Gláucia Lemos
No Campo Grande, em um ângulo que confina com a Avenida Sete, cresceu de semente tangida pelo vento, ou foi plantada em hora de inspiração, uma paineira. Não é uma paineira, é um colosso, uma obra monumental da natureza. Sempre que passava por ali, nos meus tempos de Escola de Belas Artes, me punha ao pé do tronco, rugoso e formidável, cuja circunferência denunciava séculos de existência, e olhava para o alto a contemplar a fronde, a graça da imensa galharia espalhada em folhas e floração rósea frutificada em paina, larga, imensa e majestosa no seu domínio do espaço. Não sei se ainda lá está, mas desejo que sim.
Sempre pensei em quantas coisas, ao longo dos séculos, seus ouvidos – se ela os tivesse – teriam escutado. Confidências e inconfidências, contratos e conluios de fugas e de vinganças criminosas, ternas palavras de idílios proibidos, traições e vidas negociadas. À sua sombra, quando menos alta a fronde e menos grosso o tronco, quanto forasteiro sedento, adentrando a cidade, teria parado, para do albornoz empoeirado sacar o cantil e matar a sede. À sua sombra quanto escravo teria estacionado seu tabuleiro de peixes, seu balaio de frutas, para rápido repouso das pernas nodosas da sempre jornada no ganho das patacas que apressariam a compra da alforria.
Seus olhos – se acaso os tivesse – a quantos fiéis teriam assistido, sob os véus nas cabeças contritas, os chapéus nas mãos, seguindo charolas e andores de imagens nas numerosas procissões, quantas liteiras passando a conduzir sinhazinhas, mal escondidas por entre as sanefas das janelas, a furtar com o olhar disfarçado os olhares do cavalheiro postado sob a paineira, na hora exata de vê-la passar.
Quantas vezes terá visto transitarem os condenados vestidos nas alvas, a caminho do sacrifício, em lúgubre acompanhamento de padres e carrascos, até a forca armada na praça da Piedade, seguidos do ímpio cortejo de curiosos. Quanta vida pulsante a seu redor e quanta morte inútil, quanto gesto amoroso, quanto sinal disfarçado, quanto crime inclemente, quanto discurso vazio, quanta intriga, quanto carnaval inconseqüente, quanto sonho, quanta dor, quanta história a paineira teria para contar.
Houve um tempo em que, tomada por esses pensamentos, até pensei em escrever um livro que seria uma conversa com a paineira que me contaria tais segredos, e eu teria uma história muito rica. A idéia ficou, a inspiração não aconteceu, porém.
Às vezes me pergunto se as árvores não terão, como os insetos, o seu sistema de comunicação. Se no farfalhar das folhas não conversarão com suas semelhantes, um pouco que seja, das coisas que acontecem, dos fatos que presenciam, dos flagrantes da história, dos costumes dos homens. Se elas se guardam com suas memórias – se as têm — que se irão fragmentar no dia em que, abatidas, se tornarem tábuas, virarem toros, se transformarem em papéis. Talvez papéis que venham a virar livros, nos quais a posteridade aprenda coisas escritas pela humanidade, muito diferentes do que eles já trazem na memória remota das suas próprias folhas. Nunca terei esta resposta porque ela vive o absurdo da minha fantasia. Mas tenho quase certeza de que um livro em branco não está de todo vazio. Nós é que não sabemos ler o que ele guarda.
No Campo Grande, em um ângulo que confina com a Avenida Sete, cresceu de semente tangida pelo vento, ou foi plantada em hora de inspiração, uma paineira. Não é uma paineira, é um colosso, uma obra monumental da natureza. Sempre que passava por ali, nos meus tempos de Escola de Belas Artes, me punha ao pé do tronco, rugoso e formidável, cuja circunferência denunciava séculos de existência, e olhava para o alto a contemplar a fronde, a graça da imensa galharia espalhada em folhas e floração rósea frutificada em paina, larga, imensa e majestosa no seu domínio do espaço. Não sei se ainda lá está, mas desejo que sim.
Sempre pensei em quantas coisas, ao longo dos séculos, seus ouvidos – se ela os tivesse – teriam escutado. Confidências e inconfidências, contratos e conluios de fugas e de vinganças criminosas, ternas palavras de idílios proibidos, traições e vidas negociadas. À sua sombra, quando menos alta a fronde e menos grosso o tronco, quanto forasteiro sedento, adentrando a cidade, teria parado, para do albornoz empoeirado sacar o cantil e matar a sede. À sua sombra quanto escravo teria estacionado seu tabuleiro de peixes, seu balaio de frutas, para rápido repouso das pernas nodosas da sempre jornada no ganho das patacas que apressariam a compra da alforria.
Seus olhos – se acaso os tivesse – a quantos fiéis teriam assistido, sob os véus nas cabeças contritas, os chapéus nas mãos, seguindo charolas e andores de imagens nas numerosas procissões, quantas liteiras passando a conduzir sinhazinhas, mal escondidas por entre as sanefas das janelas, a furtar com o olhar disfarçado os olhares do cavalheiro postado sob a paineira, na hora exata de vê-la passar.
Quantas vezes terá visto transitarem os condenados vestidos nas alvas, a caminho do sacrifício, em lúgubre acompanhamento de padres e carrascos, até a forca armada na praça da Piedade, seguidos do ímpio cortejo de curiosos. Quanta vida pulsante a seu redor e quanta morte inútil, quanto gesto amoroso, quanto sinal disfarçado, quanto crime inclemente, quanto discurso vazio, quanta intriga, quanto carnaval inconseqüente, quanto sonho, quanta dor, quanta história a paineira teria para contar.
Houve um tempo em que, tomada por esses pensamentos, até pensei em escrever um livro que seria uma conversa com a paineira que me contaria tais segredos, e eu teria uma história muito rica. A idéia ficou, a inspiração não aconteceu, porém.
Às vezes me pergunto se as árvores não terão, como os insetos, o seu sistema de comunicação. Se no farfalhar das folhas não conversarão com suas semelhantes, um pouco que seja, das coisas que acontecem, dos fatos que presenciam, dos flagrantes da história, dos costumes dos homens. Se elas se guardam com suas memórias – se as têm — que se irão fragmentar no dia em que, abatidas, se tornarem tábuas, virarem toros, se transformarem em papéis. Talvez papéis que venham a virar livros, nos quais a posteridade aprenda coisas escritas pela humanidade, muito diferentes do que eles já trazem na memória remota das suas próprias folhas. Nunca terei esta resposta porque ela vive o absurdo da minha fantasia. Mas tenho quase certeza de que um livro em branco não está de todo vazio. Nós é que não sabemos ler o que ele guarda.
Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta. Este texto marca o início da transformação de uma idéia em realidade: reunir as crônicas publicadas neste blog em um livro. A capa, seguramente, deverá ter uma paineira. Foto de Gustavo 737, do Flickr.
6 comentários:
brilhante!!
Eu também acho tudo que ela escreve brilhante. Queria mandar meu livro, mas (é até vergonhoso) a água molhou todos naquela última chuva. Moro em Periperi e aqui chuva é sinônimo de inundação e destruição.Eles estavam na garagem por falta de espaço dentro de casa e não houve tempo de carregá-los. Vou tentar buscar alguns exemplares na EGBA, mesmo que tenha que pagar por eles.
Obrigada, Pereira, mas repare bem que alguns brilhantes são mais límpidos que outros! Livros molhados... que pena...
Sem comentários... Esse texto seu é divino.
Livros em branco são intensos, coloridos etc. Ás vezes os leio enquanto olho o espaço vazio, às vezes quando vou dormir, às vezes quando leio um outro livro. O bom deles é que não seguem a norma da escrita, eles se pintam, eles se formam e se deformam, desfazem-se. E são só nossos, ou de outros que nem sei. São tantas criações. Vê como a gente viaja? Bem, meus livros em branco são assim.
Grande abraço. Você é ótima.
Flamarion.
Flamarion, obrigada.Como você viajou! Imagine um livro de páginas feitas da madeira daquela paineira. Quantas histórias suas páginas já trariam na própria origem da madeira, histórias a que a paineira assistiu enquanto era tronco bruto testemunhando a vida, e que ficariam impregnando as páginas em que viria a ser transformada.Que viagem seria!
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