sábado, 25 de outubro de 2008

MEU PRIMEIRO SÚBITO AMOR

Gerana Damulakis



Eu corri para a janela ampla que havia no segundo andar da nossa casa na Pituba. Ela dava para o pátio e se podia ver o carro entrando. Corri para ela assim que ouvi o barulho do carro. Vi meu pai sair da direção, minha avó do banco de trás e minha mãe do banco da frente com ele nos braços. Procurei um bom lugar e me escondi. Depois de um tempo que me pareceu enorme, escutei vozes que subiam as escadas, mas segui escondida. Ninguém deu por minha falta porque não ouvi que estavam me procurando. Observei que deixaram o que parecia um embrulho no quarto e desceram. Conferido o silêncio, tratei de ir em busca do que foi colocado no quarto. E lá estava ele no berço. Eu não tinha idéia do que sentia sobre tudo que estava se passando, sobre coisas que estavam mudando; pois era certo que estavam mudando: meu reinado de filha única findando. Então espiei para dentro do berço e botei os olhos na mais bela criatura jamais vista por mim. Ele era lindo, com a cabeça cheia de um cabelinho fino e muito louro, todo gordinho e com um nariz que sobressaía no rostinho perfeito. Foi a maior emoção da minha então curta vida de quase quatro anos. E foi um choque sentir aquela torrente de amor súbito diante da beleza dourada. Daí para frente só aumenta o que sinto por ele: que grande amor. Ele brincou com um monte da mesma boneca, a Barbie, eu brinquei com carrinhos e trens. Fomos um apoio e um conforto em inúmeras situações. Quando fui para a Espanha fazer a pós-graduação, ele me disse que eu era a primeira grande perda da vida dele; naquele tempo nós ficávamos até alta madrugada conversando e de um dia para o outro eu não estaria mais ali no quarto ao lado. Eu fui a primeira grande perda da vida dele e ele foi o meu primeiro grande ganho. Anos depois, eu já de volta, foi a vez dele ir estudar fora, mudou-se para o Rio de Janeiro e a faculdade era pela noite; eu só dormia depois da meia-noite, após telefonar e verificar que ele havia chegado em casa. Com a recente morte de nosso pai, ele tentou preencher meu vazio no que podia, fazendo coisas habituais com as quais meu pai me mimava: comprando montes do chocolate da mesma marca, por exemplo. Também faz questão de dizer “só você para resolver tudo”, que era uma frase que meu pai dizia para mim. Fisicamente somos tão diferentes: ele tem 1,83 m e eu, baixinha, tenho 1,62m, mas somos ambos magrinhos; ele sempre foi louro, e eu jamais fui, mas temos o mesmo nariz de grego (o dele é mais bonito). No trato com as pessoas também somos diferentes; ele é reservado, já eu sou expansiva, mas lá dentro há a mesma intranqüilidade. Hoje, um é para o outro a ponte com um passado comum que gera um conhecimento profundo. Andamos pelas ruas de mãos dadas porque precisamos desse contato, nos perdemos em abraços demorados que dizem mais que palavras e temos o especial gosto ao verificar o quanto nos parecemos nos sentimentos e na maneira de encarar a vida. Somos frutos de uma mesma história.

Foto tirada por Gerácimos Damulakis, meu pai, propositadamente em preto e branco para aproveitar o raio de sol que atingia a meu irmão e a mim, conferindo um ar artístico à fotografia.

12 comentários:

Anônimo disse...

Isto não é ficção. Isto para mim é ficção. Não presenciei aquelas cenas iniciais. Acompanhei-as todas através do seu olhar. Senti o ambiente, o pulsar do coração da menina. Ouvi os movimentos na escada, na casa. E tudo isto, Gerana, você passou magnificamente. Isto é arte.

Gerana Damulakis disse...

Que palavras bonitas, Flamarion! Muito obrigada. Fiquei comovida.

Senhorita B. disse...

Quase morri, quando meu irmão foi morar na Espanha. Na véspera da viagem, dormi no seu quarto e parecíamos num filme de Woody Allen. Atropelávamos palavras, cobertos de medo. Agora fui eu quem me mudei e não foi diferente.
Dizem que eu, aos quatro anos, num ataque de fúria e ciúme, joguei no lixo todas as suas chupetas. Mal sabia que o bebê que chegava nos braços de minha mãe, se tornaria um dos maiores amores da minha vida.
Lindo seu texto! Tanto que, emocionada, utilizei o comentário como confessionário!
Bjs

Gerana Damulakis disse...

Legal, Renata. É bom demais este sentimento de cumplicidade com o irmão, não é? Nunca senti ciúme, sempre achei que ele era algo que me faltava e, quando chegou, me completou. E apesar da diferença de idade não ser tão grande, sempre senti um quê maternal para com ele.

Letícia Losekann Coelho disse...

Gerana,
Coisa mais linda esse texto!
As sensações de estar escondida... Espiando as cenas, o primeiro olhar do berço, o misto de sensações... Isso tudo é muito bonito! Adorei o título e a foto magnífica :)
Beijos querida

Carlos Vilarinho disse...

Um olhar diferente percebe tudo.

Anônimo disse...

Ainda estou apertando os olhos porque turvos e úmidos como estão não me permitem ver. UM irmão é um pedaço do coração, somos da mesma massa, cada um é um pouco o outro. Você mostra isso tão bem! Que emoção!
Não importa se o texto é confessional, a arte não tem preconceito, só precisa ser arte, como o seu txto é.(Vc ainda tem o mesmol olhar malicioso, inquieto).

aeronauta disse...

Puxa, Gerana, que presente de domingo: estou aqui às lágrimas, seu texto tocou minha alma. Lindo, as imagens todas ficaram aqui dentro, e mais ainda a emoção de sentir o abraço constante desses dois irmãos que andam de mãos dadas.
Adorei, adorei.

Bípede Falante disse...

Tecnicamente, tenho quatro irmãos: dois homens e duas mulheres. Eu sou a última pessoa a chegar na família. Já nasci grande, não foi o caso de me enxergarem como criança. Desses quatro irmãos, um homem e uma mulher são filhos únicos. Mal me viram. Os outros dois são meus irmãos. Ela menos que ele. Não era muito fraterna. Vem conseguiu ser. E ele, "suspiro", com ele vivo como você e o seu irmão.

M. disse...

O que seria da literatura sem a vida? O que seria da vida sem a literatura? Neste texto encontrei as duas: vida e literatura.

Lidi disse...

O blogue da Aeronauta me trouxe aqui. Adorei o texto, me emocionou. Adorei o blogue, voltarei. Beijo!

Edu O. disse...

Cheguei por indicação do último post de Aeronauta. Cheguei e fiquei. Tenho um amor imenso por minha irmã, somos cúmplicas, amigos, compadres. eu texto é lindo!