quinta-feira, 21 de agosto de 2008

UM DOMINGO ESCOCÊS


Gláucia Lemos

Morreria em um domingo, costumava dizer. A amiga benzeu-se uma vez. Ave Maria. Dizendo bobagens, Deus é mais!
Todo domingo é lenho de sacrifício, silêncio e solidão. A contínua solidão é a definição da morte. Que mais teria no seu morar de mosteiro em que cada um se recolhe a seu canto, como quem incha a barriga de alimento e se entoca, e lá fica? O mundo cá de fora é dos que vivem. Esses, sim, passeiam como gatos, seus pelos lambidos pelas salas, pelas varandas e avenidas, patas de pantufas japonesas alisando sintecos e tapetes e ladrilhos e calçadas, e, nos telhados, amam.
Domingo é o prédio vogando emudecido numa, apenas perceptível, superfície de nostalgia. Lá, bem ao longe os eventuais saltos de sapatos quase gritam em contato com as calçadas. Lá, bem ao longe, ronronam os motores à frente dos óculos escuros dos que, nos dorsos bronzeados cheirosos a cerveja, regressam do mar. Aqui perto tilinta o triângulo que convida a degustar cavaco, àqueles que transitam. Ninguém mais compra cavaco. Por que será que ainda tilintam os triângulos na rua em que todas as crianças e jovens estão no aeroclube apostando pulos no colchão inflável? Tilintam certamente para anunciar que alguém habita a tarde de Domingo, e o anuncia ferindo a mudez e entrando pelo apartamento para dessacralizar a solidão.
A amiga não retornara das férias com certeza. Tivesse retornado, já haveria de estar narrando as maravilhas das viagens. Fazia falta sua voz ao telefone, repetindo os assuntos que revisitava iguais, todos os dias, com a pontualidade do galo castanho que cantava nos amanheceres da sua infância.
Na secretária pisca o vermelho teimoso, reclamando que, há mais de duas horas, um recado qualquer a espera. Não vai atender. Deveria ser Frederico, quem mais , na tarde de Domingo? Frederico que não gosta de ser chamado Fred, diz que Fred é frescura. Só Frederico pensaria isso. Só Frederico teimaria em ligar pela décima vez para comentar o filme que um dia produziria, mas nunca se mexia para tanto. Quem queria escutar a monotonia do filme de Frederico para somar à monotonia do Domingo? Xerox do anterior e do outro e do outro.
Ainda se gostasse de bebida...
Loira a transparência de um Bell's ali em frente convida à diferença entre os domingos. Ainda se gostasse...
São 16 e 45 exatamente.
Os porta-retratos sorriem idiotamente para o vazio da sala. Para que tantos sofás sem função, não entendia. Maciez que não conhecia o corpo daquele que se fez esperar e se guardou em mudez, como todos os que se esquecem de vir a quem os espera. Era só mais um, como os que bem conhecia, com todo o egoísmo e toda a indiferença dos gatos. Cabia-lhe bem o epíteto de gato.
Parece que alguém ressona em algum quarto no abafamento da tarde. Alguém que dorme e não sonha. Os que sonham entendem de sonhos e de solidão dos sozinhos. Não se entocam com a auto- contemplação inerente aos gatos.
Alguém podia ligar agora. Alguém que não Frederico. Justamente agora e dizer qualquer coisa. Qualquer coisa serviria. Fosse até que estaria feliz e não precisava dela. Seria a lâmina cortando o silêncio e partindo a vida. Envenenada, trazendo a morte após seu corte, mas seria a voz que a mataria finalmente após a agonia do Domingo. Quando a amiga regressasse das férias, ligaria, e não a encontrando, diria a alguém: Ela sempre falou que morreria na solidão de um Domingo.
Todo o Bell's da garrafa transparente, loiro como um galã escocês, desceu pela garganta e arranhou a laringe, desceu pelas veias e queimou as águas que circulavam no trajeto do sangue. Até que estorricou o coração e isolou definitivamente a solidão do Domingo. Nunca mais solidão. Ou solidão para sempre.
Ela sempre dizia.

Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta e brinda seus leitores com este conto. Foto de Poesis T, retirada do Flickr.

4 comentários:

Anônimo disse...

A voz desse narrador puxou minha voz para ler o texto em voz alta (é muita voz). Engraçado, agora, depois da leitura do texto, percebo que prestei mais atenção à forma do que ao conteúdo, pois a percebi de pronto. Vou ler o texto de novo. Beijos.

Anônimo disse...

O narrador surpreendente no final. Um conto excelente, tanto na estrutura, quanto no desfecho. Parabéns!

Anônimo disse...

Obrigada a Flamarion e a Pereira. Um beijo.

Gerana Damulakis disse...

Surpreendente o desfecho! já disse, por e-mail, o quanto gostei.