sábado, 20 de setembro de 2008

DIZER

Manuel Anastácio

Para a Gerana Damulakis










Dizer liberdade e pensar num pássaro. Em voar.
Em ar.
Dizer saudade e pensar em cais.
Em água.
Em pedra. Em pouco mais.
Dizer amor e pensar em fogo.
Dizer desejo e pensar em cinza
Após a inocente inconsciência do jogo ardente e do jugo
das labaredas.

Dizer liberdade e pensar em solidão.
Num só e único pássaro.
No ar. Movimento sem destino.
Dizer liberdade e pensar ingratidão.
Pássaro abandonado a correntes sem vontade,
Algemado ao amuo do vento,
Ao arrasto, ao empuxo, ao peso,
À sustentação.

Dizer liberdade e jamais pensar em bandos
E em nuvens pontilhadas de colectivo amor.
Dizer liberdade e negar a dor
Que há na saudade, mas jamais
Nos cais de nuvem
De um beijo sem atrevimento.
Liberdade a penas.
Um ponto que flutua no esquecimento,
Certa semente da mais decantada e desasada servidão.

Dizer liberdade.
E esquecer o coração.







Manuel Anastácio assina o blog Da Condição Humana, entrada pelos meus favoritos, ou http://literaturas.blogs.sapo.pt/ Foto "Liberdade", de Web4u, retirada do Flickr.

VERSOS ANTOLÓGICOS


Gerana Damulakis


Não sei se acontece com todos que amam poesia, mas comigo ocorre amiúde ter vontade de responder em versos a algum questionamento. Tudo isto porque há os versos inesquecíveis que se encaixam como resposta em várias ocasiões, ou mesmo, sem que seja preciso um diálogo, eles surgem como resultado de alguma observação. Fernando Pessoa é dono de muitos versos antológicos: os exemplos refletem os meus preferidos.

Há doenças piores que as doenças,/Há dores que não doem, nem na alma/ Mas que são dolorosas mais que as outras./ Há angústias sonhadas mais reais/ Que as que a vida nos traz, há sensações/ Sentidas só com imaginá-las/ Que são mais nossas do que a própria vida. (...). Em "Há doenças piores que as doenças"

Quem não quiser sofrer, que se isole

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

Deus é o existirmos e isto não ser tudo. Em "A minha imagem"

Todas as cartas de amor são/ Ridículas./ Não seriam cartas de amor se não fossem/ Ridículas.

Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Em "Tabacaria"

COISAS DA NOBREZA


Gláucia Lemos


Há situações que se constroem destrutivamente, e nelas nos envolvemos, mediante uma inevitabilidade que nos custa acreditar. Passamos a responder por elas, quantas vezes com o nosso próprio prejuízo. Ficamos, como as gentes diziam na minha infância, “apagando o fifó com os dedos” (Para quem não sabe, fifó é um tipo primitivo de candeeiro, alimentado a querosene, de pavio grosso que faz chama forte, alta e fumarenta, e não tem manga). Então ficamos olhando para o tempo a nos perguntar por que estamos carregando nos ombros aquela conseqüência, se fizemos tudo de acordo com o figurino, com toda lealdade e com o mais perfeito bom-senso. Fica a perplexidade um pouco doída. E aquela sensação fria e letárgica, de não-ter-que-fazer.
Há alguns anos, nesta cidade dos mil encantos, das gentes bonitas e amigas, neste ninho de intelectualidades e de gente boa, uma moça coordenava um concurso literário anual para uma conceituada instituição. Havia uma pequena equipe bem competente, eleita por ela, para que cada elemento se encarregasse do julgamento de determinado gênero. Durante muitos anos o sistema funcionou muito bem, com pequeno cachê, mas festas de premiação com coquetel e tudo, muita música, alegria e franca amizade. A equipe era quase uma família.
Um dia, o presidente da instituição sugeriu à moça o nome de uma pessoa para participar como jurada. Só que não iria acrescentar, ao contrário, alguém teria que ser afastado para que o novo elemento o substituísse. A moça sabia da competência do novo elemento, como igualmente conhecia a competência dos que, havia tantos anos, vinham trabalhando. Entrava o sentimento de lealdade. E perguntou: quem eu afasto? E disse ao presidente: escolha quem sai, porque essa escolha eu não posso fazer. Ele não quis escolher, ela não pôde escolher. Ninguém saiu.
A nova não entrou, mas entrou na historinha um componente terrível, abjeto, cruel e destruidor, chamado Retaliação.
O novo elemento proposto era da imprensa e tinha função expressiva na área literária. Nunca mais, a partir de então, a moça que coordenava os jurados conseguiu publicar um conto, uma crônica, um ensaio, um artigo, naquelas folhas que, anteriormente ao fato, lhe eram franqueadas sem reservas. Ganhou prêmios, fez palestras, venceu concursos, participou de projetos importantes, mandava releases, nunca mais até hoje, mereceu a menor notícia naquele jornal, como se tivesse sido sentenciada a encerrar sua carreira. Alguma dúvida?
Isso é a vida no lado escuro. São coisas que acontecem quando menos esperamos. Coisas relacionadas com nobreza, de haver, ou não haver.
Algum comentário?


Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta, tem vários títulos publicados e prêmios recebidos. Foto "revista e jornal", de Crystian Cruz, retirada do Flickr.

DO 81 AO 90

Gerana Damulakis


81- Homem que é homem não dança, de Norman Mailer

82- O companheiro de viagem, de Gyula Krúdy

83- Nada de novo no front, de Erich Maria Remarque

84- O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos

85- A montanha da alma, de Gao Xingjian

86- Trilogia (A vida breve, O estaleiro, Junta-cadáveres) de Juan Carlos Onetti

87- Mar morto, de Jorge Amado

88- Pedra Bonita, de José Lins do Rego

89- Rumo à estação Finlândia, de Edmund Wilson

90- Com o diabo no corpo, de Raymond Radiguet

TRECHO de Mar morto, de Jorge Amado (foto).

Lívia olha o mar morto de águas de chumbo. Mar sem ondas, pesado, mar de óleo. Onde estão os navios, os marinheiros e os náufragos? Mar morto de soluços, quedê as mulheres que não vêm chorar os maridos perdidos? Onde estão as crianças que morreram na noite do temporal? Onde está a vela do saveiro que o mar engoliu?E o corpo de Guma que boiava com longos cabelos morenos na água que era azul? Na água plúmbea e pesada do mar morto de óleo corre como uma assombração a luz de uma vela à procura de um afogado. É o mar que morreu, é o mar que está morto, que virou óleo, ficou parado, sem uma onda. Mar morto que não reflete as estrelas nas sua águas pesadas.
Se a Lua vier, se a Lua vier com sua luz amarela, correrá por cima do mar morto e procurará como aquela vela o corpo de Guma, o de longos cabelos morenos, o que marchou pela estrada do mar para o caminho das Terras do Sem Fim, das costas da Arocá."

EL CAPITÁN DEL AMOR




Gerana Damulakis



(sobre os versos do capitão do amor Pablo Neruda)


Quando a vanguarda latino-americana se dirige do surrealismo rumo à síntese neo-realista, o peruano César Vallejo passa a manter, em sua obra, uma ligação dramática e irônica com a realidade. Já o cubano Nicolás Guillén eleva o negro e se torna um representante da poesia realista-socialista. Mas o modelo mais significativo dessa corrente para a literatura universal, no parecer do historiador húngaro Miklós Szabolcsi, é a extensa obra de Pablo Neruda, que se inicia com o surrealismo, passa para um “realismo mágico” e chega a um “realismo despojado, sereno e complexo”.
A poética de Pablo Neruda encerra a política, a evocação da América Latina, o amor, os conflitos existenciais. Em Canto General (Canto Geral, 1947), a América, passada e presente, ascende à solicitação da poesia, construída de uma imagem do mundo da Antigüidade aos nossos dias, como “uma encenação épica à escala de um continente”, através do figurado e do contemplativo. Ainda que os temas patrióticos e de guerra sejam omitidos por Horácio, em sua Arte Poética, que lista assuntos a seu ver apropriados à poesia, estes temas estão presente em poetas de todas as épocas, e em Neruda encontramos tanto em España en el Corazón quanto em versos como: “Stalin es el mediodia/ la madurez del hombre y de los pueblos”, demonstrando a viabilidade dos temas políticos na expressão da poesia mais autêntica, mesmo que isso implique em submeter a poesia aos interesses de determinada causa política, na medida em que se pronuncia pelo tema marxista.
Certamente, o fim da poesia não é o estudo dos costumes, nem a crítica social e política. Mas, como adverte Domingos Carvalho da Silva, “se há bons poemas políticos na obra de Victor Hugo e Castro Alves, de Maiakóvski e Pablo Neruda, isto não decorre do assunto, mas da linguagem”, da clareza e da segurança, do sentido de renovação.
Neruda se engaja politicamente “de modo unilateral”, porque usa a palavra apenas a favor do socialismo, e por tal, “sua lírica de grande fôlego, ampla, escancarada, representa também uma variedade do realismo socialista”. Assim como muitos escritores de sua época, o poeta chileno coloca sua aversão à disposição do Partido Comunista e, como tantos, inicia cantando as agruras do povo, e de pronto se vê fazendo apologias a Stalin: “la mirada de Stalin a la nieve”( no poema “Nuevo canto de amor a Stalingrado”).
Acontece, pelo anos 60, que Neruda se desestaniliza, contudo canta a Revolução Cubana. Jorge Edwards, assessor de Pablo Neruda quando este, no governo Allende, chefiou a embaixada do Chile em Paris, escreveu Adeus poeta: uma biografia de Neruda, onde conta que, por ocasião de um congresso do Pen Clube, Neruda aceitou o convite de Arthur Miler e foi para Nova Iorque; então, por este fato, o poeta recebeu uma carta-aberta, em 1966, de intelectuais cubanos que o censuravam por sua tolerância para com o inimigo capitalista. Pablo Neruda ficou exasperado, pois estava certo de que, apesar das assinaturas de Lezama Lima e Alejo Carpentier, o real orientador da carta era Fidel Castro. Alguns anos depois, convidado para visitar Cuba, o poeta quis uma retratação que não ocorreu e nunca voltou àquele país.
Entre outros casos envolvendo seu amigo, Jorge Amado narra, em Navegação de Cabotagem, um interessante episódio em torno de Las uvas y el Viento, coletânea de poemas políticos onde um deles faz uma apologia a Tito, comandante dos iugoslavos. Quando estava anunciada a segunda edição do livro, Tito rompe com Stálin, Pablo retira o poema e coloca no lugar do panegírico uma denúncia contra Tito. Passa o tempo, Stálin é desmascarado via Kruschev que reabilita Tito. A essa altura, “Pablo se sente enrolado nas malhas da política, lastima o destino das uvas ao sabor dos ventos soviéticos” e diz: “Assim fica difícil ser poeta engajado”. Jorge Amado aconselha a retirada de Tito das páginas do livro “de uma vez para sempre”, e sobretudo aconselha esperar “até ver que bicho dá”, antes de escrever outra louvação.
O espírito de Neruda “era travesso e brincalhão”. Matilde Urrutia, seu grande amor, conta, em Minha Vida com Pablo Neruda, que quando o poeta estava se vestindo para cerimônia na qual receberia o Prêmio Nobel, em 1971, olhava as caudas da casaca. Ria muito e dizia: “Sinto a mesma sensação que experimento quando me fantasio nas festas em Isla Negra. Se pudesse pintar uns bigodinhos, então, seria perfeito”. Ou em um jantar com Louis Aragon e outros intelectuais, quando Neruda vira-se para os amigos latino-americanos dizendo: “Vamos ter que ser inteligentes a noite toda”.
Pablo Neruda era um colecionador capaz de pagar preços exorbitantes por coisas que lhe agradavam, mesmo que não tivessem valor, ou por algo raro como uma primeira edição de Edgar Allan Poe. E era um homem capaz de amar com loucura, sem barreiras.
No nosso século, uma das mais conhecidas exaltações amorosas são os Veinte Poemas de Amor y una Cancíon Desesperada, quando os versos pendem para o lirismo do poema hipoteticamente escrito para as bodas de Sulamita e para o poema “Arte de Amar”, de Ovídio, em que se conjugam a força lírica e a didática erótica. Na linha que começa com os Vintes Poemas e culmina com as Odes Elementais, Os Versos do Capitão guardam uma história de amor verdadeira e por isso o livro foi publicado anonimamente em 1953, sendo reconhecido por Neruda apenas na terceira edição. A admiração que provocou confirma que o volume Los Versos del Capitán está entre os mais prestigiados livros de poemas de amor de nosso tempo. O amor deixa de ser um mito: “Eros não é mais um Deus cego e enceguecedor”, retorna o caminhante deslumbrado e sedento de uma totalidade dos sentidos, de uma sinestesia cúmplice do estado de plenitude e no ritmo de seu caminhar dissipa o torpor de um deserto que se faz habilitado. A verdade encontra a sua essência, e não é o despotismo de uma racionalização que escolhe isso, mas um desejo que se implanta em cada um de nós, seus leitores, e nos suplanta, é a energia de “Eros fazendo-se poema” como nos versos de “El amor”: “Qué tienes, qué tenemos?/ qué nos pasa?”, o amor real por uma mulher real e tão comum que torna incompreensível tal sentimento: “Yo te miro/ y no hallo nada en ti sino dos ojos/ como todos los ojos, una boca/ perdida entre mil bocas que besé, más hermosas,/ un cuerpo igual a los que resbalaron/ bajo mi cuerpo sin dejar memoria”; o amor como invasão que entra “en tu vida,/ para no salir más,/ amor, amor, amor./para quedarme”. Queda para sempre a poesia de Pablo Neruda.