouco, pela melodia que aumenta, repetitivamente. Vem, não sei de onde. Desperto devagar, até o completo tomar da consciência. É o bolero de Ravel na radiola da sala, enchendo a noite do meu apartamento. O disco que comprei na tarde anterior, quando a ventania de julho me tangia pelos passeios da avenida.
A frieza do meu universo interior punha-se a fazer unidade com o tiritar do clima de um julho impossível na cidade tropical, e o impulso de um trago de vinho em qualquer bar, inaugurou-se, impraticável a meus hábitos e à minha timidez.
O som de Ravel, na discoteca mais próxima, veio quente, profuso, e o desejo do improvável pifão de vinho fugiu do inferno e se tornou soberano, na mais que óbvia embriaguez do éden do bolero.
Mas agora eu dormia.
Nessa hora dormente, quem estaria habitando o meu espaço? Moro sozinha e há muito não hospedo amigos, na perfeita assunção da minha solitude.
Coração cheio de dúvidas, levanto-me. Quem adentraria a minha morada sem licença, se a ninguém concedo as minhas chaves?Se a meu santuário sagrado só a poucos eleitos permito ingresso? Não acendo as luzes e me esgueiro pelo corredor. Respiração opressa, pés descalços, ponho-me por detrás da cortina da porta.
A lua cheia deita um retângulo de luz na minha sala, pelo vidro da porta da varanda. Surpresa, descubro que, em uma dança flamenga, se divertem os gitanos pintados no par de espelhos do living. Na radiola a música de Ravel anima a dança sensualíssima dos dois.
A mulher tilinta medalhas do bracelete, e, em um pandeiro, marca o ritmo febril, enquanto a outra mão agita os panos coloridos da saia de babados. É uma mulher bonita que parece ter nos olhos a doçura inebriante das infusões das amoras.
O homem deixa ver o peito robusto aparecendo à frente da jaqueta negra que traz colada ao tronco elegante de ombros morenos e roliços. Mostra um brilho penetrante nos olhos escuros que não estão muito abertos, e um meio sorriso que parece prazer e revela paixão, na boca pequena. Com gestos ágeis levanta a companheira, rodopia, movimentando as pernas compridas dentro da calça de tecido branco. É belo e arrogante. Um macho esplendoroso. Seus pés dançarinos como asas no espaço, teriam percorrido todo o traçado da constelação de Virgem, desenhando-o pelo pó do caminho vencido entre todas as catedrais erguidas à Virgem Maria. Desde Bayeux a Evreux e Chartres. E de Reims até Amiens e até Lê Havre. Andarilho profano, moço místico, das andanças das tribos nômades, cumprindo a devoção de maio. Seus pés desgastados dos caminhos, eram ágeis como asas, na dança que fazia. Macho esplendoroso! Contemplo-o. Atraída.
Mais aumenta o andamento da melodia no crescendo do bolero, mais se agita o par, mais cresce a paixão no ritmo da dança. Mais a minha apatia se dilui e se alvoroça, cá dentro, a fêmea acorrentada. Estou inteira transportada para o espetáculo que evolui no quadrado de luz no piso da sala.
Eis que lentamente o retângulo se estreita. A luz da lua rarefaz-se por cima do edifício, e se apaga o reflexo no chão. A radiola cala. Os ciganos, de um pulo, retornam aos espelhos. São figuras pintadas em art noveau. Silêncio. Mudez noturna no apartamento. Só o tique-taque do relógio da copa estremece, segundo a segundo, a magia do torpor.
Devagar deixo a cortina e me encaminho atravessando a sala, agora em penumbra. No sofá, reclinada, contemplo os ciganos pintados no brilho dos suportes de espelho. Lá está ela, de cabelos em ondas fugindo do lenço ao encontro dos ombros. Sorriso de tinta na boca delicada. As flores sem vida, as medalhas quietas, o pandeiro em silêncio. Graciosa mulher! À esquerda ele está. O bigode de nanquim, pouco acima dos lábios de cantos marcados. O olhar perigoso no escuro dos olhos, plenos de avidez bem posta pelo artista. As moedas opacas, a pistola antiga, a bem sugerida malícia, no sugestivo sorriso. Moço sensual! Ainda estou presa da mesma magia. Meu corpo tomado da estranha paixão que a dança flamenga espalhou no ambiente.
Vou à radiola e movimento o braço. Faço recomeçar Ravel no som do bolero. De olhos no espelho aguardo absorta. Vem o som em crescendo. Ritmo delirante me alucina a febre. O cigano se anima sem muita demora. As pálpebras se movem. Descerram-se os lábios, e as pontas dos dentes, brancas de alabastro, se mostram para mim. Não é só um sorriso, é bem mais, um convite. Ele salta do espelho. Me toma em seus braços. Dança, rodopia, me ergue no espaço. Seu corpo trescala forte aroma de vinho. Cheira sua boca a erva-doce fresca. Meu corpo está leve, minha boca febril. Sou feita de névoa tangida por ele, compasso a compasso. Os meus olhos e os olhos de sol do moreno cigano são o fio alongado de uma mesma paixão. Não vêem, não cansam, pertencem ao momento.
Ravel recrudesce. A sala se amplia e se torna infinita. Os sons do universo são os sons dessa hora.
Eu quero esse homem! Eu quero esse homem!
Escapo dos braços em um salto ligeiro. Pego da parede a mulher do espelho e atiro para a rua, com o vigor do ciúme. Escuto o ruído de vidros quebrados, no encontro da peça com o muro do prédio. Uma mancha de sangue ainda conta esta história.
O homem me busca. Me arrasta pelo meio. Ravel se supera. Há uma orquestra na sala. O som é infinito. Emoção de Deus ao criar o universo. Ravel onipotente, crescendo, crescendo, crescendo, mais alto, mais som, mais ritmo, luz!!! Séculos. Milênios!
Sou coisa, sou nada, sou toda o cigano. Até o fim dos tempos.
-------------------- e seu encantamento por Ravel )
Venho trazida do meu sono a pouco e pouco, pela melodia que aumenta, repetitivamente. Vem, não sei de onde. Desperto devagar, até o completo tomar da consciência. É o bolero de Ravel na radiola da sala, enchendo a noite do meu apartamento. O disco que comprei na tarde anterior, quando a ventania de julho me tangia pelos passeios da avenida.
A frieza do meu universo interior punha-se a fazer unidade com o tiritar do clima de um julho impossível na cidade tropical, e o impulso de um trago de vinho em qualquer bar, inaugurou-se, impraticável a meus hábitos e à minha timidez.
O som de Ravel, na discoteca mais próxima, veio quente, profuso, e o desejo do improvável pifão de vinho fugiu do inferno e se tornou soberano, na mais que óbvia embriaguez do éden do bolero.
Mas agora eu dormia.
Nessa hora dormente, quem estaria habitando o meu espaço? Moro sozinha e há muito não hospedo amigos, na perfeita assunção da minha solitude.
Coração cheio de dúvidas, levanto-me. Quem adentraria a minha morada sem licença, se a ninguém concedo as minhas chaves?Se a meu santuário sagrado só a poucos eleitos permito ingresso? Não acendo as luzes e me esgueiro pelo corredor. Respiração opressa, pés descalços, ponho-me por detrás da cortina da porta.
A lua cheia deita um retângulo de luz na minha sala, pelo vidro da porta da varanda. Surpresa, descubro que, em uma dança flamenga, se divertem os gitanos pintados no par de espelhos do living. Na radiola a música de Ravel anima a dança sensualíssima dos dois.
A mulher tilinta medalhas do bracelete, e, em um pandeiro, marca o ritmo febril, enquanto a outra mão agita os panos coloridos da saia de babados. É uma mulher bonita que parece ter nos olhos a doçura inebriante das infusões das amoras.
O homem deixa ver o peito robusto aparecendo à frente da jaqueta negra que traz colada ao tronco elegante de ombros morenos e roliços. Mostra um brilho penetrante nos olhos escuros que não estão muito abertos, e um meio sorriso que parece prazer e revela paixão, na boca pequena. Com gestos ágeis levanta a companheira, rodopia, movimentando as pernas compridas dentro da calça de tecido branco. É belo e arrogante. Um macho esplendoroso. Seus pés dançarinos como asas no espaço, teriam percorrido todo o traçado da constelação de Virgem, desenhando-o pelo pó do caminho vencido entre todas as catedrais erguidas à Virgem Maria. Desde Bayeux a Evreux e Chartres. E de Reims até Amiens e até Lê Havre. Andarilho profano, moço místico, das andanças das tribos nômades, cumprindo a devoção de maio. Seus pés desgastados dos caminhos, eram ágeis como asas, na dança que fazia. Macho esplendoroso! Contemplo-o. Atraída.
Mais aumenta o andamento da melodia no crescendo do bolero, mais se agita o par, mais cresce a paixão no ritmo da dança. Mais a minha apatia se dilui e se alvoroça, cá dentro, a fêmea acorrentada. Estou inteira transportada para o espetáculo que evolui no quadrado de luz no piso da sala.
Eis que lentamente o retângulo se estreita. A luz da lua rarefaz-se por cima do edifício, e se apaga o reflexo no chão. A radiola cala. Os ciganos, de um pulo, retornam aos espelhos. São figuras pintadas em art noveau. Silêncio. Mudez noturna no apartamento. Só o tique-taque do relógio da copa estremece, segundo a segundo, a magia do torpor.
Devagar deixo a cortina e me encaminho atravessando a sala, agora em penumbra. No sofá, reclinada, contemplo os ciganos pintados no brilho dos suportes de espelho. Lá está ela, de cabelos em ondas fugindo do lenço ao encontro dos ombros. Sorriso de tinta na boca delicada. As flores sem vida, as medalhas quietas, o pandeiro em silêncio. Graciosa mulher! À esquerda ele está. O bigode de nanquim, pouco acima dos lábios de cantos marcados. O olhar perigoso no escuro dos olhos, plenos de avidez bem posta pelo artista. As moedas opacas, a pistola antiga, a bem sugerida malícia, no sugestivo sorriso. Moço sensual! Ainda estou presa da mesma magia. Meu corpo tomado da estranha paixão que a dança flamenga espalhou no ambiente.
Vou à radiola e movimento o braço. Faço recomeçar Ravel no som do bolero. De olhos no espelho aguardo absorta. Vem o som em crescendo. Ritmo delirante me alucina a febre. O cigano se anima sem muita demora. As pálpebras se movem. Descerram-se os lábios, e as pontas dos dentes, brancas de alabastro, se mostram para mim. Não é só um sorriso, é bem mais, um convite. Ele salta do espelho. Me toma em seus braços. Dança, rodopia, me ergue no espaço. Seu corpo trescala forte aroma de vinho. Cheira sua boca a erva-doce fresca. Meu corpo está leve, minha boca febril. Sou feita de névoa tangida por ele, compasso a compasso. Os meus olhos e os olhos de sol do moreno cigano são o fio alongado de uma mesma paixão. Não vêem, não cansam, pertencem ao momento.
Ravel recrudesce. A sala se amplia e se torna infinita. Os sons do universo são os sons dessa hora.
Eu quero esse homem! Eu quero esse homem!
Escapo dos braços em um salto ligeiro. Pego da parede a mulher do espelho e atiro para a rua, com o vigor do ciúme. Escuto o ruído de vidros quebrados, no encontro da peça com o muro do prédio. Uma mancha de sangue ainda conta esta história.
O homem me busca. Me arrasta pelo meio. Ravel se supera. Há uma orquestra na sala. O som é infinito. Emoção de Deus ao criar o universo. Ravel onipotente, crescendo, crescendo, crescendo, mais alto, mais som, mais ritmo, luz!!! Séculos. Milênios!
Sou coisa, sou nada, sou toda o cigano. Até o fim dos tempos.
Do livro Procissão e outros contos (FUNCEB, 1996 - Selo As Letras da Bahia).
4 comentários:
Tire-se o "l" de Ravel e talvez compreendamos a gênese das "raves" de hoje em dia. Hipérbole. Cresce a insatisfação humana, superlativiza-se a ansiedade, aumentam os dramas. Mas a vida segue, infinita, em sua tranquilidade essencial...
"Emoção de Deus ao criar o Universo". Grande conto.
Chiz: Não seria X com sofisticação? Ainda bem que você registrou ser uma hipérbole. Será que o grande RAvel inspirou as "raves" de hoje? Obrigada por comentar.A propósito, sua redação me parece bem familiar, mas respeito.Posso estar enganada. Pedro: Obrigadíssima.
Emoção foi conhecer este conto lá na Casa de Jorge Amado, lido pelo Carlos Ribeiro, sob o olhar emocionado de Glaúcia...
Bj
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