Eliana Mara Chiossi
Então, da janela eu vejo na pele que chove, outra vez. Pingos caíram no quarto. A chuva veio sem avisos e a última janela aberta convidou a chuva para dentro. Molhou a cortina, molhou o papel sobre a cama. O papel sobre a cama atestava um óbito. E o corpo que segurava o papel olhava sem crer. Uma vida inteira resumida naqueles dados exatos. Véspera de acertos burocráticos, que não aguardariam dor nem alegria acomodadas. Até sentir saudade cansava. A vontade de chorar era irritante. Algo que passava do limite. A cada movimento prático, uma evocação. Arrependimento, conversas insuficientes, tantos beijos sonegados. No mapa da história desse amor, eu via agora as inúmeras vezes em que poderia ter diminuído o tom de voz. As inúmeras vezes em que eu poderia ter soltado. Todos os momentos que eu deveria ter acolhido. Vistos em perspectiva, os momentos de ódio, de impaciência, restavam exagerados, desmedidos. Para voltar ao velório, decidi tomar outro milésimo banho. Outra roupa preta, um sapato confortável, grampos no cabelo e um agasalho. Eu sentia um frio desmesurado. Parece que só dentro de mim fazia frio.
Tudo preparado para o Natal. Aquela correria típica não iria atrapalhar os planos de reunir a família. Ele me pediu o carro. Ia buscar um amigo. Estava agitado, há dias. Pela primeira vez, em dez anos, ele iria estar com o pai e a mãe juntos novamente. Foi a luta dele pela reconciliação que nos trouxe de volta ao lar. Então, o Natal seria uma festa verdadeira. O frango desossado estava quente e eu decorava o prato com pedaços de frutas e legumes cortados artisticamente. O interfone tocou e antes de atender tive que limpar a mão cheia de gordura. A cozinha exalava aromas diversos. Eu, inspirada, ouvia um blues e tomava vinho tinto. Que ia regando alguns pratos de carne. André ia passar na casa de Paulo e eles pegariam a torta encomendada com uma semana de antecedência. A torta de morango e chocolate. Algumas pessoas já arrumavam a mesa, ajeitavam os arranjos da árvore. Eu e ele ainda desajustados, trocávamos carinhos disfarçados. O filho havia trazido de volta nosso bem mais precioso. Era uma reaproximação desejada. Tudo agora parecia possível de ser refeito. Móveis novos, lençol novo, a camisola do dia guardada sob o travesseiro. Não sei dizer como tudo começou a desmoronar. Quando percebi, estava alucinada, descendo as escadas. Não havia tempo para esperar o elevador. Acho que estava descalça, acho que era dezembro, talvez eu estivesse com bobs na cabeça, não sei ao certo se cheguei sozinha. Sei que tive um pensamento de louca: que pena, uma torta tão bonita. A torta estava espatifada numa moita, coisas que a gente não entende quando vê um acidente de carro. A cabeça de André pendia e seus cabelos longos se moviam, porque de repente, naquela noite de Natal, o vento chegou trazendo uma chuva e más nóticias.
Então, da janela eu vejo na pele que chove, outra vez. Pingos caíram no quarto. A chuva veio sem avisos e a última janela aberta convidou a chuva para dentro. Molhou a cortina, molhou o papel sobre a cama. O papel sobre a cama atestava um óbito. E o corpo que segurava o papel olhava sem crer. Uma vida inteira resumida naqueles dados exatos. Véspera de acertos burocráticos, que não aguardariam dor nem alegria acomodadas. Até sentir saudade cansava. A vontade de chorar era irritante. Algo que passava do limite. A cada movimento prático, uma evocação. Arrependimento, conversas insuficientes, tantos beijos sonegados. No mapa da história desse amor, eu via agora as inúmeras vezes em que poderia ter diminuído o tom de voz. As inúmeras vezes em que eu poderia ter soltado. Todos os momentos que eu deveria ter acolhido. Vistos em perspectiva, os momentos de ódio, de impaciência, restavam exagerados, desmedidos. Para voltar ao velório, decidi tomar outro milésimo banho. Outra roupa preta, um sapato confortável, grampos no cabelo e um agasalho. Eu sentia um frio desmesurado. Parece que só dentro de mim fazia frio.
Tudo preparado para o Natal. Aquela correria típica não iria atrapalhar os planos de reunir a família. Ele me pediu o carro. Ia buscar um amigo. Estava agitado, há dias. Pela primeira vez, em dez anos, ele iria estar com o pai e a mãe juntos novamente. Foi a luta dele pela reconciliação que nos trouxe de volta ao lar. Então, o Natal seria uma festa verdadeira. O frango desossado estava quente e eu decorava o prato com pedaços de frutas e legumes cortados artisticamente. O interfone tocou e antes de atender tive que limpar a mão cheia de gordura. A cozinha exalava aromas diversos. Eu, inspirada, ouvia um blues e tomava vinho tinto. Que ia regando alguns pratos de carne. André ia passar na casa de Paulo e eles pegariam a torta encomendada com uma semana de antecedência. A torta de morango e chocolate. Algumas pessoas já arrumavam a mesa, ajeitavam os arranjos da árvore. Eu e ele ainda desajustados, trocávamos carinhos disfarçados. O filho havia trazido de volta nosso bem mais precioso. Era uma reaproximação desejada. Tudo agora parecia possível de ser refeito. Móveis novos, lençol novo, a camisola do dia guardada sob o travesseiro. Não sei dizer como tudo começou a desmoronar. Quando percebi, estava alucinada, descendo as escadas. Não havia tempo para esperar o elevador. Acho que estava descalça, acho que era dezembro, talvez eu estivesse com bobs na cabeça, não sei ao certo se cheguei sozinha. Sei que tive um pensamento de louca: que pena, uma torta tão bonita. A torta estava espatifada numa moita, coisas que a gente não entende quando vê um acidente de carro. A cabeça de André pendia e seus cabelos longos se moviam, porque de repente, naquela noite de Natal, o vento chegou trazendo uma chuva e más nóticias.
Ilustração: capa do livro de Eliana Mara Chiossi, Fábulas Delicadas (Escrituras, 2009).
13 comentários:
Fiquei atônita, entrei na história. Q conto, hem!
Um lindo conto.Leveza e sobriedade na narrativa!
É, um grande conto, bem ritmado, bem estruturado, comovente. Muito bom.
Que conto tocante, Eliana.
Lindo e muito bem construído.
Parabéns!
Morango e chocolate...chuva...Eliana...Mara..doce...nunca amara...tudo isso são reflexos do seu encontro com a palavra, um encontro marcado há muito e que se comprova assim contos,crônicas,versos...
Grande conto, Eliana; e que desfecho!
Livro completamente lindo...
Para Eliana, parabéns pelo talento.
Que conto! Parabéns a Eliana! Adorei e concordo com a Aeronauta: que desfecho! P.S: Perdi um amigo (dois anos atrás), justamente, numa noite de Natal. Esse conto, além de muito bom, mexeu comigo. Um beijo, Gerana. Obrigada pela visita em meu blog e pelas felicitações!
Parabéns Eliana, muito bom o conto
é incrível como você consegue tratar temas delicados com tanta leveza.
Eliana é pura delicadeza.
Essas imagens...essa estrutura...esses instantes de vida...parabéns Eliana...muito, muito bom!!!
OBS: e parabéns a você, GERANA, é claro, pela sensível escolha!!!
ABRAÇOS!!!
Parabéns menina, por esta narrativa: paixão pelo ritmo, pelas ondas, pela flutuação... Um belo conto Mara!
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