Gerana Damulakis
A leitura do poema "Adormecida", do baiano Castro Alves (1847-1871), levanta uma possibilidade interessante: uma moça na rede, a janela aberta, a natureza num pedaço do horizonte. Da moça: o roupão quase aberto, o cabelo, o pé. Uma cena com possível eroticidade. O jasmineiro, de galhos encurvados, indiscretos e oscilantes, tremulamente inicia um movimento sensual. Há uma possibilidade erótica no poema romântico. As reticências são suspensões de sentido; a necessidade de suspender o sentido é, assim, mais sugestiva. De repente, a comparação com uma brincadeira de duas cândidas crianças parece diluir a possibilidade, só que, na verdade, fica claro que há uma tentativa de tornar falsa a tal possibilidade. A penúltima estrofe chega a trazer o movimento de ir e vir e pode ser lida como o ponto alto da possibilidade erótica. Enfim, os dois últimos versos criam a metáfora flor-mulher para retomar o pleno romantismo.
A leitura do poema "Adormecida", do baiano Castro Alves (1847-1871), levanta uma possibilidade interessante: uma moça na rede, a janela aberta, a natureza num pedaço do horizonte. Da moça: o roupão quase aberto, o cabelo, o pé. Uma cena com possível eroticidade. O jasmineiro, de galhos encurvados, indiscretos e oscilantes, tremulamente inicia um movimento sensual. Há uma possibilidade erótica no poema romântico. As reticências são suspensões de sentido; a necessidade de suspender o sentido é, assim, mais sugestiva. De repente, a comparação com uma brincadeira de duas cândidas crianças parece diluir a possibilidade, só que, na verdade, fica claro que há uma tentativa de tornar falsa a tal possibilidade. A penúltima estrofe chega a trazer o movimento de ir e vir e pode ser lida como o ponto alto da possibilidade erótica. Enfim, os dois últimos versos criam a metáfora flor-mulher para retomar o pleno romantismo.
ADORMECIDA
Castro Alves
Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço no tapete rente.
'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face, trêmulos, beijá-la.
Era um quadro celeste!... A cada afago,
Mesmo em sonhos, a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...
Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!
E o ramo ora chegava, ora afastava-se...
Mas quando a via despertada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...
Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! — tu és a virgem das campinas!
Virgem! — tu és a flor da minha vida!..."
Ilustração: estátua de Castro Alves, Salvador, Bahia. Foto retirada do Flickr, de E. Cesar.
Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço no tapete rente.
'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face, trêmulos, beijá-la.
Era um quadro celeste!... A cada afago,
Mesmo em sonhos, a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...
Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!
E o ramo ora chegava, ora afastava-se...
Mas quando a via despertada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...
Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! — tu és a virgem das campinas!
Virgem! — tu és a flor da minha vida!..."
Ilustração: estátua de Castro Alves, Salvador, Bahia. Foto retirada do Flickr, de E. Cesar.
30 comentários:
Devo lhe confessar que nunca fui um bom leitor de escritores brasileiros...talvez por puro preconceito meu, aos poucos estou mudando isso e descobrindo coisas maravilhosas...E devo muito disso a você...
beijos!
Belísimo e delicado. Erotismo em latencia.
Olha, é uma possibilidade de leitura muito interessante.
E a epígrafe de Musset que fala de cruz e orações? Rs.
Embora meu pai tivesse uma boa quantidade de bons livros, não havia entre eles nenhum de poesia. Mas tinha a Vida de Castro Alves do Pedro Calmon. Então, os primeiros versos que li na vida, ainda bem garoto, foram os trechos de Castro Alves selecionados naquele livro. Só muito anos mais tardes vim a ler o Espumas Flutuantes. Confesso que sempre me agradou mais a sua poesia lírica do que a condoreira. Pecado?
Abraço.
Acredito que seja mais do que uma possibilidade.
Realmente, há um sentido de realização do amor em Castro Alves que não se observa noutros romanticos.
abraço
O Assis tocou bem onde eu pensava agora, o "sentido de realização do amor". E essas sensações de ambiente, essas figuras mornas e delicadas, as imagens obrigatórias de uma quase consumação amorosa.
Beijos, Gerana!
Gosto muito de encontrar "possibilidades eróticas" nas palavras escritas. O pudor vive vestindo-as, quando, na verdade, nós as queremos nuas. Gostei muito do poema. Não conhecia. Preciso ler mais Castro Alves.
Bj.
Tens razão (pra variar). Confesso que nunca li Castro Alves. Ou melhor, nada que não fosse alusivo ao sofrimento dos escravos.
qué hermoso!
delicado, sutilmente erótico.
besos*
O erotismo neste poema acontece por belas imagens: como o ramo que balança entre ver e o não ver, na expectativa de realizar o instante. Gostei muito!
Muito lindo o poema do baiano Castro Alves!
Beijos.
Jefferson.
também vi mais que possibilidade!
hum...
Ai! Que bom que gostou! Fico muito feliz, Gerana.
Me diga seu e-mail, que te envio, sim.
Um forte abraço!
Carolina.
Ah, Gerana, lembrar do Castro Alves é reviver tanta coisa boa! Tive duas antigas edições de seus livrros de poema, que herdei do meu pai...onde ficaram? Não lembro...Mas quando já tinha lido tudo que havia em casa...relia Castro Alves!
Beijos, Gerana!
Esse poema marcou a minha puberdade, meus 11 anos ou 12.A esposa de meu tio Zeca (todo mudo teve um tio Zeca!)declamava Adormecida com mto sentimento. Toda vez que íamos à casa deles, eu pedia para ela declamar. Anos mais tarde, li em algum lugar um artigo no qual se dizia que possivelmente o poeta se referia a cena de sua irmã Adelaide, adormecida na rede.Pois se referia a ela dizendo "VIRGEM, tu és a flor da minha vida." Por se tratar de sua irmã preferida.Quem sabe?
Que lindo, Gerana! Adorei a "chuva de pétalas no seio".
Beijos
essa poesia traz desejos, pode-se sentir o cheiro de sexo da mulher e o desespero do homem ali domando sua alma de animal dado a carne e não a contemplação
vuelvo para agradecer tus palabras en mi blog...son un honor para mí.
gracias y mil besos,Gerana*
E que possibilidade!
Senti algum erotismo no poema. Muito ténue, é certo, mas presente.
Gostei de o ler depois da sua introdução. A leitura torna-se mais interessante.
Beijos, querida amiga.
G, terminei o livro. Amanhã, vou comentar :)
bj.
BF
Gerana, me empresta um conto? Você não quer escrever um microconto devotee para mim? Eu ia adorar receber este presente teu. Beijo
Querido Edu: eu sou leitora, não sou escritora. Seu convite me emociona, mas onde encontrar a inspiração, onde o talento?
Muito lindo, Gerana!
Castro Alves... Gosto demais!
Grata por dividir comigo este tesouro .
Grande abraço!
Querida:
Por conta da Literatura Brasileira ando bem atarefada, mesmo que, oficialmente, de férias. Abriremos na Escola para o ano, com Literaturas de Língua Portuguesa...
Foi bom ter esta oportunidade de leitura, já que o Programa só contém textos muito conhecidos...
Beijo
É lindo por ser...
Gerana... Não me lembrava desse poema. Porém, mais do me fazer voltar a uma bela poesia que havia esquecido; ou que honestamente nem conhecia, esse poema e seus comentários me fizeram voltar a certeza vital de que a poesia é realmente uma forma de linguagem que nunca jamais mais morrer. A poesia diz no óbvio. Porém é nas entrelinhas e no imaginário de quem escreve e lê que fala mais alto. Quase chega a gritar. Tenho notado que você como leitora consegue ouvir quando escreve e falo alto até sem dizer.
Bom fim de semana.
Gerana, trouxeste-me uma lembrança boa! Conhecia esse poema, mas tua leitura é muito clara. E ele trouxe pela mão a lembrança de um outro que escutei e li infintas vezes: o laço de fita
beijos
Maravilhosa a leitura e as imagens que vão se despetalando do texto, a desnudar o desejo e a cena.
Eu me impressiono com a tua capacidade de armazenamento. E o cuidado que endereças, em tudo o que lês.
Eu não conhecia este poema.
Belíssimo!
Grata por suas palavras, Gerana e saiba que muito me honra ter sua leitura em meus modestos ensaios.
grande abraço
Muito bom o estudo desse poema, análise precisa focando o cerne romântico de Castro Alves.
Um abraço.
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