quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

TREM DE FERRO



Gláucia Lemos



É uma saudade boba a minha nostalgia do trem de ferro – eu que nem viajei muito.
Se pudesse alimentar um hobby caro, certamente colecionaria pinturas e desenhos, e faria fotografias, de trens de ferro. Teria Almiro Borges na minha sala, teria O trem sob a neve, de Monet, e quantos mais tivesse possibilidade, todos com sincera reverência.
Sinto um élan de vida no trem de ferro. O poder das rodas mastigando os trilhos, extensos trilhos, infindáveis trilhos condutores dos viajantes de todas essas terras de Deus. O apito, um gemido de partida que nos penetra fugidio como um suspiro que escapa forte, e vai-se esvaecendo até morrer suave, em derradeiro soluço, fiapo de som. Outras vezes, o mesmo apito é o álacre aviso de chegada, clarinada de anunciação de regresso, véspera de abraço quente, beijo misturado a risos, café na mesa, lençol lavado cheiroso a ervas, e novas histórias a serem contadas. Por onde andou, o que trouxe? Poeiras, velhas cercas enegrecidas margeando a ferrovia. E matagais, porteiras e rebanhos. E pontes oscilando por cima dos magros rios, bebedouros de animais. E vilas de gentes famintas e reclusas com seus calcanhares rachados, que têm sua festa só quando passa o trem rangendo os ferros, apressadamente, compridamente nos seus comboios, e elas acenam às janelas, aos rostos anônimos, acenam, acenando a ninguém. Que de ninguém sabem, e, para aqueles rostos nas janelas, também elas são ninguém.
Não sei que lembranças me vêm do trem de ferro. Imagem evocativa do nada inflama a emoção sem motivo, sentimento vazio, pois nunca vivi aquelas vilas, não conheci a alegria de esperar o abraço dos que chegam nos seus vagões carregados da ansiedade do regresso. Nunca padeci a ausência de quem se distanciasse no apito sofrido, agudo e fugidio da partida do trem, para sofrer a angústia do espaço alongado. No entanto, toca-me por ele melancolia estranha e suave saudade. E um magoado desejo de seguir também para algum destino que não sei, mas que insistente me chama.




Esta crônica foi publicada na coluna Ultraleve do jornal A TARDE em 5.3.2002 e republicada a pedido alguns dias depois. A foto é de bambuum retirada do Flickr.

6 comentários:

Carlos Vilarinho disse...

O que vou falar, Gláucia?
Vou viajar de trem também.

Anônimo disse...

"Vambora!"

Anônimo disse...

Esperem por mim!

Anônimo disse...

Quem iria sem você,menina?

Anônimo disse...

Estou um pouquinho atrasado, mas sinto que este trem de Gláucia é o de todos nós. Trem de ferro, trem de vento, trem de espaço, trem de tempo. Ele vem e vai, ele vem e vai... E este meu momento, depois desta crônica eterna, é de pura nostalgia, de algo que ainda estou sentindo mas nem sei o que é, talvez um breve sentido da inevitável viagem, férrea, etérea.

Carlos Vilarinho disse...

Gláucia, viajo sim.