sábado, 25 de outubro de 2008

O FAROL DA BARRA

Luiz Britto


Numa pizzaria que fica na Marques de Leão, a dois passos do Farol, há uma foto antiga daquela área. Algumas casas, lembrando as antigas casas de veraneio de Mar Grande, uma pra cá, outra pra lá, e o Farol, como sempre sisudo, severo, de poucas palavras, indiferente às intempéries, ao rugido das ondas, às caretas do mar.Aquela área, então, era um nada. Alguns, poucos privilegiados tinham casa naquelas cercanias --- um lugar deserto, afastado da cidade, sem arruamentos talvez, com cercas de arame, capim, areia.
Tudo mudou.
Quando eu era menino, havia um gramado verde no terreno à frente do forte centenário, onde moravam o faroleiro e sua família --- o farol no alto de uma torre, no centro da construção, como todos os faróis. Nos domingos havia uma verdadeira festa nesse gramado. Crianças correndo, meninos empinando arraia, aproveitando o vento firme que vinha do mar, vendedores de algodão doce, pipoca, baleiros, uma fauna humana variada e alegre. Tudo isso sumiu. Primeiro, o gramado, com tanta gente pisando-o, o eterno Carnaval, comícios, encontros religiosos, tudo que promovem ali. Depois, a inocência daqueles tempos --- coisa que não volta mais.
Lembro as barras de ferro numa das encostas, o trapézio para os ginastas, quem era metido a forte. Os negros rochedos ainda estão por lá, talvez um pouco sujos, pichados aqui ou ali. E há as barracas de comida e bebida, o que não havia. Na praia só picolé, água de coco, rolete de cana. Quem quisesse comer que fosse para a sua casa. Beber, nem pensar. Era coisa pra boteco, bares de espanhóis, lugares onde as mulheres não entravam. Beber era só pra homem. Mulher tomava coca-cola. Quando muito, um vinho.
E havia a Sorveteria Oceania, com suas cadeiras de metal, os “sundaes” e “dusty millers” depois do filme (no Cine Oceania), e havia o corso de automóveis. Os burgueses, os filhinhos de papai mostrando suas viaturas, as camisas novas, cabelos ainda molhados --- as moças encostadas nos carros estacionados, como se estivessem numa vitrine.
Tudo isso acabou. Não há mais corso, nem cinema, nem sequer o teatrinho que também funcionou ali, no Edifício Oceania. O tempo passa, as pessoas passam, o vento passa e fica uma sensação de um certo vazio. Como se as coisas, as pessoas, os lugares não tivessem a mínima importância. Fica o quê? O vento que vem do mar, esse mar vezes raivoso nos meses de inverno, cinzento, plúmbeo, irado. Quando o vento, então, sopra mais forte, vira ventania, treina para furacão.
Fica a velha torre do Farol, um marco da cidade, uma espécie de Torre Eiffel dos pobres. Incólume, sempre a mesma, permanente. Que as modas não destroem, nem os governos, os façanhudos da Prefeitura. Tá lá, é um símbolo, um marco. Recebe os últimos raios do sol poente, as costas viradas para a turbulência da cidade, ônibus passando, toda a nossa confusão. Suas luzes iluminam o mar negro, vão às estrelas, saúdam a chegada da lua, o imenso rastro prateado, recebem a brisa fria que vem do mar como um refrigério.
Está lá, permanece, enquanto tudo gira à sua volta. A cidade se transforma, casas são derrubadas, tanta gente morre, tanta gente nasce. Está sempre lá, é como se fosse uma estátua, fosse feita de pura pedra.


Luiz Britto tem uma obra vasta, indo da crônica ao conto, da peça de teatro às memórias.
Foto "Farol da Barra", de twi, retirada do Flickr.

3 comentários:

Gerana Damulakis disse...

O Farol da Barra está nos nossos corações soteropolitanos. Cada um de nós tem alguma lembrança com o Farol como pano de fundo. Belíssima crônica!

Unknown disse...

E mocinhas (poucas) também dirigiam no Farol. Era o mesmo que "rodar a praça" em cidade do interior.

Anônimo disse...

Esta crônica não li logo, andava às voltas com meu lançamento. Agora tomo conhecimento dela, tão real, tão soteropolitana, tão saudade... Quanta coisa boa ficou para trás com a mudança de costumes. Por que será que nunca muda para melhor?