sábado, 4 de outubro de 2008

VERSOS INESQUECÍVEIS



Gerana Damulakis

Sempre que tenho vontade, coloco aqui versos que estão na minha memória e ficam se repetindo em mim. Basta ouvir a palavra "esperança" para lembrar o poema "Viver", do livro As impurezas do branco, de Carlos Drummond de Andrade. Inesquecível a última estrofe:

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?

E aproveito para ir postando fotos dos monumentos aos poetas pelo Brasil. Depois de Cabral em Recife, Drummond no Rio de Janeiro. A foto é "Carlos Drummond de Andrade em Copacabana", de Mauricio M. Favero, retirada do Flickr.

AUSÊNCIA


Gerana Damulakis


Senti muito a ausência de Kátia Borges na nossa reunião de ontem. Eu havia prometido, na anterior, que leria quatro poemas. Fiquei repetindo isto, Kátia. E, pior, enumerando-os, mas não fiz a leitura. Luís Antonio Cajazeira Ramos atacou com Fernando Pessoa e leu os 14 "Passos da Cruz", com repeteco para alguns passos. Imagine o quanto reclamei, dizendo que tenho limite para ouvir poesia em voz alta sem interrupções. Aquela coisa: Lima fica rindo quando eu digo para Luís parar de ler e Luís não atende, obviamente. Lima Trindade leu Eugênio de Andrade; já o escritor Carlos Emílio C. Lima achou o poema fraco. Gláucia Lemos, bela por dentro e por fora, feliz com seu mais novo romance premiado e publicado. Ela e eu não lemos, só ouvimos. A parte que se refere à gastronomia estava péssima: foi a pior reunião em se tratando do que comemos, uma lasanha horrorosa e dois pudins (dois!!!). Vai abaixo um dos quatro poemas que eu pretendia ler para você. É de David Mourão-Ferreira

Tombam secretas madrugadas

e rios densos de pavor

de tuas pernas devassadas

por meu instinto e meu amor.

Em teus joelhos levantados

tocam as pontas de uma estrela.

(Quaisquer receios de pecados

empalidecem à luz dela...)

E as tuas ancas repousadas,

pra que o meu corpo se concentre,

esperam, cativas - que as espadas

de amor se cravem no teu ventre.

Do livro A secreta viagem

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O BRUXO DO COSME VELHO


Ildásio Tavares


A 29 de setembro próximo passado comemorou-se o centenário deste que é um dos grandes escritores da língua portuguesa e, sem dúvida, o seu maior ficcionista. Joaquim Maria Machado de Assis, pobre, mulato, epiléptico, filho de uma lavadeira do Morro do Livramento, é um excelente exemplo da capacidade do ser humano de ultrapassar as suas contingências e subir ao primeiro escalão da espécie humana. Entre outras coisas, fundou a Academia Brasileira de Letras para onde arregimentou a fina flor da inteligência brasileira de sua época que aceitou sua liderança de olhos fechados.
É, inclusive, um tapa de luva na cara dos racistas que um afro-descendente, não só tivesse o respeito e a admiração de todos escritores do seu tempo, mas também que o estilo de narrar de Machado de Assis estivesse longe de identificar-se com uma África selvagem e primitiva. Ele é dos nossos escritores o que melhor esgrimiu a finura, a classe e a sutileza, além de ser um profundo mergulhador no mar desconhecido da alma humana de onde nos trouxe perfis imortais. Não será ocioso repetir como o jogo de ambigüidade no romance Dom Casmurro criou uma dúvida eternamente insolúvel a respeito da honestidade conjugal de Capitu.
Esta ambigüidade é conseguida pura e simplesmente pela sofisticação narrativa. através do ponto de vista do narrador implicado Bentinho que é a única testemunha que nos relata a maneira de agir de sua mulher, uma personagem que vem sendo construída por ele em flash-back, até que culmina com a acusação, que ele procura comprovar para o leitor, a fim de justificar a própria crueldade com sua mulher. Afinal, não há nenhuma certeza, e até um júri já foi feito para decidir se Capitu traiu ou não traiu. Como um verdadeiro bruxo da narrativa, Machado se limita a expor as peças do quebra-cabeça e deixar para o leitor a tarefa de armá-lo.
Se grande romancista, Machado não foi menor no conto e na poesia. Alguns de seus contos ou novelas são antológicos, são leituras obrigatórias tendo encantado as gerações. "Missa do Galo" é um conto cuja linguagem poderíamos apontar como calcada numa atmosfera. em que a sutileza, e os entretons governam a ficção machadiana e não podemos arriscar um palpite sobre o comportamento feminino, este enigma que Machado gostava de construir. Em "O Alienista" temos um fantástico estudo psicopatológico da natureza humana raiando ao absurdo em que o personagem principal é a loucura humana. Outro conto magistral e que todos deviam ler é "O Espelho".
Um dos primeiros cultores deste gênero tão difícil no Brasil, Machado escandiu a narrativa curta com um primoroso tratamento de linguagem, uma prosa castiça, ritmada e de excelente seleção vocabular que superava o gênio português Eça de Queiroz.
A crônica machadiana é essencialmente leve e requintada e nela, ele consegue uma dualidade difícil: captar o sentimento de seu tempo e fazê-lo atravessar o tempo.
Para mim, de grande beleza, com a incrível capacidade de unir pensamento e sentimento, é, sobretudo sua poesia.

Ildásio Tavares assina mais de 10 títulos como poeta, mas tem romances, contos, ensaios e é compositor. Foto "Cem anos", de ailana09, retirada do Flickr.

Ó PAI


Gerana Damulakis

"Por que me abandonaste?"
Cristo


Qualquer dia, qualquer mês
e estou só.
Só as estrias de luz mostram o ar
carregando suas massas de partículas
redondas, tantas quantas são
as pessoas da multidão.
Lá fora é onde deve haver alguém.
Por que tarda?
Estou em plena tarde
sem perder o relógio de vista.
Preciso dizer-te isto, meu Pai,
que já vivo a minha tarde
e tenho medo.



Já editei neste blog o poema "Ó Pai". Mas é outubro, mês que levou meu pai, meu amor maior. Que imensa saudade, e dor. Quando escrevi este poema ele estava vivo e era a minha âncora, o meu pilar (um medo e ele resolvia) e poderia viver ainda (jamais ficou doente). Todavia há os acidentes de percurso. Fica mais difícil aceitar. Dá vontade de virar uma menininha e gritar: "Eu quero meu pai". Sem ele, eu sou nada, ou, por outra, sou lágrimas.

Foto "Cristo Redentor", Rio de Janeiro, uma das Sete Maravilhas do Mundo Moderno, de Leonardo Paris, retirada do Flickr.

POEMA

Gerana Damulakis

Com o poeta João Cabral de Melo Neto se faz uma viagem plural, às vezes com os pés no chão, achando que cada coisa foi bem posta em seu lugar, mas por vezes há uma sensação tal como se

"nadando/ em rios invisíveis".

Quatro versos inesquecíveis de Cabral:

Há vinte anos não digo a palavra

que sempre espero de mim.

Ficarei indefinidamente contemplando

meu retrato eu morto.

De "Poema", em Pedra do sono.



João Cabral de Melo Neto, Recife, Pernambuco, foto de marcusrg, retirada do Flickr.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

A CASA ANTIGA

Kátia Borges

Vivia em conserto,
a casa antiga.
Mudavam as telhas,
compravam madeira,
renovavam as ripas,
ajeitavam a cumieira.

A casa antiga, apenas
25 metros quadrados,
era tudo que restara
do passado, da família,
na vila, na vida. E não havia
outro modo de ter um teto.

Feito enxurrada, mais
e mais trocados iam
na eterna reforma.
E as janelas caindo,
o beiral carcomido,
o caibro, a terça, o pendural.

E pedreiros amigos
visitando as lojas,
o carro cheio de tijolos,
meio torto, e a casa antiga.
De nada adiantava
pintar paredes e portas
pôr cores sóbrias,
caprichar na tinta.

A cada chuva, o mofo
brotava do invísivel,
esparramando negro,
venenoso visgo, engolindo
todo esforço de mudança
e viço. Eram fantasmas,
ou memórias, que escorriam,
corroendo as novas vigas.

Até tornar ir embora imperativo.

Kátia Borges é autora do volume de poemas De volta à caixa de abelhas (FUNCEB, 2001).

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

MESTRE


29 de setembro de 1908, Rio de Janeiro: morre Machado de Assis, o mestre.