Gláucia Lemos
“A felicidade pode ser um par de botas.”
Machado de Assis
Venho tentando compreender o mistério que estabelece uma ponte entre a sensação do paladar e o universo complicado das recordações.
O advento das dietas vem nos submetendo à obrigação de negarmos um dos grandes prazeres da nossa condição humana: comer o que satisfaz a nossa aprovação gustativa. Assim, o melhor do ovo rejeitamos, e nos contentamos com a sem-gracice da clara, em nome do colesterol. Devemos dizer não a nosso purê amanteigado, à santa macarronada do domingo, à pizza de quatro queijos, às maioneses, e substituí-los pela verde mistura folhosa de lindo visual e gosto duvidoso; pela secura do filé de frango grelhado; pela grosseria da pizza de massa integral e pelo borrachudo queijo frescal. Carboidratos, lipídios e que tais, inimigos nossos irreconciliáveis que merecem o nosso sincero desprezo, atormentam nossa vida, limitando os nossos jantares.
É assim que também riscamos a manteiga da nossa lista de compras, um dos mais deliciosos resultantes de um processo laborioso. O que passarmos no pão nosso de cada dia? Geléia? Nunca, é preciso cuidar da glicemia. Queijo? Só se for o frescal, com aquele sabor do leite vertido do sapoti verde. Resta margarina, mistura química que dizem ser vegetal, mas acabamos por ingerir sem certeza do que estamos somando à poluição das nossas vísceras. Pois, não é que ando comendo cream cracker com margarina há muitos anos?
Numa dessas manhãs, porém, uma caixa amarela com rótulo vermelho, em cujo conteúdo um dos meus filhos exercita sua rebeldia, por não se render ao dessabor das margarinas, lá estava tentadora à minha frente. Seduzida, já que também não sou de ferro, entreguei os pontos — faça de mim o que bem quiser — rendi-me ao fascínio, e eis uma tênue espatulada de manteiga no campo retangular do meu cream cracker. Uma mordida. Uma mastigada. Uma revelação!
Redescobri a alegria da infância. Alguma coisa naquele sabor me transportou para uma intraduzível sensação. Digamos que foi felicidade, como havia muito tempo não me fora dado sentir. O sabor do biscoito com manteiga — atente-se que não era um manjar, uma ambrosia, um pudim especial, um pastel-de-Belém , era um mero, o mais comum dos biscoitos conhecidos, um apenas cream cracker acompanhado de café-com-leite — me transportou a momentos muito vividos do meu primeiro decênio de vida, o do café da manhã antes de ir à escola naquele tempo despreocupado e meio irresponsável, em que vivemos só porque nos colocaram no mundo, e a vida não tem arestas nem tristezas, não tem vazios nem culpas, não tem tédios nem mágoas, a vida corre deslizando como as águas de um rio. A vida é somente Vida, para que a possamos colher, porque acreditamos que para isso estarmos no mundo. Entendi então que naquela época nunca observara quanto sabor havia no biscoito com manteiga — claro, ainda não havia margarina nem colesterol, eu comia manteiga todos os dias sem restrições para o meu prazer de degustar.
Mas nessa manhã descobri que a satisfação do paladar também é como o encontro de um caderno de anotações que se guardara no fundo de uma velha e emperrada gaveta, e que, folheado ao acaso, reconta horas encantadoras das quais até pensávamos nos haver esquecido, em um regozo de alegrias físicas, vivas e pulsantes. Pode ser uma ponte que conduz a nosso íntimo mais profundo, e alvoroça lembranças e sensações. Para o que às vezes não é preciso mais que um biscoito sem nobreza e uma pequena transgressão.
A gente vive aprendendo e se surpreendendo, e exercitando o poder e o direito de filosofar, até mesmo sobre um pouco de manteiga em um biscoito cream cracker.
Salvador, dez/2007.
“A felicidade pode ser um par de botas.”
Machado de Assis
Venho tentando compreender o mistério que estabelece uma ponte entre a sensação do paladar e o universo complicado das recordações.
O advento das dietas vem nos submetendo à obrigação de negarmos um dos grandes prazeres da nossa condição humana: comer o que satisfaz a nossa aprovação gustativa. Assim, o melhor do ovo rejeitamos, e nos contentamos com a sem-gracice da clara, em nome do colesterol. Devemos dizer não a nosso purê amanteigado, à santa macarronada do domingo, à pizza de quatro queijos, às maioneses, e substituí-los pela verde mistura folhosa de lindo visual e gosto duvidoso; pela secura do filé de frango grelhado; pela grosseria da pizza de massa integral e pelo borrachudo queijo frescal. Carboidratos, lipídios e que tais, inimigos nossos irreconciliáveis que merecem o nosso sincero desprezo, atormentam nossa vida, limitando os nossos jantares.
É assim que também riscamos a manteiga da nossa lista de compras, um dos mais deliciosos resultantes de um processo laborioso. O que passarmos no pão nosso de cada dia? Geléia? Nunca, é preciso cuidar da glicemia. Queijo? Só se for o frescal, com aquele sabor do leite vertido do sapoti verde. Resta margarina, mistura química que dizem ser vegetal, mas acabamos por ingerir sem certeza do que estamos somando à poluição das nossas vísceras. Pois, não é que ando comendo cream cracker com margarina há muitos anos?
Numa dessas manhãs, porém, uma caixa amarela com rótulo vermelho, em cujo conteúdo um dos meus filhos exercita sua rebeldia, por não se render ao dessabor das margarinas, lá estava tentadora à minha frente. Seduzida, já que também não sou de ferro, entreguei os pontos — faça de mim o que bem quiser — rendi-me ao fascínio, e eis uma tênue espatulada de manteiga no campo retangular do meu cream cracker. Uma mordida. Uma mastigada. Uma revelação!
Redescobri a alegria da infância. Alguma coisa naquele sabor me transportou para uma intraduzível sensação. Digamos que foi felicidade, como havia muito tempo não me fora dado sentir. O sabor do biscoito com manteiga — atente-se que não era um manjar, uma ambrosia, um pudim especial, um pastel-de-Belém , era um mero, o mais comum dos biscoitos conhecidos, um apenas cream cracker acompanhado de café-com-leite — me transportou a momentos muito vividos do meu primeiro decênio de vida, o do café da manhã antes de ir à escola naquele tempo despreocupado e meio irresponsável, em que vivemos só porque nos colocaram no mundo, e a vida não tem arestas nem tristezas, não tem vazios nem culpas, não tem tédios nem mágoas, a vida corre deslizando como as águas de um rio. A vida é somente Vida, para que a possamos colher, porque acreditamos que para isso estarmos no mundo. Entendi então que naquela época nunca observara quanto sabor havia no biscoito com manteiga — claro, ainda não havia margarina nem colesterol, eu comia manteiga todos os dias sem restrições para o meu prazer de degustar.
Mas nessa manhã descobri que a satisfação do paladar também é como o encontro de um caderno de anotações que se guardara no fundo de uma velha e emperrada gaveta, e que, folheado ao acaso, reconta horas encantadoras das quais até pensávamos nos haver esquecido, em um regozo de alegrias físicas, vivas e pulsantes. Pode ser uma ponte que conduz a nosso íntimo mais profundo, e alvoroça lembranças e sensações. Para o que às vezes não é preciso mais que um biscoito sem nobreza e uma pequena transgressão.
A gente vive aprendendo e se surpreendendo, e exercitando o poder e o direito de filosofar, até mesmo sobre um pouco de manteiga em um biscoito cream cracker.
Salvador, dez/2007.
Gláucia Lemos é ficcionista com mais de duas dezenas de títulos publicados, entre eles, O riso da raposa (Bibliex, 1988).
5 comentários:
Gláucia, minha amiga, eu como e bebo tudo e todas.
O colesterol que se arranje lá embaixo no organismo, só quero que a cabeça funcione.rsrsrs...
Querida Gláucia, sua crônica suscitou-me lembranças guardadas. Eu, que nasci num vilarejo da Baía de Camamu, e que passei toda minha infância lá, vivenciei sabores, cheiros, tons de ambiente, vozes e uma riqueza de sensações naturais e simples, particulares do lugar e das pessoas, com seu texto nostálgico, me vi transportado para o meu interior. O meu interior. O que há de mais forte e firme em mim. Um beijo, sua sensibilidade é irmã da minha.
Vilarinho e Flamarion, por ordem de chegada: Pelo que tenho lido, Vilarinho, a sua cabeça vem funcionando mto bem, apesar do "Tudo" e "Todas". Que assim continue.Suas lembranças, Flamarion,identificaram-se com as minhas sensações suscitadas pelo momento "cream cracker".Você tem razão, os sabores e cheiros da infância são uma felicidade que se revive a cada recordação.Obrigada.
Ainda ontem comprei um pacote de cream cracker, da marca indicada por você. Depois, com ele, passei na frente de seu edifício. Menina, isto é que é influenciar os outros pela literatura! Mas que a crônica é uma delícia, lá isto é. Parabéns, Gláucia!
Obrigada, Gerana, a gente vai fazendo o que pode, para alguma coisa se nasce escritor; quando influencia alguém no bom sentido, acho que cumpriu uma parte da tarefa.Comer nunca faz mal a ninguém... guardadas as devidas proporções.
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