Gerana Damulakis
Há um poema em Sentimento do Mundo, livro de 1940, de Carlos Drummond de Andrade, que joga com os três tempos de uma forma espetacular (ora, claro, trata-se de Drummond). No decorrer dos versos o tempo que aparece primeiramente é aquele que comanda "um mundo caduco". O futuro do mundo é igualmente rejeitado porque para o poeta interessa apenas o presente. O presente é a realidade, o presente é o que interessa, "o presente é tão grande".
Depois de escolher seu tempo, Drummond, que tanto apreciava o poema que se debruça sobre os temas da poesia (há vários exemplos em sua obra), enumera demais afastamentos. E o faz de forma curiosa: descarta ser "o cantor de uma mulher, de uma história". Ele parte da mulher, a matriz, a que gera, e chega à história. Assim também quando canta que não dirá "os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela": ele passa do escuro, rejeita o escuro, vai até a janela, rejeita sua paisagem, digamos, clara. Afasta, então, os entorpecentes ou cartas de suicida. De novo, estados diferentes, daquele que, entorpecendo, faz fugir, chega ao outro, ao que evoca a fuga definitiva, o suicídio. E ainda: não se deixa seduzir pelas promesss das ilhas e seus tesouros, nem por lugares celestias entre serafins. Por fim, ele fica com o tempo como "minha matéria": "o tempo presente, os homens presentes,/ a vida presente". Sempre no presente: Drummond.
MÃOS DADAS
----------------Carlos Drummond de Andrade
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Ilustração: As Três Idades da Mulher, de Gustav Klimt.
21 comentários:
Hj comentei sobre este poema no fecebook de um amigo, agora o reencontro por aqui. Meu dia foi abençoado!
Drummond é sem sombra de dúvida um dos maiores artistas do século XX!
...O tempo para o poeta talvez adentra na representatividade do "tempo mitico", onde a realidade é vista e analisada com outros olhos...o multifacetado presente no olhar do poeta é o que lhe permite adentrar em várias realidades, tempos e espaços...é o que permite do mesmo ser atemporal!
Seu espaço é acolhedor e ao mesmo tempo intenso!
o agora fortalece sempre todas as mãos do mundo. Tão bom reler esse poema acompanhado de seu texto! Grande abraço. Jefferson.
Olá, Gerana.
Também gosto. E também gostei muito da sua análise, porque muitas vezes o poema é associado apenas a fase política de Drummond, e ele é maior que isso.
Quem quiser ouví-lo dizendo o poema, vai encontrar em
http://www.memoriaviva.com.br/drummond/poema019.htm
Um abraço, e bom domingo.
JR.
"... não nos afastemos.
Não nos afastemos muito."
A solidariedade e a preservação da individualidade, pois não?
Abraço do SIDNEY WANDERLEY
Drummmond, leitura contínuo para ser feliz e nos conhecer de perto...
bj
p
Que qualidade este teu espaço, e com certeza farei muitas visitas.
Parabéns!
Priscila Cáliga
Grande Drummond! Obrigada por sua sensibilidade trazê-lo aqui.
ler drummond ainda por cima apresentado por seu texto, isso é que é presente!
Esse queridíssimo Drummond aqui comentado: que bom!!! Adorei.
Beijos
Uma análise muito boa do poema, e exata, quando fala do poeta. Drummond por assim dizer dá o tom da tendência dominante na poesia de nossos dias.
É um dos livros mais belos de Drummond, em que ele reafirma sua crença na humanidade, e na vida com o seu poder de transformação. No canto do poeta há um clamor de solidariedade, as mãos dadas, mais que simbolismo, é um gesto sincero para um mundo - não esqueçamos as circunstâncias históricas - em crise. Abraço
Gerana, nossa sintonia está forte. Tal como aconteceu com o poema de Murilo que você comentou na semana santa, estive relendo "Mãos dadas" (na quinta ou na sexta à noite). Foi uma boa surpresa agora enriquecer minha leitura com a tua. Pelo jeito estou folheando os livros certos.
Gerana,querida, se puder aparecer hoje lá na Tom do Saber(Rio Vermelho), será minha a honra...
projeto primeira audição, onde lerei trechos do meu próximo romance "Pia". 19:45h.
Querida Gerana:
Ainda bem que fiz uma pausa nas minhas correcções de provas...
Adoro este poema de Drummond de Andrade. Obrigada!
Beijinho
Gerana, eis um texto digno do pooema de Drumond e da ilustração de Klimt. Parabéns.
Gerana, sua leitura ilumina ainda mais a beleza da poesia de Drummond.
Uma verdadeira poética,em sintonía com aquilo de:
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
É no presente,em definitiva, onde construimos.
goste deste poema, o mais engraçado é que com pose e cara de antenados há um sem número de poetas cantando justamente o mundo caduco
goste deste poema, o mais engraçado é que com pose e cara de antenados há um sem número de poetas cantando justamente o mundo caduco
Esse poema é, para mim, uma prece.
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