terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

CERTAS MÚSICAS





Gláucia Lemos



Desperto para a manhã quente de um verão sufocante. O pensamento é o mesmo de alguns dias, ainda não consegui me livrar dele, e não creio que o queira perder . O mesmo pensamento vem tomando todo o meu tempo e espaço, e não entendo por que finjo querer dispensá-lo, se tenho consciência de que ele me dá prazer. Está sendo como certas músicas que às vezes teimam em freqüentar nossa mente sem qualquer motivo que não o registro de alguma coisa. Desde o dia em que cheguei da última viagem comecei a cantar: Deixe eu dizer que te amo, deixe eu gostar de você. Amor I love you, amor I love you. Mal acordo e aqui está como um pano de fundo bem dentro em mim: Amor I Love you, amor I love you. A melodia se repete e estou a cantá-la mesmo em silêncio.
Por entre as faixas frágeis das persianas, listras de luz se projetam e desenham um simétrico painel na parede clara. Brinco de este-sim-este-não, com o olhar saltitante entre elas, procurando ocupar a mente com outra coisa. Lá fora o amolador de tesouras sopra um realejo em escala cromática agudíssima. Então, imediatamente penso em André que se incomoda com o som dessa escala. Já perguntei: Por que não gosta? – Não sei, não gosto. Foi bastante. Aquela gaita é ele. É curioso como certos sons estão ligados a certas pessoas e a certos momentos. O amolador de tesouras e meu neto André. Amor I love you e uma imagem fixa no meu pensamento, como se fosse possível reter uma figura as time goes by. E a repetição desse compasso está agora outra vez interrompendo o meu desejo de continuar esta crônica, que me acordou logo pela manhã para a luz e os suores do verão, e era desse verão que eu queria falar. Um pensamento, uma imagem insistente e um pedaço de música que se casa perfeitamente com a sugestão da imagem.
Falo As time goes by e a expressão remete a Casablanca, o filme. No último sábado o vi pela terceira vez. Agora em DVD. Quando foi lançado, eu estava saindo da puberdade, idade de sonhos de amores eternos e de inabalável fé na eternidade do amor. As time goes by cantava na boca de todos os adolescentes como um hino e uma profissão de fé. Por tudo e por nada repetia-se: “Toque outra vez, Sam”. Erradamente, pois a frase no filme é “toque uma vez, Sam”. Mas era constante.
Eu estava nos meus primeiros anos de ginásio, e no meu primeiro encantamento sentimental. E acreditava que amaria por toda a eternidade aquele menino franzino, branquinho, de cabelos negros sempre caindo um pouco sobre a testa, numa madeixa luzidia e teimosa. Enfim, a eternidade está dentro de nós. Era meu vizinho, tinha olhos grandes e, na boca pequena, um sorriso bonito. Onde abri as mãos e o perdi? Se é que o perdi. Em que trecho da vida o deixei, que ele continuou a vir comigo suave como um vôo de pássaro que me acompanhasse em todos os lugares, em todas as companhias que tive, em todas as perdas e todos os êxitos, e ainda o tenho, mesmo agora quando sei que está morando em algum ponto onde moram todos os mistérios que estão encravados na eternidade, ainda o tenho as time goes by. Amor I love you, amor I love you.


Gláucia Lemos ganhou o prêmio UBE - SP 2007 com o romance BICHOS DE CONCHAS.

5 comentários:

Kátia Borges disse...

Bravo, Glaucia, lindo!

Carlos Vilarinho disse...

Penso comigo que a vida são ciclos que se renovam a cada ciclo(s) terminado. Eu acho.Claro.Deve lhe acompanhar, sim. Talvez como pássaro, ou planta. Ou pensamento que finge dispensar. Ou com as letras maravilhosas que brinda conosco, com nosotros...

Letícia Losekann Coelho disse...

Uau...Gláucia Perfeito! Adorei!
Gerana, a qualidade dos astistas do teu blog é fantástica, Gláucia escreve muito bem!
beijos

Anônimo disse...

Kátia,obrigada pelas palavras elogiosas.Vilarinho, concordo com a idéia dos ciclos. Há pessoas que nos acompanham como um pano de fundo em nossa vida, porque nunca as esquecemos, embora não estejamos pensando nelas a todo momento. Obrigada. Tita,gostei do Uau e do escreve muito bem.Obrigada.

Anônimo disse...

Gl�ucia, suas palavras fluem t�o bem que, quando nem as percebemos, elas j� est�o tocando a gente. Bulindo com nossas lembran�as guardadas. Despertando-as. Abra�os.