Mas a minha história tem uma simetria que naquele dia me lembrou imediatamente outra coisa, e me provocou um sentimento de culpa ainda mais profundo. Vinte e três anos antes do dia em que meu pai me deixou sua maleta, e quatro anos depois que decidi, aos 23 anos, me tornar romancista e, abandonando todo o resto, me recolhi, acabei o meu primeiro romance, Cevdet Bey e Filhos; com as mãos trêmulas, entreguei ao meu pai os originais datilografados do livro ainda inédito, para que ele pudesse lê-lo e me dizer o que achava. E não só porque eu confiasse no seu gosto e no seu intelcto: a sua opinião era muito importante para mim porque ele, diferentemente da minha mãe, nunca se opusera ao meu desejo de me tornar escritor. Àquela altura, meu pai não estava conosco, estava muito distante. Esperei pacientemente pela sua volta. Quando ele chegou, duas semanas mais tarde, corri para abrir a porta. Ele não disse nada, mas na hora me abraçou de um modo que me fez entender que tinha gostado muito. Por algum tempo, mergulhamos no tipo de silêncio desconcertado que tantas vezes acompanha momentos de grande emoção. E então, depois que se acalmou e começou a falar, meu pai recorreu a uma linguagem rebuscada e exagerada para manifestar a sua confiança em mim e no meu primeiro romance: disse que um dia eu ainda iria ganhar o prêmio que estou aqui para receber com tanta felicidade.
Orhan Pamuk in A maleta do meu pai - discurso da cerimônia de entrega do Prêmio Nobel de Literatura de 2006 (Companhia das Letras, 2007), tradução Sérgio Flaksman.
15 comentários:
São em maletas simbólicas, que guardamos o que nos é mais precioso. Aqui, para além da maleta do pai, a confiança foi presságio e espólio.
Abraços, Gerana
Não tem a ver com o post em si, mas, se meu pai fosse um objeto, seria uma maleta de couro marrom com um estetoscópio de ouvir o coração de quem não fazia parte da família.
Querida Gerana:
Aí está um nobel de que muito gosto. Concilia dois mundos. Não me canso de lê-lo. Depois do prémio, confesso que li mais algumas obras.
Beijinho e boa semana
Querida Gerana:
Aí está um nobel de que muito gosto. Concilia dois mundos. Não me canso de lê-lo. Depois do prémio, confesso que li mais algumas obras.
Beijinho e boa semana
Gerana, é sempre muito bom reler nosso Pamuk. Lindo o trecho do discurso dele. Gostei muito também do seu post sobre Frida. Ando ocupada, quase sem tempo para a blogosfera. Retorno a todo vapor em breve.
Taí um livrinho singelo e encantador. Li-o três vezes e uma "recidiva" não é nada improvável.
SIDNEY WANDERLEY
Gosto com exagero desse texto. Genial. Abraço.
Comovente! A confiança que os nossos manifestam nas nossas possibilidades são realmente um estímulo inestimável. Eles que podem sem cerimônia expressar a verdade: Não gostei, vocÊ pode fazer melhor, ou, gostei muito, você está indo muito bem nisso, vá em frente, ou Estou em dúvida, gostei de umas partes, outras estão se arrastando! Coisas assim são tão importantes. Essas pessoas nos amam e sabemos que mostram o coração quando fazem suas críticas.
Gerana,
Ter o incentivo da família talvez tenha sido o necessário para que continuasse e assim ganhasse o prêmio.
Comovente o discurso.
Beijos
Orhan Pamuk é um escritor fantástico, meu romance preferido é "Meu Nome é Vermelho". Só mesmo ele poderia ter escrito este texto que, na verdade, é um discurso de agradecimento (mais parece um conto). Sensacional.
excelente escritor. bom que você nos trouxe um trecho de seu discurso.
Gostei muito, Gerana!
beijos.
Jefferson.
Sempre assuntos literários interessantes por aqui, Gerana, linda a foto, como eu sempre digo, visitar teu espaço é inspirar-me. Grande abraço.
Emocionante e lindo!
"...ele não disse nada, mas na hora me abraçou de um modo que me fez entender que tinha gostado muito."
Não precisava falar nada mesmo.
Beijos, Gerana.
Bacana isso da emoção ter sido passada em silêncio. Depois, bem depois vieram as reservas, as palavras ensaiadas....
Eu li dois livros dele, e gostei, apesar da carga de melancolia e tristeza...... coisa de turco...rsrsrs
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