XL
---------------José Gomes Ferreira
Homens: na noite do desânimo
levanto a minha voz
para pregar o ódio.
Um ódio total e violento
a todos os narcóticos
que adormecem a realidade
com neblinas de música.
Ódio às lágrimas mal choradas diante dos poentes,
à alegria das crianças mortas que teimam em rir nos olhos dos velhos,
às noites de insônia por causa de uma mulher,
às flores que iluminam os mortos de alma,
ao álcool da arte-pura-para-esquecer,
aos versos por dentro das palavras,
aos versos com túneis acesos por dentro das palavras,
aos pássaros a cantarem os perfumes das árvores secas,
às valsas com voos de tule
- e até ao Sol
que diminui o mundo
em indiferença de continuar.
Ódio ao mar a modelar deuses
nos nossos corpos feios de tanto se julgarem belos.
Ódio à primavera
- essa mulher voadora
que entra pelas janelas
com asas azuis
para que a nossa dor
pareça preguiça de existir.
Ódio às serenatas que o luar faz do céu à terra,
às pétalas nos cabelos dos fantasmas ao vento,
às mãos-dadas nas sendas brancas dos idílios,
à pele de frio doce dos amantes,
aos colos das mães a embalarem futuro,
às crianças com céus do tamanho dos olhos,
às cartas de paixão a prometerem suicídios (para beijos mais fundos),
às insinuações de paraíso nas vozes de pedir esmola,
às escadas de corda nos olhos das noivas das trapeiras,
às danças a perfumarem de sexo a derrota,
às ninfas disfarçadas em canteiros de jardins,
e aos recantos foscos
onde escondemos a Verdade
em galerias de evasão
- só para que os nossos olhos continuem límpidos
a ignorarem todos os negrumes
com escadas até ao centro da terra.
Ódio ao disfarce, às máscaras, ao "falemos noutra coisa",
aos desvios, às fontes dos claustros, ao "vamos logo ao cinema",
aos problemas de xadrez, aos dramas de ciúme, às infantas do fogo das lareiras,
e aos que não têm a coragem
de estacar, pálidos,
com unhas na carne
a olhar de frente,
sem arrancar os olhos,
os caminhos dos mortos sagrados
até aos horizontes onde os homens se ofuscam das manhãs virgens.
Ódio a todas as fugas, a todos os véus,
a todas as aceitações, a todas as morfinas,
a todas as mãos ocas das prostitutas,
a todas as mulheres nuas em coxins de afagos,
para nos obrigarem a esquecer...
Mas eu não quero esquecer, ouviram?
Não quero esquecer!
Quero lembrar-me sempre, sempre e sempre
deste minuto de abismo,
para transmiti-lo de alma em alma,
de treva em treva,
de corvo em corvo,
de escarpa em escarpa,
de esqueleto em esqueleto,
de forca em forca,
até ao Ranger do Grande Dia
para a Salvação do Mundo
sem anjos
nem demônios
- mas só homens e Terra.
Ilustração: Campo de Trigo com Corvos (1890), de Vincent van Gogh.
15 comentários:
Quem tiver preguiça de ler o poema todo, leia esta estrofe magnífica:
Ódio à primavera
- essa mulher voadora
que entra pelas janelas
com asas azuis
para que a nossa dor
pareça preguiça de existir.
Simplesmente genial!
Pois é, Gerana, a grande poesia portuguesa, geralmente diferente da nossa, muitas vezes tão objetiva e até violenta, é infelizmente desconhecida no Brasil.
Belas metáforas.
Abraço,
JR.
Duvido que alguem tenha essa preguiça e se tiver, após ler essa estrofe certamente retornará à postagem inicial.
"Ódio ao disfarce, às máscaras, ao "falemos noutra coisa",
aos desvios, às fontes dos claustros, ao "vamos logo ao cinema",
aos problemas de xadrez, aos dramas de ciúme, às infantas do fogo das lareiras,
e aos que não têm a coragem
de estacar, pálidos,
com unhas na carne
a olhar de frente,
sem arrancar os olhos,
os caminhos dos mortos sagrados
até aos horizontes onde os homens se ofuscam das manhãs virgens.
Ódio a todas as fugas, a todos os véus,
a todas as aceitações, a todas as morfinas,..."
Gerana, que poema maravilhoso, lindíssimo e o quadro é do melhor!
bjs e bom fim de semana!
Gi
Maravilhoso! Chega de lirismo comedido!
Tanto ódio tem mesmo que rimar com toda a angústia de Van Gogh.
Poema forte, demolidor. E no entanto, belo.
Me lembrei de imediato da Ode ao Burguês, de Mário de Andrade. E me lembrei da associação - ódio / ode. O ódio pode ser uma exaltação. Pode ser a exultação da poesia. Como, afinal, em José Gomes Ferreira.
Beijos.
Lindo poema de pura ira, dessa revolta que em geral se cala para não movimentar as águas da superfície.
Adorei a poesia irada de Gomes Ferreira!!
Minha ignorância o desconhecia. Li o poema todo. Gostei bastante.
Obrigado!
Realmente irado o poema, como diz Manoel de Barros "o verbo pegou delírio". Abraço.
Tom fortíssimo! E oenso que tem uma conexão com o texto abaixo de Phillip Roth!
Nesse ódio, o poeta canta sua ode à mais bela poesia que lhe habita a alma...'essa mulher voadora...com asas azuis', isso é muito belo.
Um abraço.
Absoluto e definitivo. Obrigado, Gerana, não conhecía.
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