terça-feira, 8 de abril de 2008

AUTOMN'S LEAVES & GAIVOTAS



Gláucia Lemos


A senhora grisalha recostou a cabeça na almofada do espaldar e se entregou à contemplação da dança das gaivotas. Uma coreografia contínua, sem jamais se repetir. Sempre amara as gaivotas. Nas excursões costumeiras eram elas o seu espetáculo preferido. O marido não saira naquela manhã. Andava indisposto. Seria um mal-estar passageiro, era melhor que ficasse lendo no camarote. Ele não gostava de excursionar, acompanhava-a para ser gentil, preferia uma rede na varanda com um livro policial diante dos olhos. No mar, qualquer motivo servia para permanecer lendo, recolhido, não deveria aborrecê-lo. Ficaria em companhia das gaivotas. Era gostoso o silêncio do convés. Só o ruído das ondas e agora a música de algum rádio, a pouco volume, iniciando os compassos de Automn`s leaves. Fazia tempos não escutava aquela melodia. Lembrava uma excursão, há quantos anos? Trinta? Era solteira ainda. Dançava nas festinhas a bordo. O rosto iluminou-se. As ruguinhas dos cantos dos olhos como que desapareceram, a pele como que se aveludou novamente. A brisa agitou-lhe os fios grisalhos, desfazendo o penteado simples, de cabelos aparados.
Dançara Automn`s leaves noite adentro e depois fora para o convés com o rapaz, aproveitar a lua cheia. Era um rapaz moreno de olhos azuis, tão azuis! Namoraram durante toda a excursão e, encantados, olhavam juntos as gaivotas. Onde andaria agora aquele moço, tão docemente recordado trinta anos depois?
Aquela senhora, parecia já tê-la visto em algum lugar. O sorriso. Era o sorriso, era o jeito de postar-se no convés olhando as gaivotas. Lembrava alguém. Seria possível? Os cabelos grisalhos curtinhos... Ela possuía uma bela cabeleira castanha caída sobre os ombros. Bobagem, seria a sugestão da manhã amena, do vôo das gaivotas, daquela música, no ar. Aquela música... Não, não parecia exatamente com ela, apenas fazia-o lembrá-la. Estava ficando um sentimental com o passar dos anos. Claro. Boas lembranças não precisam ser esquecidas. Para que as vivemos senão para podermos recordá--las? Era uma moça alta, esbelta, aquela parece um pouco menor, e os olhos, os dela eram maiores. Mas o sorriso e o jeito de postar-se no convés. Coincidência. Apenas coincidência.
- Bom dia, senhora. Gosta de olhar as gaivotas?
- São lindas.
- São mesmo. Também perco horas acompanhando seus passeios pelo céu.
- Eu acho que ganho horas olhando para elas. Ganho também em recordações enquanto as contemplo.
- Como eu.
Os olhos azuis e os olhos castanhos encontraram-se e riram ao mesmo tempo demoradamente, tão demoradamente.
- O barco está atracando. Foi um prazer conhecê-la, senhora. Recomende-me a seu marido.
- Também tive prazer em conhecê-lo senhor.
O senhor moreno avançou pelo cais, lentamente. Nos olhos azuis luzia um sorriso de jovem. A senhora grisalha aconchegou o cachecol ao pescoço do marido, apoiou-se em seu braço e começou a caminhar com ele. Sorria, um sorriso de trinta anos atrás.






Gláucia Lemos é ficcionista e poeta. Esta crônica foi publicada na coluna Ultraleve, de A TARDE, há dez anos. A foto das gaivotas é de Matheusgf, retirada do Flickr.

2 comentários:

Anônimo disse...

Na coluna Ultraleve se publicava texto bom assim. Eram outros os tempos do jornal. Parabéns, Gláucia.

Anônimo disse...

Obrigada, Pereira, e você tem razão quanto aos outros tempos do jornal. Resolveram modificar tudo, resta saber se foi para melhor. Os cronistas de agora vêm de fora. O que faremos com os NOSSOS cronistas? Cadê o livro? Mande email: glaucia-lemos@uol.com.br Darei meu endereço para v mandar pelo correio.Pelo blog não posso dar endereço,fica muito público.