domingo, 16 de dezembro de 2007

UM CAFÉ NA TARDE FRIA



Gláucia Lemos


Espantou um moleque que, à porta da rua, gritava para dentro: velho maluco!, depois voltou para a sala devagar. Mais uma vez olhou, no canto da mesa, a cafeteira suja. Depois sentou-se no banco a um canto, e acendeu o cigarro. O corpo era pequeno e frágil como o de um adolescente. As mãos delicadas e leves seguravam o cigarro como se estivessem vazias.
Pelo chão, espalhavam-se os cavacos de cedro.
Fixou os olhos no piso, em um ponto qualquer. Fora pela porta em frente que ela entrara naquele fim de tarde. Apressada. Quase correndo a abrigar-se da chuva. Como um potro assustado.
— Dá licença?
O homem ergueu a cabeça. Ela transpunha o batente sacudindo a chuva do vestido branco. Passando as mãos pelos cabelos cacheados.
— A chuva me pegou. — Parecia desculpar-se.
— Pode entrar, fique à vontade.
Ele como que emergiu da sisudez habitual. Sorriu. Só com os olhos. Como só sabia sorrir. A mulher parecia assustada. Olhava em volta com olhos de expressão espantada. A sala pequena, as ferramentas espalhadas, não sei quantas esculturas povoando o ambiente, desordenadamente, com a mudez da madeira. Depois, ela ficou olhando o homem. Barbado, o peito nu não muito forte, cabelos crescidos, grisalhos nas têmporas, parecendo velho.
A mão soltou a goiva em cima da mesa, e Samuel aproximou-se dela. A silhueta da mulher de branco na moldura da porta, pareceu-lhe um anjo. Mãos levemente pendidas, o corpo parado, o cabelo curto cacheado. E os olhos muito abertos fixando seu rosto. Parecia um anjo. Ele tentou sorrir com seus dentes grandes. E descobriu que ainda sabia. Repetiu.
— Pode entrar, fique à vontade.
Ela tentou um sorriso tímido. Depois sorriu também um sorriso aberto e livre, como criança.
— Não quero atrapalhar, pode continuar no seu trabalho.
Parecia medrosa. Talvez do escultor excêntrico. Ninguém aproximava-se dele. Calado, sombrio, sozinho, um ar de velho no rosto grave. Só eventualmente, pessoas estranhas aos vizinhos apareciam de carro e levavam suas peças. No mais, era só solidão.
Ele retomou as ferramentas e voltou a seu trabalho. Ela ali ficou, sentada em um banco, até que a chuva passou. Calada. Só olhando os movimentos de Samuel. Os pedaços de madeira caíam ao chão, as formas nasciam dos hábeis movimentos das mãos pequenas, e ela acompanhava sem desviar os olhos.
Quando a chuva passou a mulher levantou-se e foi embora. Sem dizer nada. Ele apenas viu seu vulto transpondo a porta e continuou no trabalho, como se nada houvesse acontecido.
Uma tarde, algum tempo depois, alguns meses, ela voltou. Chegou devagar, como quem não quer nada, espiou na porta com a antiga timidez, e perguntou.
— Dá licença?
O homem ergueu a vista para a mulher, que, sem esperar resposta, entrava devagar. De olhos ausentes, como se a visse pela primeira vez, ele não a reconheceu de pronto. Ela sentou-se no mesmo banco, encolhida e perguntou, como criança
— Posso ficar aqui?
Fez que sim, com a cabeça. Ela sorriu e ficou. Calada. A tarde inteira. No fim da tarde, foi embora.
Depois dessa vez ela voltou. Outras e outras mais. Não todos os dias, mas sempre que as tardes eram frias, ou sempre que chovia.
Uma tarde, Samuel perguntou seu nome.
— Lúcia. — Respondeu lacônica.
— Mora onde, Lúcia?
Ela sorriu.
— Aqui perto.
— Que é que você faz?
— Uma porção de coisas... e você?
—Eu?... - Samuel fixou-a admirado — Não está vendo? Eu corto madeira, faço uns troços... Faço árvore virar figura de gente. Isso tudo que está por aqui espalhado, não está vendo? E espanto os pivetes que vêm a minha porta me amolar. Me chamar de velho... e de maluco.
Não parecia importar-se muito com o detalhe.
Uma tarde ela chegou e entrou em silêncio. E, como sempre, sentou-se no mesmo banquinho. E baixou a cabeça entre as mãos, e chorou. Chorou muito, calada. O homem, surpresa no rosto, deixou seu trabalho e ajoelhou-se ao lado dela. Os olhos claros sempre tranqüilos tornaram-se inquietos. E, qual se estivesse diante de um ser de outro mundo, não atinava com o que fazer para consolá-la. Pôs-se a seu lado calado e ansioso, sofrendo por vê-la sofrer e vendo-a transformar-se ante seus olhos, em um ser mais real, mais concreto. Por várias vezes tentou passar as mãos pelos cabelos dela, para consolá-la, e por várias vezes recuou. Por timidez. Não deveria tocar em Lúcia. Mas a dor de Lúcia, por que quer que ela fosse, foi uma revelação para Samuel. Aquele anjo que enchia a sua solidão chorava. Aquele ser envolto em pureza, tão cheio de doçura e de silencioso mistério, para quem não lhe seria possível olhar com malícia, era uma mulher. E tinha mágoas. Aquele anjo era uma mulher, Samuel descobriu com perplexidade. E foi então que se lembrou de olhar um espelho depois de muitos anos sem o fazer. E também descobriu que não era um velho. Era um homem maduro, sensível, que se escondia naquela solidão que o afastava do mundo e vincava-lhe o rosto e o envelhecia. Um homem que perdera o hábito de sorrir e reaprendera que existia vida pulsando dentro de si, por causa da presença de Lúcia.
Depois daquela tarde, ela continuou a vir como se nada houvesse acontecido. Nunca lhe disse quais eram suas mágoas e Samuel nunca lhe perguntou. Mas agora, ele lhe passava as mãos pelos cabelos com carinho mudo, de quem entende que sendo uma mulher e não um anjo, Lúcia precisava de carinhos. E lhe afagava o rosto e lhe beijava os olhos porque descobrira que ela era uma mulher. E uma mulher que se abrigava à sua sombra, tão recluso que era, tão solitário que sempre fora, era porque ela também não tinha amigos. E assim, Lúcia descobriu a cafeteira a um canto de uma velha mesa e lhe fazia café todas as tardes. Porque estavam em um inverno muito chuvoso e frio, e assim sendo, Lúcia vinha a Samuel todas as tardes. E se amavam. Naturalmente. Como um homem e uma mulher se descobrem e se amam, desde que o mundo é mundo.
Ele soltava as ferramentas do trabalho, quando a mulher lhe estendia a xícara de café, com as mãos delicadas, de pele fina. E Samuel punha-se a perguntar a si mesmo, que mulher era aquela? Frágil, quase como uma criança, de rosto delicado e mãos bem cuidadas, de modos finos e cabelos encaracolados, que lhe trazia todos os dias um sorriso inocente, nos lábios rosados. De onde teria vindo aquela mulher nem bem madura, nem bem menina, que entrara em sua vida de repente pela porta a dentro, numa tarde de chuva? E se tornava indispensável. E mudava toda a sua vida. E o levava a descobrir que ainda era moço e sabia sorrir e sentia vontade de viver. E tornava tudo tão diferente à sua volta que até os pivetes deixaram de vir importuná-lo. Mas suas perguntas ficavam insatisfeitas, porque Lúcia sempre respondia com gracejos, dizendo qualquer coisa, menos o que ele ansiava por ouvir.
— Eu? Eu sou uma princesa encantada.
— Eu sou Cinderela.
— Eu sou Rapunzel de cabelos cortados.
Talvez nem mesmo se chamasse Lúcia. Mas, que importava o nome? Se ela mesma nem se preocupava com o depois? Não lhe fazia perguntas, não lhe dizia respostas. Apenas existia. Era só uma presença que ele sabia que se repetia todas as tardes, sem compromisso. Sem promessas e sem segurança. Enquanto chovesse, ele soube depois.
Quando o inverno acabou, na primeira tarde de sol, ela não veio. E não veio nunca mais. Sem adeus, sem despedida. Sem recado e sem explicação.
O homem pôs-se a esperar. Primeiro com a inquietude e o desespero dos apaixonados. Depois com a saudade e a dor dos abandonados.
Todas as tardes ele ficava contemplando a cafeteira suja a um canto da mesa, como Lúcia a deixara pela última vez. Sem tocá-la. Como um objeto sagrado. E a goiva e o formão descansados sobre a mesa. O trabalho que iniciara no tempo em que Lúcia lhe vinha, nunca foi concluído. E no atelier nunca mais foi ouvido o toc, toc do formão talhando a madeira. Era só o silêncio e o homem esperando, com a fronte escorrendo em suor, e o calor da tarde abrasando tudo com a força do sol que dourava lá fora o céu de verão.
As têmporas grisalhas de Samuel depressa embranqueceram. Seu corpo pequeno e magro tornava-se em um corpo de velho baixinho e mirrado. A barba lhe chegava ao peito como a de um ermitão e os dentes grandes nunca mais sorriram. Agora os pivetes voltavam à sua porta para xingá-lo de velho.
Samuel sentiu o cigarro arder-lhe entre os dedos pendidos. Queimara todo. Sacudiu a mão e a baga caiu entre os restos de cavacos antigos. Uma dor profunda, física, começou a apertar o peito do homem. Levantou-se lentamente. Uma angústia nos olhos. Foi até a porta, por onde ela sempre viera, no tempo em que vinha. Olhou para o céu, azul e brilhante e começou a pensar... Se chovesse. Quem sabe? Quem sabe, se chovesse ela voltaria? Ergueu os braços para o céu e clamou:
— Chova! Que chova muito! Que chova muito e alague o mundo!
Transpôs a soleira. Olhos para o céu azul e seco. Os braços erguidos em súplica incompreensível para quem assistia. Que chova muito! Começou a andar pela rua. Os pivetes juntaram-se em volta acompanhando. Velho maluco! Velho maluco! Gritando, assobiando, dizendo piadas. Samuel indiferente à zombaria de olhos agoniados para o céu, prosseguia clamando. Que chova muito!!! As mãos para o alto, a voz em apelo de comover os passantes. Alguns paravam para olhar, alguns riam. Louco, está bêbedo, é o velho que faz esculturas Sempre teve um parafuso frouxo.
Repentinamente, escureceu. Grossos pingos começaram a cair. Ribombou o trovão, e o temporal veio abaixo, inundando a rua. A molecada correu a abrigar-se. Os curiosos dispersaram-se. O homem, perplexo, demorou-se parado no meio do asfalto, debaixo do aguaceiro. E sorriu. Primeiro com os olhos, depois com os dentes grandes como reaprendera a sorrir no tempo de Lúcia. Em seguida foi caminhando devagar até a casa. A porta estava aberta. A chuva respingava nas figuras de madeira. Samuel entrou. Olhou em volta, não havia ninguém. Permanecia o deserto que torturava os dias de Samuel havia tanto tempo. A cafeteira suja lá estava em um canto da mesa, no fundo da sala, como Lúcia a deixara. E na bancada do trabalho, em frente, o imenso e pesado bloco de jaqueira, inacabado, de onde começava a emergir, Deus sabe há quanto tempo, um torso de mulher para o qual Lúcia posava, quando vinha. No mais, o silêncio e o vazio.
Samuel sentou-se frente à mesa e atirou com violência a cabeça atormentada por cima dos braços dobrados. A mesa balançou mal aprumada. O trabalho inacabado, foi lá, veio cá, e despencou-lhe por cima da cabeça pesadamente.
Lá fora, chovia ainda. No fim da tarde o vento estava frio.
Lúcia veio vindo lá do fundo da sala, devagar, e estendeu ao homem inerte a xícara de café. O vestido branco colado ao corpo, encharcado de chuva. Caracóis molhados nos cabelos curtos. Um sorriso inocente nos lábios pequenos. Como um anjo.
Não sei se Samuel despertou ou se dormira definitivamente. Lúcia nunca me contou.







Gláucia Lemos é ficcionista e poeta, além de ter vários títulos dentro da literatura infanto-juvenil. Este conto pertence ao volume Todas as águas.








2 comentários:

Carlos Vilarinho disse...

QUE MARAVILHA! GENIAL, GLÁUCIA! GENIAL.

Anônimo disse...

Obrigada, Vilarinho, pelo empolgado comentário. Quando chega a resposta do leitor, o texto alcançou seu destino.