segunda-feira, 25 de agosto de 2008

BONEQUINHA

Flamarion Silva


Caso de doidice... efeito da lua... maré ruim... coisa de sangue... trabalho feito por Das Candeias de seu João de Eleutério, desprezada que jurou vingança... vento ruim que bateu... coisa de cabeça... treta do homem... mas, o fato é que, a menina morreu pelas festas. No mar.
O homem puxou a poita da canoa, resoluto, enquanto mirava o barco de seu Tião, lá longe. Depois não conseguiu despregar os olhos da menina. Ela, sentada no banquinho do meio, sorrindo, se transformando nos olhos dele, derramando um olhar de feitiço para cima do homem que a via com uns olhos perdidos. O barco de seu Tião já lá longe, a vela cheia, bojuda, deixando para trás a Gerumana e o Oitizeiro de seu Nino. Já lá longe vai o barco de seu Tião.
A menina descamba a cabeça para o lado e sorri boazinha, sorriso de lábios frescos, nos olhos negros o azul do céu e o mar refletem. Nada que transtorne a calma do dia. O homem rema lento. A menina lenta cresce, assim com uns olhos bêbados de se deitar no sono. Sobre ela o homem se ajeita, enquanto afinca já com força o remo na lama. De repente ela grita, um grito que se ouve dela gemendo na alma, na cama canoa. Ais de dor, ais da mulher em parto. A flor em botão que despetala.
O homem sem nome, filho do Cão, arregala os olhos pro mar, pro fundo da lama, e Ela é calma como o silêncio mudo. A boneca a boiar, traz a lembrança do mar da Costa, quando ventava as palhas do coqueiro e tinha-se de se manter o chapéu afincado na cabeça pr’ele não avoar. Diziam que os corpos infantís vinham da África, a dar na costa. Os navios que naufragavam. Era uma alegria só que nem se pensava no desastre, pois tão distante...
Mas, agora, que o corpinho de sua boneca no mar, agora que seus olhos se abriam e viam, o homem não se acreditou são. Levou as mãos à cabeça e gritou:
– Deus! Deus! Deus!
Mas logo parou. Pois o barco de seu Tião já vem lá, saindo à boca do rio.
O homem tem o remo envolto, firme nas mãos rígidas. O barco de seu Tião vem lá com sua vela branca. E o homem, resoluto, ergue bem alto o remo e, sob o céu azul, desce-o com toda a força sobre a cabeça da menina, rachando-a.
– Pai. Pai, ele ainda ouviu ecoar no mangue. E, de lá de dentro, avoou uma garça vermelha, assustadiça.
Caso de doidice... efeito da lua... maré ruim... coisa de sangue...



Flamarion Silva é autor de O Rato do Capitão (FUNCEB, 2006). Foto "Canoa", de Bolivar Trindade, retirada do Flickr.

16 comentários:

Gerana Damulakis disse...

Excelente construção. A sensação é a de um delírio. Pede logo releitura. Parabéns!

Anônimo disse...

Que conto seu Flamarion! Que conto! A forma muito bem trabalhada, o conteúdo pega o leitor e lhe tira o fôlego.Meus aplausos.

Letícia Losekann Coelho disse...

Muito bom o conto, como disse Glaucia é de tirar o fôlego!
abraços

Anônimo disse...

Gostei muito, Flamarion, parabéns.
Abraços,
Fred Matos.

Anônimo disse...

Uau. Uau. Ainda estou zonzo. rs

Muito bacana. Vertiginoso. Parabéns.

Senhorita B. disse...

Parabéns, Flamarion! Gostei muito!
Bjs

Ana Santana disse...

Sim, dá uma zonzeira mesmo!
Parabéns!

Anônimo disse...

Menino... adorei o conto!! Realmente tira o fôlego e pede releitura imediata. De tudo que já li escrito por você, foi o melhor!
Beijinho, Carmen

Anônimo disse...

Parabéns!

Sua escrita nos conduz a uma co-autoria, pois nos permite, enquanto leitores, pensar sobre esse episódio, criar todo um cenário, suas características e as de seus personagens e pensar no que aconteceu.

Muito bom mesmo!

Anônimo disse...

Obrigado a todos vocês, meus amigos.

Unknown disse...

Oi monsieur Flamarion!!! Tudo bem?

Rapaz seu conto é muito bom. Achei muito poético e, ao mesmo tempo, trágico, intenso.O bom dele é que dá vontade de ler e ler...Atmosfera do conto é magnética, as imagens vão surgindo pouco a pouco tomando cor, formas , cheiro de rio, de sangue , de inocência, de malícia, de beleza , de dor, de tragédia , de loucura; todos os sentimentos se entrelaçam, se fundem, se confundem.Lembrei das poesias de Baudelaire lendo seu conto. Seu conto me transmitiu a mesma sensação de multidão de sentimentos , de embriaguêz de sentimentos que sinto quando leio as poesias dele.O início e fim tem uma cadência bem suave de contador de contador de estória, um cadência ecoante mas pianíssima e bela.
Um Grande Abraço
Parabéns você é ,de fato um talento

Anônimo disse...

Valeu, Ricardo. Grande abraço.

Anônimo disse...

Olá Flamarion!

Cheguei aqui pelo link que deixou no "recanto das letras" em um dos meus textos... Na verdade eu coloco lá textos antigos do meu blog :-p

Muito bom seu conto.. Parabéns!.. E obrigada pelos elogios :-)

Beijos!

Anônimo disse...

Obrigado, Maíra. Gostei realmente dos seus textos. Volte mais vezes, pois o blog da Gerana é muito bom. Abraços.

Unknown disse...

Menino, perainda.... to tonta...
vc brinca com as palavras de uma tal maneira que deixa gente meio zonza, meio doida... que eh isso?? vixxx
E o jeito de fazer a gente ir imaginando as cenas?...e o jeito de fazer a gente reconstruir o texto em nossa cabeca?...e a vontade que da de reler e reler?... e a poesia dentro da prosa... ????isso eh Falamarion!

Anônimo disse...

Obrigado, Rúbia. Que bom ir parar aí no Japão. Beijos em Yuka e abraço em Hiro. Graça manda beijos. Beijos.