quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

O ENTERRO DE VADINHO


Carlos Vilarinho

Jazigo perpétuo de Risoleta Arquimedes, jazigo perpétuo de Carlos Teodoro, jazigo perpétuo de Frank Menezes, jazigo perpétuo de Florentina Antonia de Souza, jazigo perpétuo de Domingos Oliveira, jazigo perpétuo de Roberto Flores, jazigo perpétuo de Bonifácio Zurich, jazigo perpétuo de Augusta Magalhães, jazigo perpétuo de Hilda Freire, jazigo perpétuo de Joventina do Carmo, jazigo perpétuo de Gildásio Rodrigues, jazigo perpétuo de Lucas de Oliveira, jazigo perpétuo de Jovina Vieira...
Quanta gente morta. Tomara que eu encontre Aquiles. Sempre tive curiosidade em saber como se sentiu ao morrer simplesmente por uma flechada no calcanhar. Coisa mais estúpida. Agora sei como aquele gato preto do Edgar, Plutão era o nome dele, se sentiu quando foi colocado dentro de um buraco na parede e rebocado com bloco e cimento. É uma sensação horrível estar aqui preso nessa caixa. Vou sair.
— Não, mãe! Não! É muito pavoroso aqui, tenho medo.
Era o filho de Joaninha, a secretária do lar. Lar da minha casa. Aquela gostava de mim, está com a expressão triste, a infeliz. Se ela soubesse que isso aqui é um alívio. Cheguei bem perto de Harmonia, tinha os olhos inchados. Confortava com franqueza minha sobrinha Amelinha. A única vez que vi olhos brilharem realmente foi quando levei Harmonia ao teatro. Ela escondida do marido e eu da minha mulher. Parecia que havia duas pedras de diamantes dentro dos olhos da morena caiana. Assistimos a “A Comédia dos Erros” de Shakespeare. Harmonia ria um riso puro e rechonchudo. Fiquei contente naquele dia.
Não sabia que morto pesava mais. Meu sobrinho Antero, irmão de Amelinha, não sabia se chorava ou se fazia força para segurar a alça do caixão. Foi isso que me tornei, uma alça de caixão.
— Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! Levou, painho! Levou painho!
— Calma, senhora, calma.
Era uma afilhada que toda semana me pedia dinheiro. Por isso eu era painho. Amelinha detestava essa criatura. Queria saber como Dorian Gray ficou morrendo dentro daquele quadro. Outra coisa esquisita. Agora, no entanto, sei como Brás Cubas se sentira. Não sou ele, o verdadeiro e original, mas acho que todo mundo que morre se sente assim, como Brás Cubas. Estou aqui em cima sendo carregado, vão me colocar numa gaveta horrorosa e, por enquanto, vou zanzar por aí. Vi de relance aquele que tem o segredo da vida e da morte. Já tinha sido avisado que ele viria. Era o velho Omolu. Sabia que viria só para me certificar de que tudo que desconfiava era verdade. Quando fiz quarenta anos, tive um insight na rua. Tive uma visão que mostrou a minha morte em vida. Não só uma, mas várias vezes. Diversas vezes fui um vivo morto e desconfiava que quando morresse estaria livre para viver realmente. Era isso que o Velho viria me avisar. Além dos procedimentos de praxe de um recém morto.
— Aqui pra nós, ele morreu de tristeza quando Harmonia terminou o caso com ele...
— Ele me contou que o chifrudo estava desconfiado e que deu uns safanões na criatura...
— Foi isso mesmo. Ela ficou com medo, mas ela está triste, vejam...
Eram Luís, Mariozinho e Joel Cara de Cachaça. Os únicos que sabiam de mim e Harmonia.
De qualquer forma teria que curtir meu enterro. Até então não saberia se haveria outro em qualquer parte do universo. Sabia que de agora em diante viveria com mais calma. Lembrei de uma vez que passei a freqüentar centros espíritas. Seria mais ou menos como eles falam mesmo, com a diferença de que o morto ouve o pensamento de todo mundo. Isso é que é bacana. Acho que vou continuar morto o resto de minha vida.
— Não, mãe, não! Não, mãe, não! É assustador aqui. É assustador. Seu Vadinho também tinha medo do escuro, mãe, seu Vadinho também tinha medo!
O filho de Joaninha era um bom garoto. Contava histórias para ele dormir, às vezes escabrosas que eu mesmo ficava com medo mais tarde. Engraçado, ele me disse uma vez que os mortos ouvem mais do que os vivos. Como ele sabia disso? Uma vez numa palestra ouvi uma dessas Facilitadoras dizer que a criança é mais perspicaz e sensível do qualquer adulto. Isso eu já sabia, contudo não tinha certeza, e fiquei em dúvida durante a tal palestra sobre a transparência.
— Mãe, enterro é um casamento ao contrário, não é?
Realmente. Nos dois há séquito. Nos dois há choro. Nos dois há extremos. Nos dois há contradições. Nos dois há franqueza e falsidade. Harmonia, por exemplo, com aquele brucutu. Destoava algo tão nítido e claro que não sei como ele não percebia. Ou percebia e fazia que não percebia. Mas ela própria ia e vinha com ele. Ou sobre ele. Trânsito confuso esse na cabeça de uma mulher. E só agora depois de morto, sem direito a fala, só a ouvidos, entendia então o que significava a transparência da criança naquela pergunta inocente do filho de Joaninha.
— Eu prefiro festa de natal a enterro ou casamento, mãe.
Ou na afirmação judiciosa da criança, ao passo que, naquele momento, tive a impressão de que ele, o pequenino, me vira, ou me enxergara, quando estava ao lado de Amelinha e Harmonia tentando confortá-las. Olhei para o fundo e vi o Velho. Quando retornei as vistas, o filho de Joaninha estava com os olhos fixos em minha direção. O Velho balançou a cabeça como, ao mesmo tempo, me certificasse e aprovasse a visão do pequeno. Ele, o Velho, estava me esperando para me levar não sei para onde. De vez em quando ouvia umas vozes de velho na minha cabeça, mas achava que eu estava ficando maluco com tanta maconha que fumava. Era ele, o anjo da guarda, me avisando dos perigos. Ele vinha e colocava um zumbido no meu ouvido. Olhei novamente o filho de Joaninha e ele estava com as mãos espalmadas rindo e olhando para o céu.
Ouvi umas palavras de Harmonia, as últimas antes de partir.
— Uma vez Vadinho recitou um poema para mim tão lindo, disse-me que era para eu não esquecer quando ele morresse... E agora esqueci.
Harmonia chorava saudosa. Mas num sopro de vida restante, enviei o poema que não era meu, mas de uma grande amiga.
— Acho que me lembro Amelinha, não sei como, mas lembrei pelo menos de uma parte, acho que é assim:
O que restará agora?
Na verdade o que restará?
Naquele dia parti enfim
nem olhar olhei, sem visão
Não levei lembranças sem fim
sem validade , sem mala
Como quem, deixando a sala,
deixa o ontem, tudo, escombros
Tudo deixado atrás dos ombros,
restou o sonho, essa viagem
para a qual não achei passagem.

19/12/07

Poema de Gerana Damulakis “DEPOIS DO INÍCIO”
Carlos Vilarinho é ficcionista, autor de As Sete Faces de Severina Caolha & Outras Histórias (FUNCEB, 2005).

8 comentários:

Anônimo disse...

Terminei a leitura do conto com pesar. Me senti viúva!Por perder Vadinho, um homem gentil e sensível...
Vadinho era como Vilarinho, um misto de docilidade, sensibilidade e rudeza, comum a todos os homens. Obrigada pelas palavras, cuidados e atenção grande poeta e escritor.

Beijos!!

Harmonia

Carlos Vilarinho disse...

RSRSRSRS...
Valeu, Harmonia! Você é massa!

Letícia Losekann Coelho disse...

Nossa...morrer de amor, gstei disso! Tem uma sensação gostosa de movimento uma hora ele se sente triste pede ajuda para a mãe...na outra se entende como morto! Adorei o conto e a belíssima poesia da Gerana...coisa mais linda!
Já te deixo aqui um Feliz Natal e tudibom que a vida pode te dar!!
beijos

Carlos Vilarinho disse...

Valeu, Tita!
Boas Festas para você também.
Carlos Vilarinho.

Alexandre Core disse...

Gerana,

Estou passando aqui para agradecer o seu exagero de comentário (rs) lá no blog ...Esperas que divido com a Letícia Coelho. Gostei muito do Leitura Crítica e voltarei mais vezes. Posso adicionar o seu blog à minha lista de favoritos? Faço o convite para que conheça o meu outro blog que também é sobre Poesia.

Beijos!
www.anemaecore.blogspot.com

Anônimo disse...

Alexandre
Não foi exagero, gostei muito mesmo. E eu sou crítica: uma vez escrevi um prefácio que o autor publicou como prova de coragem porque era um "anti-prefácio", só apontava desacertos poéticos (existem?). O que há, em poesia, é empatia. Gosto da poesia caudalosa, quase contando uma história. E, claro, pode adicionar. Vou lá no seu.

Anônimo disse...

O conto tem uma estrutura que encanta. O desenvolvimento é muito criativo. Escritor tem a onipotência de, com algumas digitadas, mudar o mundo e fazer acontecerem coisas surreais, como p.ex. morrer de amor. Desse amor - que não existe - criamos paraísos e infernos e até nos encantamos com ele, ainda que o saibamos utópico. Parabéns Vilarinho, vc consegue fazer a magia.

Carlos Vilarinho disse...

OBRIGADO, GLÁUCIA.