domingo, 17 de agosto de 2008

CATIMPLORA - CATIMPLORA???

Gláucia Lemos


Se você é da geração-internet, ganha um sorvete, escolhendo o sabor, se souber o que é catimplora, sem recorrer ao Google, ao Houaiss ou ao Aurélio.
Por falar em sorvete, hoje eu estava me proporcionando uma rara transgressão sabor-chocolate, e sentenciei que quem inventou o sorvete está no céu. Eu tenho a pretensão de conceder um lugar no céu a todos aqueles que inventam ou descobrem alguma coisa que me seja útil ou agradável. Quem inventou a lava-louças está no céu, quem criou as receitas de todos os pudins do mundo está no céu, e por aí vai também o inventor do sorvete, essa divina delícia. Meu filho embarcou no meu delírio e brincou: foi alguém que pôs o suco para gelar, perdeu a hora, o suco congelou, ele bateu no liquidificador, e assim começou o sorvete.
Bobagens à parte, que a gente às vezes precisa de um tantinho de idiotia para refrescar a cabeça - não conheço alguém que não goste de sorvete. Não há inverno que dispense um sorvete na sobremesa do almoço.
Passados das primaveras etárias, começamos a descobrir a dieta dos diet e dos zero. E entram os sorvetes diet e os zero-gordura, e –Deus do céu!- os zero-açúcar. A pergunta é: com o que são adoçados os sorvetes zero-açúcar? Aspartame? Cruz Credo! Invade as gavetas da memória sem pedir licença e embola tudo o que encontra por lá. Eu até já ando pensando 10 vezes antes de entrar em uma conversação, porque é certíssimo que, se for falar que fui comprar um presente, vou esquecer a palavra PRESENTE, se ligar para convidar alguém para jantar, vou esquecer a palavra JANTAR, acaba sempre me fugindo a palavra principal da frase. Isso graças a um decênio ingerindo o famigerado aspartame.
Se não o adoçam com aspartame, talvez o façam com ciclamato. Deus que nos defenda! Dizem que é cancerígeno. Mas o sorvete de framboesa zero-açúcar é adoçado com alguma substância, sim senhor, é gostosinho, eu o degusto todos os dias, embora ainda não saiba de onde vem a leve doçura.
No entanto, que saudade! Nada se compara ao sorvete da infância. No tempo em que não havia carrinhos de sorvete rodando pelas ruas do bairro, badalando um sininho que era uma senha para o despertar de todas as crianças que estivessem no mais profundo sono da tarde. Anterior ao carrinho de sorvete da geração dos meus descendentes, houve um tempo em que não se vendia sorvete industrializado. A gostosura era fabricada por mãos hábeis não sei de quem, preparada sem essências artificiais, sim com frutas ou coco ou chocolate ou favas de baunilha. O sorveteiro o trazia em um recipiente semelhante a um balde de madeira grossa, que continha um outro, cilíndrico, de alumínio ou de flandres, rodeado de pedrinhas de gelo e de sal grosso. Ainda não existia o isopor que hoje nos socorre.
Quando, no meio da tarde, o sorveteiro gritava na esquina da rua o pregão esperado Sorveeeeeeeete! Chocolate, coco e baunilha! a maciez gelada já começava , por antecipação, a se fazer sentir na língua, e a descer lentamente pela garganta, como a sensação mais agradável que poderia ser proporcionada a uma menina de nove anos. Era o momento em que a menina acreditava que Deus existia e gostava muito dela. Desde aquele tempo eu acredito que quem inventou o sorvete está no céu. Acho que com muito merecimento, é, ou não é?
Ia me esquecendo de contar que eu não compreendia como era que o sorveteiro, aquele mensageiro dos deuses que me fazia feliz todas as tardes, suportava carregar na cabeça aquela catimplora tão pesada. Por que era que a minha alegria de todos os dias precisava pesar tanto na cabeça daquele homem abençoado, e teria que estar guardada naquele vaso de nome tão esquisito.
Mas hoje a minha preocupação vai mais longe, penso em quão mais triste seria o mundo se a alegria de uns tivesse sempre que estar presente através de um peso para outrem. Então, por questão de consciência, a quantas alegrias seria necessário renunciar, além das muitas a que já renunciamos por motivos os mais variados.
Enfim, a própria vida já é contraditória: ela é tão má, tão sem contemplação, no entanto, é tão bom viver!

Gláucia Lemos escreve crônicas neste blog para um livro que nasceu aqui. Foto de Andre Maceira, retirada do Flickr.

5 comentários:

Anônimo disse...

Grande crônica, digna do gênero que evoca as coisas levadas pelo tempo. Eta sorvete bom aquele. E a nostalgia que dá. O melhor era a espera pelo homem que levava a catiplora na cabeça.

Anônimo disse...

Melhor dizendo: catimplora ou cantimplora. Aqui dizíamos catimplora, mas vem do espanhol, cantimplora, que é o vaso de metal para resfriar a água.

Anônimo disse...

Pois é, Pereira, eu até tinha dúvida sobre a grafia correta, catimplora ou cantimplora, então fui ao Aurélio que me deu catimplora e remeteu a cantimplora (do espanhol). Você conhece a expressão, mas hoje é raro por ser coisa passada, não existe mais, suponho. Teria ganho o sorvete!

Gerana Damulakis disse...

Comprei sorvete hoje só por sua causa. E eu não costumo comprar sorvete nesta época do ano. Você tem o dom de fazer a gente comer as coisas pela força do seu texto. Lembra dos biscoitos cream craker?

Anônimo disse...

Melhor seria se você encontrasse um daqueles sorvetes vendidos nas catimploras, milhões de vezes mais gostosos, mas macios.Percebo que Pereira também os conheceu, ele falou em nostalgia, conheceu o que é bom em matéria de sorvete.Bom apetite!