sábado, 26 de julho de 2008

O TAL UNIVERSO PARALELO





Gláucia Lemos




De vez em quando ficam em moda determinados assuntos. Aparecem líderes, quando é o caso, ou os donos da verdade, quando se trata de descobertas,. Em conseqüência crescem facções, quem é a favor, quem é contra, quem acredita quem nega, quem não está nem aí.
Foi assim anos atrás, quando alguém ouviu, ou leu, a respeito do universo paralelo, e o assunto virou até música de Gil. Sei quase nada sobre o assunto, somente - resumindo – que seriam doublés de cada pessoa, que existiriam em uma outra dimensão, portando as mesmas características nossas, isto é, dos que vivem aqui nesta nossa dimensão, no nosso mundo material. Sou pessoa de credulidade muito rala, a quem qualquer coisa não convence facilmente, por isso nunca me interessei em me inteirar com profundidade. E mais não sei.
Os fatos da vida vão se juntando, nossos, como dos nossos circunstantes, e lá um dia a gente se pega à toa, sem propósito, matutando sobre eles. Vamos juntando coisas e quase sem querer, como quem junta peças de jogo de armar, vamos tirando conclusões, às vezes lógicas, às vezes hipotéticas e até fantasiosas.
É assim que estou acreditando que todos nós – ou pelo menos razoável maioria – temos o nosso universo paralelo. Mas não pensem que aderi à teoria do duplo – para mim bastante improvável. Um universo aqui mesmo nesta nossa dimensão material suficientemente pragmática que é a nossa realidade. Será o universo pessoal, privado, oculto, no qual vivemos paralelamente ao universo social do qual participam familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos, enfim todos com os quais socialmente participamos da existência, inclusive os nossos mais íntimos.
Vejamos: Quem não tem, no caminhar da existência, um fato ou um ato guardado lá no escaninho mais estreito da memória, ou do coração, não importa há quanto tempo, que não abre para ninguém? Pode ser um fato inocente, até que não passaria de bizarro, ou mais grave e até criminoso que macularia a dignidade. Uma gafe em local inconveniente, um escapar de um arroto em público ou em presença cerimoniosa, uma infidelidade amorosa, uma traição a amigo, uma mentira injustificável, um amor impossível e condenável que não se esqueceu? Este conteúdo que não se revela, no entanto não há tempo que o apague - porque já diz o ditado que palavra dita e pancada dada nem Deus tira - causaria constrangimento sendo conhecido, ou condenaria às labaredas do inferno segundo o arbítrio dos justos. Este conteúdo permanece no nosso universo que cá está paralelo ao universo social do nosso cotidiano.
Sabemos de pessoas, casais, que um dia se conheceram em circunstâncias normais, e sem a intervenção da vontade, de mera conversa se identificaram como se houvera anterior entrosamento, o sentimento se fazendo mais profundo que a fugacidade da paixão, ou a embriaguez do encantamento. E daí nunca mais foi possível se separarem. Quem entende dos mistérios que transitam entre uma mulher e um homem, quando uma verdade se põe entre os dois? Solidificou-se um sentimento que socialmente seria condenável, por haver implicações anteriores. Separam-se, mas permanecem um na vida do outro em silêncio, e nem sob suplício chinês o revelariam a quem quer que fosse. Esse amor está vivendo no universo paralelo dessas pessoas.
Ou não se separam e optam por vivê-lo perigosamente, como quem furta a própria felicidade, usufruindo outra vida, ao lado da vida social que continuam mantendo, e que é a que todos conhecem. Quem não presenciou ou soube de alguns quadros semelhantes? E esse é só um exemplo entre muitos, por ser o mais comum, de vidas que pulsam em um universo paralelo, o do segredo da transgressão. Ninguém vê essa realidade, mas ela existe, nesse universo inviolável que todos temos.
Estou convencida de que o universo paralelo existe, no qual não temos um duplo nos representando, somos nós próprios, unos e indivisíveis, vivendo as circunstâncias inevitáveis que nos colhem, para o bem ou para o mal.



Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta. Mais de 20 títulos publicados e vários prêmios fazem parte de sua carreira literária. Foto de Juan Pablo, retirada do Flickr.

8 comentários:

Anônimo disse...

Quando encontro sua crônica eu penso, Oba, hoje tem. Mais uma página adorável para o livro que vem se formando. Parabéns, escritora!

Gerana Damulakis disse...

Gláucia: este mundo paralelo lembrou-me aquele conto de Aramis que eu adoro, "A rosa de Natália", do livro O mar que a noite esconde. Se você tiver o livro, procure o conto e veja se eu entendi direito, se não é exatamente isto o que a personagem faz. Depois me diga.

Gerana Damulakis disse...

Fiquei tão entusiasmada em fazer um paralelo que não escrevi o que, aliás, já é óbvio: mais uma ótima crônica para "nosso" livro.

Anônimo disse...

Pereira, você é aquele tipo de leitor que literalmente empurra o escritor para seu oficio, lá vou eu, muito obrigada.
Gerana, acho que tenho sim o livro de Aramis, não me recordo do conto referido, mas vou procurar para conferir e lhe direi. Obrigada pelas palavras. As ilustrações já estão sendo esboçadas pelo traço perfeito de André Leal.Vão ficar lindas.

Anônimo disse...

Esta crónica diz-me muito, embora creia que a Gláucia fale de Universos perpendiculares.

Mas como diria o Guimarães Rosa, "pão ou pães é questão de opiniães". ;)

Anônimo disse...

Disse à Gerana, por mail (porque não tenho o mail da Gláucia) que não comentaria este poema porque não queria apenas escrever "gostei" sem explicações - porque há coisas que se gostam e sentem sem explicações, ou onde as explicações apenas varrem a poalha cósmica que dá sentido à fruição dessa coisa.

Mas fica aqui, para que conste.

Anônimo disse...

o comentário anterior devia estar noutro lugar: no poema "Como um anjo" - não sei como foi parar aqui. Erro meu, decerto.

Anônimo disse...

Manoel Anastácio: Obrigada pelo comparecimento. O "Gostei" sem explicações implica justamente naquilo que a arte almeja: chegar à sensibilidade sem explicações nem justificativas. Meu email aqui está glaucialemos9@hotmail.com , pode usá-lo para as comunicações literárias que pretender.