segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

UMA ORQUÍDEA NA CHUVA





Gláucia Lemos


Uma velha amiga, de passagem pela cidade, fez-me uma visita. Na despedida, apanhou do carro, onde a deixara ao chegar, um presente especial. Uma bela orquídea branca de haste delgada, elegante, realmente rara. Demorei-me com ela nas mãos, tentando protegê-la dos chuviscos que começavam a cair em grossos pingos, até que a chuva desabou e a visita apressou-se em partir.
Tínhamos acabado de falar em você, por isso foi inevitável a associação entre você e o presente que recebi. Ambos valiosos e raríssimos. É verdade que falamos em você sem propósito. Como se fala de alguém que se conheceu há muito tempo, a quem se esteve ligado por um vínculo antigo. Desses liames mornos das amizades inconseqüentes. Assim ela me falou de você. Isto é, eu perguntei notícias. Assim, à toa, só porque ela mora na sua cidade e é uma amiga comum. Disse-me que o tempo lhe deixou suas marcas. É natural que nessas décadas de ausência você tenha ficado muito diferente. Não imagino como esteja agora. Só consigo vê-lo revendo-o no registro da memória. Eu lhe mandei um abraço. Um abraço, pobre amigo, pode ser um cumprimento insignificante, porque abraço é a maneira mais comum de se externar estima. Extensa gama da afetividade, passando pela afeição, vai até ao incendiário abraço da paixão. É muito longo o elenco de sentimentos que passam pelo abraço. Vencidas dezenas de anos de afastamento, um abraço pode ter também um calor diferente. O calor do ainda lembrado, ou do nunca esquecido. Pode ser uma página de álbum de recordações.
Muita coisa é macerada nos silêncios das distâncias e, quando acordada desses silêncios, uma pergunta descerra a urna escondida sob o pó dos tempos. A verdade antiga ainda aflora e ainda se percebe que há vida no que fora vida há tempos idos. Ainda pulsa em juventude e graça o que o tempo haveria de ter tornado envelhecido e triste. Insisto em conservar a memória do seu rosto alegre e jovial, do brilho inflamado na vibração dos seus olhos que nunca estavam em gris. É assim que ainda quero recordá-lo, como o via naquela inútil tecedura de projetos. Braçadas de náufragos sem porto à vista. Isso nós já o sabíamos. Não tínhamos cais nem porto de chegada. Nadávamos para o nada. Mas nadávamos porque era inevitável. Com a nossa inútil alegria. Recuso-me a imaginá-lo alquebrado e decadente.
Disse-me que você não foi feliz. Pergunte-me se fui, pobre amigo, pergunte-me se fui. Ninguém conhece o que seria falar de um para o outro, nenhum de nós o confidenciaria a quem quer que fosse, por isso só mesmo em um falar sem propósito chegávamos a saber de nós. Não que nos envergonhássemos, por que assim haveria de ser? Sim, há os outros, os puros, os retos, os incorruptíveis, os que supõem acreditar que nunca escorregariam do traço que se propuseram obedecer riscado no chão, esses nos apontariam o dedo da acusação. Até que em uma das traiçoeiras esquinas da vida se reconhecessem semelhantes a nós. Eu nunca me sentiria culpada, nem você. Porque nos sabemos como ninguém. Só nós nos sabemos.
Lembra-se do que lhe falei naquela primeira carta após o meu regresso? Primeira e única, não me recordo de lhe ter escrito outras vezes, olhe lá se eu poderia ... Naquela carta lhe disse: Não me sinto culpada. Teremos culpa, eu ou você, de termos nascido para um mundo hipócrita? Os sentimentos direcionam-se espontaneamente sem que as nossas vontades os dirijam. Se voluntários, seríamos culpados? De que culpa nos podem acusar? Sejamos justos: nos culpariam por sermos um homem e uma mulher. É esse o nosso crime.
No entanto, há outras coisas no plano de fundo, há as convenções, há os compromissos. Somos fios de um novelo que começou a se desenrolar antes de nós e continuará a se desenrolar depois de nós. Não somos a ponta do novelo, não o iniciamos, por isso carregamos os nós que foram atados antes do nosso advento, e nunca desenrolaremos os que vierem depois. E entre os nós pregressos, há aquele que é maior que uma chaga na sua consciência. Na minha, menos, é só mais uma convenção, na tábua da lei da hipocrisia. Mas na sua, pobre amigo... Lembra-se? Eu lhe disse isso. Mandei-lhe aquela carta por Elisa, e você, cheio de escrúpulos por mim, pediu que ela mesma a trouxesse de volta e a destruísse, porque nela eu lhe pedia que a queimasse por cuidados com você. Como seria tão imenso o meu crime se ela caísse em mãos impróprias. Você sabia como eu seria crucificada. Elisa, a boa Elisa, trouxe-a de volta e me entregou com o seu recado: a frase afirmativa que me fez sorrir e cantar e dançar na frente dela e depois por muitos dias e noites, repeti a mesma frase para mim mesma. Eu lhe pedira qualquer frase afirmativa, se eu ainda fosse a mesma no seu sentimento. Ou negativa, se já me estivesse esquecendo. Elisa me disse, ignorando o sentido: mandou lhe dizer que está bem e que virá aqui qualquer dia. Eu sabia que você não viria, como poderia? Mas você não sabe que naquela tarde me fez renascer e, no tédio com que eu convivia, abriu um intervalo, iluminou uma sala e nela pôs um solo de sax-tenor que ecoou por muito tempo.
Sabe, pobre amigo, agora está chovendo muito. Todo julho chove muito e é nessas tardes que aumenta de intensidade um desejo de retorno, nem sei bem se é retorno, mas em todo julho, essas águas e ventanias me fazem padecer dores e tristezas. Assim, com certeza porque ontem você esteve tão presente, a chuva desta tarde é ainda mais doída. Traz-me um toque daquela saudade, daquela mesma. Era tanta saudade, era tanta, que uma dor física se impunha no espaço de todo o meu corpo, como se sentir a sua ausência fosse oprimindo o meu peito e obstruindo as minhas narinas e sufocando a garganta. E, não conseguindo respirar, o coração acelerava e uma agonia entrava no meu cérebro desorganizando o meu entendimento. Nunca senti tanta saudade quanto aquelas que sentia de você. Nunca. Nem antes, nem depois. Depois, nós nos vimos outras vezes naquelas mesmas circunstâncias. Teríamos outras? Mas nós sabíamos que ainda era tanto o que nos guiava, que algumas vezes quase nos traímos. A verdade estava em nossas faces, em nossos olhos estava a verdade tão simples, tão nua, que ainda hoje eu me pergunto por que somos condenados a certas renúncias. Por que nos rasgamos de nós mesmos e seguimos chutando nossas vísceras inúteis. Ainda hoje eu me pergunto.
Assim nos afastamos sem nos separarmos. Eu sei que não é preciso estar perto para se estar junto. Assim foi conosco, pobre amigo.
Ontem, tantas décadas depois, aquela amiga, assim, sem propósito, inocentemente, falou tanto de você. Notícias recentes e tristes de uma história antiga e inacabada, sem ter noção do quanto abria de nós. Em seguida às palavras, aquela orquídea ao chegar às minhas mãos tinha que ser associada a você. Rara, elegante, única talvez. Parecida com você. Mas tinha que começar a chover quando ela entrou no carro, e rapidamente engrossar o aguaceiro assim que ela partia, e choveu tão copiosamente que a ventania arrebatou a haste da flor, antes que eu deixasse a calçada, e ela se foi aos emboléus da chuva e do vento, e eu a perdi na enxurrada da sarjeta.
Como nos perdemos nos temporais que precisamos vencer nos nossos necessários silêncios.
Agora, tantas décadas passadas, retomo o mesmo tempo como flashes tão nítidos, e me convenço de que, ainda assim, ainda quando a renúncia se impõe, vale mais a pena permanecer amando, que tentar esquecer. Ainda quando o vendaval de uma chuva de julho, ou das outras muitas chuvas da existência, arrebata e leva a nossa orquídea para o nunca mais.





Gláucia Lemos é ficcionista com mais de duas dezenas de títulos e vários prêmios. Com O riso da raposa (Bibliex, 1988) recebeu o prêmio da Academia de Letras da Bahia. A foto é de Daniboy, retirada do Flickr.

4 comentários:

Carlos Vilarinho disse...

Tenho vontade de duas coisas, entre tantas outras, depois de ler sua preciosidade.
1.Receber uma carta sua.
2. Lhe dar um abraço.

Anônimo disse...

E eu, tal como Vilarinho, fiquei emocionada, deu uma vontade danada de comprar uma orquídea em pleno clima do conto.E vontade também de abraçá-la. E também de beijá-la.

Anônimo disse...

É melhor mesmo conservar a orquídea na imagem que a mente guarda e não deixar o tempo apagar. Um conto intenso realmente, parabéns pelo seu grande talento.

Anônimo disse...

Vilarinho, é fácil receber uma carta minha, escreva-me uma carta, responderei. Qto ao abraço,conceda sua presença ao meu próximo lançamento,certamente me dará um abraço.Gerana,sabe que trocamos abraço e beijo toda vez que nos vemos; faz tempo, não é?Pereira,Certas orquídeas ficam mesmo é no coração.Obrigada por suas palavras. Cadê o livro?