sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

31 DE JANEIRO: PARABÉNS PARA ARAMIS


Quando foi publicado o primeiro livro de contos de Aramis Ribeiro Costa, A nota de Rosália, eu não conhecia o escritor. Por ocasião do segundo volume de contos, A assinatura perdida, ganhei a seguinte dedicatória: "Para Gerana - vestida de amor e poesia". No seguinte, O mar que a noite esconde, está: "Para Gerana - mais este mar navegado". Em O fogo dos infernos: "Para Gerana - e nossas histórias unidas". Em O baú dos inventados: "Para Gerana - que caminha ao meu lado os velhos e os novos passos". Os bandidos traz: "Para Gerana - a permanência do amor". No seu mais recente livro de contos, Reportagem urbana, lemos: "Para Gerana - e a dor sem termo das nossas perdas". Ao ler esta dedicatória, que me fez chorar muito, entendi que a dor em comum (para mim, a perda de meu pai e, para ele, a perda da mãe) havia mergulhado nós dois numa outra fase da vida. E todavia estamos vivendo-a. Meu pai dizia que a vida é cheia de fases, o importante é saber conviver com elas. Continuamos aprendendo a conviver com a "dor sem termo das nossas perdas". O conto abaixo é inédito e, mais uma vez, me fez chorar porque reflete o sentimento de solidão, na figura do barco, provocado pela morte de quem amamos.
Aramis, mais um aniversário seu e não sei o que escrever a não ser isto, usando a rima mais comum da nossa língua: seguimos juntos nesta dor. Com amor.



UM BARCO NO MAR
Aramis Ribeiro Costa


De repente, tudo lhe pareceu negro e sem saída. A amargura caía pesada sobre sua alma, e eram toneladas de amargura, que não podiam ser removidas com a simples vontade. Então, olhou o mar à distância, do alto do seu apartamento, no décimo primeiro andar, e compreendeu que precisava navegar sem destino por aquelas águas que se perdiam no horizonte, enfrentar as ondas, as correntes marítimas, o vento, quem sabe a tempestade, a noite, o frio, a fome. Compreendeu que precisava navegar sem saber se voltava, sem saber se encontrava outro porto, deixando simplesmente que o mar o levasse por mares insuspeitados, ou que o tragasse no mais profundo das suas águas.
Sim, tudo era negro e tudo era sem saída, como são todas as crises enquanto não passam, como são todas as amarguras enquanto não se desfazem, como são todas as inseguranças que envenenam a alma enquanto as soluções não chegam. Aquele mar azul que avistava do alto e à distância parecia o horizonte buscado, ou então o fim abrupto e trágico da circunstância intensamente sofrida. Precisava navegar com as velas abertas para o vento mais forte, deixar que a quilha da embarcação rompesse as correntes contrárias, as ondas, o tumulto das águas, como alguém que tenta caminhar em sentido contrário à multidão, acotovelando-se, sofrendo empurrões, ouvindo protestos, mas persistindo na caminhada.
De súbito, do alto do seu apartamento, percebeu, na faixa azul que ia de uma ponta a outra na extensão que a sua vista alcançava, um veleiro rompendo vagarosamente as águas. Naquela distância parecia um barco de proporções reduzidas, mas era difícil dizer. A proa erguia-se e abaixava-se, para logo erguer-se e tornar a abaixar-se, como se fosse ao fundo e voltasse, como se naufragasse e submergisse, desaparecendo por instantes e logo voltando a compor a paisagem. Não havia outro barco em toda a imensa faixa azul e líquida que era vista do alto e à distância, aquela faixa azul que emendava, na linha curva do horizonte, com a amplidão de azul mais suave e sem ondas do espaço infinito, azul sobre azul, tom sobre tom.
Então, ele entrou naquele barco, postou-se diante da roda do leme, segurou-a com mão firme, assumiu o comando da embarcação solitária e perdida no mar imenso. Diante dos seus olhos fixos as ondas agigantaram-se, enfureceram-se, bateram com violência no casco, como se quisessem rompê-lo, atiçaram água e sal no estreito convés, seus pés de marinheiro encharcaram-se, foram sete pragas, uma cada dia. A proa erguia-se e abaixava-se, para logo erguer-se e tornar a abaixar-se, agora em movimentos insuportavelmente bruscos, que pareciam irreversíveis para, logo em seguida, pela continuidade, parecerem intermináveis. Na popa, a esteira alvíssima de espumas.
Daquele barco ele via-se à distância, lá no alto do seu apartamento no décimo primeiro andar, e com ele toda a sua imensa amargura, sua circunstância negra e sem saída, sua prisão de ansiedade. Segurando o leme com firmeza, as velas pandas, côncavas ao sopro do vento mais forte, ele apenas quis vencer aquele espaço imenso e difícil, seguir para compor outra paisagem mais adiante, renovada, sem correntes contrárias, sem ondas contrárias, sem ventos contrários, uma paisagem onde não precisasse submergir para depois reaparecer. Compreendeu que o final dos tempos, sempre anunciado e jamais acontecido, ocorre a cada momento para cada um que mergulha irreversivelmente nas águas fundas e escuras. Compreendeu que as águas fundas e escuras estavam permanentemente a um passo do convés, sempre a um passo, à frente, aos lados, à retaguarda do pequeno barco, bastando apenas o salto para o mergulho. Compreendeu que o desespero é uma tempestade que é preciso vencer.
Naqueles breves instantes, no comando do barco, enfrentou a tempestade, a noite, o frio, a fome, desviou-se de um inesperado e perigoso rochedo, mergulhou nas águas profundas e escuras de onde nem sempre se volta, mas subiu ao leme no terceiro dia porque era preciso levar aquele barco, singrar aquele mar desconhecido e revolto, mas que de repente se abria em azul. Finalmente, venceu o espaço.
Do ângulo da sua janela, no alto do décimo primeiro andar, já não podia ver a pequena embarcação que seguia vagarosamente, singrando e rompendo as águas, as correntes, as ondas contrárias, com suas velas brancas enfunadas, com sua esteira alvíssima de espumas após. Então, fechou a janela e foi compor outra paisagem.


Nota: do livro A moça acompanhada, pequenos contos e crônicas.

10 comentários:

Anônimo disse...

Grande Aramis! Parabéns. tem meu afeto duplamente: por ser quem é, talentoso e simpático, e através da nossa querida Gerana. A continuidade do seu êxito é o que lhe envio nos meus votos de aniversário. Um beijo

Anônimo disse...

Agora, sobre o conto: imagens perfeitas da amargura da qual se precisa fugir,tendo a certeza de que, seja onde for, ela estará sempre a um passo. Não é possivel partir com o barco da paisagem, mas sempre se pode acreditar que o barco, partindo, consegue levá-la. Melhor criar outra paisagem. Muito reflexivo este conto.Um beijo.

Fred Matos disse...

Parabéns (e um forte abraço) para o Aramis, também pelo ótimo conto.
Beijo, Gerana.

Anônimo disse...

Parabéns, Aramis.
Abraço.

Anônimo disse...

Parabéns, caro contista. Tudo de bom.

Senhorita B. disse...

Aramis,
Desejo enormes alegrias hoje e sempre.
abraços,
Renata

Anônimo disse...

Há um provérbio chinês que Earl Derr Biggers, o genial criador de Charlie Chan, gostava de botar na boca do seu personagem: "Uma palavra meiga aquece por muitos invernos". Obrigado. Aramis.

Anônimo disse...

Venho tarde, mas quero juntar-me ao coro dos parabéns. Acabei de ler agora o "Reportagem Urbana", muito gentilmente enviado pela Gerana (e autografado pelo Aramis - é: é ele que faz anos e eu é que recebo presentes) e, em breve escreverei sobre o livro no meu blogue. Quanto a este conto, ainda não o li. Mas hei de ler. E nessa altura, direi algo mais.

Anônimo disse...

Um conto que é um poema sobre a escrita. E muito diferente do registo de "Reportagem Urbana", o que revela um espírito inquieto e insatisfeito. O espírito de onde nasce toda a boa literatura. Parabéns, mais uma vez.

Letícia Losekann Coelho disse...

Estou atrasada mas desejo tudo de bom para Aramis Gerana!
E o conto é lindíssimo!
Beijos menina :)