sexta-feira, 29 de outubro de 2010

FLORBELA ESPANCA: TANTAS!



Gerana Damulakis

O poeta geralmente sofre da síndrome de ser vário. Walt Whitman vociferou: "Sou vasto. Contenho multidões". Fernando Pessoa inventou os heterônimos para multiplicar-se. E Mário de Sá-Carneiro chegou a dizer: "Morro à míngua, de excesso" e, sendo tantos "já não me sou". Enquanto o nosso Mário de Andrade proclamou ser trezentos, trezentos e cinqüenta, mais precisamente. Há qualquer coisa de Iago (em Otelo, de Shakespeare): "Não sou o que sou". Florbela Espanca completa: "E neste sonho eu já nem sei quem sou...".

A poeta portuguesa não escapou a essa tendência de sentir sua personalidade multifacetada. Fez-se princesa, castelã, sóror e, cada uma - como diz José Régio em estudo crítico - "morta, ressurgirá em todas as mulheres beijadas pelo homem que a amou". Como nos contos de fada, Florbela traz a concepção de viver encantada. Por tal, Jorge de Sena atenta que a poeta se transforma em seres de outros reinos, e crê que só terá esse encanto quebrado com a vinda da morte. A poesia de Florbela Espanca, como um diário, registra os estados de espírito, os seus vários: da ansiedade à depressão, do delírio da paixão à exaltação ilimitada. Daí ser terna ou voluptuosa, daí doar-se e se sacrificar ou apiedar-se com imensa comiseração de si mesma: "Tantas almas a rir dentro da minha!".

A poeta não alcança a saciação: "Sede de beijos, amargor de fel,/ Estonteante fome, áspera e cruel,/ Que nada existe que mitigue e a farte!". Sem preconceitos, essa angústia por tamanha vontade de amar está liberta de amarras, justamente para mostrar os conflitos da alma feminina e sua volubilidade: "Eu quero amar, amar perdidamente!/ Amar só por amar: Aqui... além.../ Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente.../ Amar! Amar! E não amar ninguém!".
Tantas mulheres em uma poeta.

Ilustração: Rafal Olbinski.

VI UMA ARANHA SILENCIOSA E PACIENTE


Gerana Damulakis

Walt Whitman (1819-1892) sempre me lembra Ezra Pound - amanhã direi a razão, muitos sabem sobre a associação entre os dois poetas -, porque hoje quero colocar um poema que é uma grande metáfora. Whitman nos mostra um outro modo de pensar a dominação, a conquista, a guerra. Resta sentir, verso a verso.


VI UMA ARANHA SILENCIOSA E PACIENTE
----------------Walt Whitman


Vi uma aranha silenciosa e paciente
Isolada num pequeno promontório
Que, para explorar os amplos e desertos arredores,
Emitia filamentos e filamentos e filamentos de seu próprio
------------corpo,
Desenrolando-os sempre, sempre velozmente.
Também tu, ó minha alma, aí onde estás, esperas
Cercada, desgarrada, em imensuráveis oceanos de espaço,
Incessantemente divagando, especulando, procurando
-------------esferas para a conexão,
Até que a ponte de que precisas se forme, que a âncora
-------------maleável se encrave,
Que o fio da teia que lances a algo se entrelace, Ó minha
-------------alma.


Tradução de Jorge Wanderley.

UM PACTO


Gerana Damulakis

Quando fiz a postagem com o poema de Walt Whitman (1819-1892), "Vi uma aranha silenciosa e paciente", prometi que faria outra postagem para trazer um poema de Ezra Pound (1885-1972). Pound, que teceu diatribes e, depois, resolveu aceitar melhor a poesia de Whitman, acabou transformando em poema, por conta disso, todo um certo modo de ler Whitman. Estava feito o pacto.

UM PACTO

----------------Ezra Pound


Eu faço um pacto com você, Walt Whitman –
Eu lhe detestei o suficiente.
Eu venho a você como um menino crescido
Que teve um pai cabeçudo;
Eu sou velho o suficiente agora para fazer amigos.
Foi você quem cortou a madeira nova,
Agora já é tempo de esculpi-la.
Nós temos a mesma seiva e a mesma raiz –
Que haja comércio, pois, entre nós.


Ilustração: Ezra Pound, painting by Wyndham Lewis, 1938-39. The Granger Colletion, New York.

A ARTE


A ARTE
----------------Gerana Damulakis


Se eu pudesse pintar
minha grande ânsia,
por certo seria
uma tela vermelha,
onde alguns
pontos negros
dariam o tom
do meu próprio
deserto.



Foto da net, sem créditos.

A PALAVRA

A PALAVRA

----------------Gerana Damulakis


Por que não a encontro?

Apalpá-la como se dura,

como quem alisa a rocha,

surpresa, por imaginá-la pura;

isso é perder-se de propósito

na floresta?



Sábia, esperando

ser colhida e viva, ela,

no monte sólido de cinzas

(donde a ave não renascerá),

parece flor, contemplativa.



Ilustração: Vendedora de flores, de Diego Rivera (1886-1957).

POEMINHA



ARRANJOS

------Gerana Damulakis


Do tempo presente

em todo canto,

esgarço o que sou

e o que não;

solitária é a noite

sem estrelas,

tão na escuridão

profunda

do abismo,

que é assim

pintada:

o absoluto, o nada;

sempre pinto

o que escravizo

dentro de mim.

Agrade, ou não.



Ilustração: Rafal Olbinski

A VIDA É SONHO


Gerana Damulakis

Pode apostar: se esses poucos versos ficarem na sua memória, em alguns momentos durante o dia, talvez durante a noite, você terá vontade de dizê-los em voz alta.

Que é a vida? Um frenesí.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonho são.

Trecho do monólogo do personagem Segismundo, na peça A vida é sonho, de Calderón de La Barca, tradução da poeta Renata Pallottini.


Ilustração: Rafal Olbinski.

QUESTÃO DE GOSTO



Metade do mundo não consegue compreender os prazeres da outra metade.
Jane Austen

Ilustração: Retrato de Jane. Imagem da Wikipedia.

A COISA MAIS INÚTIL DO MUNDO



A mais inútil coisa deste mundo é o arrependimento, em geral quem se diz arrependido quer apenas conquistar perdão e esquecimento, no fundo, cada um de nós continua a prezar as suas culpas.
José Saramago in O ano da morte de Ricardo Reis



Ilustração: Maurits Cornelis Escher, Auto-retrato.

"A VIDA SE ME É"


Gerana Damulakis

Digo e repito estas palavras escritas por Clarice Lispector. Elas moram em mim.

(...) como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.
- - - - - - - em A Paixão segundo G.H.

Ilustração: Números e constelações em amor com uma mulher, de Miró.

O QUE É UM LIVRO?



Talvez possa fazer um breve resumo da história dos livros. Até onde lembro, os gregos não faziam grande uso deles. A maioria dos grandes mestres da humanidade não foram escritores, mas oradores. Pensem em Pitágoras, Cristo, Sócrates, Buda e assim por diante.
Lembro que Bernard Shaw disse que Platão foi o dramaturgo que inventou Sócrates, tal como os quatro evangelistas inventaram Jesus.

Num dos diálogos de Platão, ele fala sobre os livros de modo um tanto depreciativo: "O que é um livro? Um livro, como uma pintura, parece um ser vivo; no entanto, se lhe perguntamos algo, não responde. Vemos então que está morto". Para fazer do livro um ser vivo, ele inventou o diálogo platônico, que se antecipa às dúvidas e perguntas do leitor.
----------------------------Jorge Luis Borges in Esse Ofício do Verso

Ilustração: óleo sobre tela do argentino Gabriel Caprav.

UM DIA E UM POEMA


Gerana Damulakis

Meu primeiro choque com a literatura foi com os versos de Manuel Bandeira. Sim, foi um choque. Habituada aos livros porque a biblioteca da minha casa era enorme e livros eram objeto de conversas cotidianas, eu já andava com fumaças de leitora desde a tenra idade de 7 anos, mas aquela coisa que me deixou estupefata e cuja sensação ainda guardo comigo, esta foi causada pelos versos de Bandeira. Queria muito saber qual era o poema. Lembro da sala de aula, lembro da carteira escolar, lembro do livro de gramática da língua portuguesa, lembro que estava folheando e parei naquele poema e tomei um choque e entendi. Cada vez que leio a poesia de Bandeira (e leio sempre, pois que me faz falta se levo algum tempo longe dos seus livros), penso se estou lendo justamente aquele poema. Nunca saberei qual foi, já que são tantos os versos, as estrofes, os poemas de Manuel Bandeira que amo.
Minha memória está repleta de versos próprios para cada momento. Agora, sei que nunca terei a certeza de qual poema me fez mergulhar sem volta para o mundo da poesia. O que me resta? Como escreveu Bandeira:
"A única coisa a fazer é tocar um tango argentino".

ISMÁLIA

Gerana Damulakis

No livro de Mônica Menezes, Estranhamentos, há um poema interessantíssimo intitulado "Como Ismália", quando a poeta parte da ideia contida no poema "Ismália", de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), para construir a sua personagem poética tal como aquela famosa, que enlouqueceu...

ISMÁLIA
-----------Alphonsus de Guimaraens

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...


Ilustração: Lua, de Tarsila do Amaral.

AS SEM-RAZÕES DA PAIXÃO



Gerana Damulakis

Nem me pergunte sobre ela, sobre ele, sobre ambos. Não sei de nada. Para explicar as razões de uma paixão que não se realiza são precisos conhecimento e muito mais arte que qualquer psicologia possa achar factível nas palavras. No poema “As Sem-Razões do Amor”, Carlos Drummond de Andrade dá um show de entendimento e a última estrofe coroa o poema, coroa o sentimento, de forma única e, para dizer melhor, de forma completa. Trata, porém, do amor. Paixão é outra coisa.
Aqui, no entanto, não há palavras, versos, estrofes. Aqui há a paixão. Certo é que por vezes arrefece, depois volta. Nunca se tocaram, nem me pergunte qual a razão, mais uma vez garanto não saber. Um dia, faz anos, ele disse que teve uma paixão enrustida por uma amiga e em oportunidade surgida, não criada, calhou de ficarem a sós. Não trocaram uma palavra sobre sentimento ou sobre tesão, apenas se tocaram. Deste toque foram direto para um amasso total. Grudaram. Tinham represado muito desejo. Bastou tocar e explodiu. Excitante, claro que é excitante.
Pensando direitinho, acho que ele contou a historinha já sabendo que ela ficaria excitada, tentada a fazer igual, e a guardaria para sempre na memória. Não deu outra. Ela guardou na memória. O que intriga é a razão da paixão no ar entre os dois. Da parte dela, acho que vem da admiração, da maneira que ela imagina que ele sente as coisas da alma. Da parte dele, não vejo qual razão poderia ser; talvez física, talvez a expansividade dela seja atraente. Quem pode atestar as sem-razões da paixão?
Os anos foram passando e nada fora acrescentado ao suposto romance. Estava ali, entretanto. Estava ali o desejo. Ele ia envelhecendo, ela também obviamente. Mas ele tem duas décadas na frente dela e seu envelhecimento é mais visível nesta etapa da vida. Os pés-de- galinha ao redor dos olhos dele estão tão profundos. O olhar, todavia belo. No total, porém, ele não emanava atração, não tinha qualquer parte ou detalhe sensual. E como despertava essa coisa invisível e poderosa? Ela fica toda contente quando sente isso. E nem pensa em explicações. Quem pensa sou eu, quem matuta razões sou eu.
Um dia tudo retorna, a tensão no ar, ele sem as rugas no rosto, só a poesia na alma. Ela, querendo flutuar nas nuvens, nas nuvens – lugar onde apenas a paixão é capaz de nos colocar. Ela entra no escritório dele, fala coisas inteligentes, tenta impressioná-lo, tenta reter aquele olhar de admiração que voltou e, pronto, ela está totalmente enamorada outra vez. Ele pensa bastante no que não houve. Não sei se pensa no que pode haver. Será? Ele está velho e ela está velha. Continuamos sem entender as razões da paixão. Ano entra, ano se vai. E a vida está passando. Mas nós, seguramente, nos apaixonamos.


Ilustração: O beijo, de Henri de Toulouse-Lautrec.

O NÚMERO SETE



Gerana Damulakis

Este romance breve de Almeida Faria é um deleite, saiu pela Rocco em 1993. O nosso Lêdo Ivo diz nas "orelhas": "Toda aventura humana é a promessa de um naufrágio". Definindo extraordinariamente a aventura de O conquistador, o poeta Lêdo Ivo escreveu um texto tão admirável quanto o romance. Acrescento que a aventura aqui é sinônimo também de uma diluição do personagem; aliás isto foi apontado. O que, de resto, resulta no mesmo. Vale embarcar com Almeida Faria: ressalto que "a sabedoria das superstições" dão um toque extra; o número sete, por exemplo, é um número muito importante.
Leitura de primeira.

(...) cuja soma dá o número sete, sinal da felicidade e dos destinos raros. Não em vão se invocam os sete dias da criação, os sete anos que Jacob serviu Raquel, os sete pecados mortais, as sete portas de Tebas, os sete muros que cercam a Cidade Celeste, as sete obras de misericórdia,, os sete andares do céu, os sete dons do Espírito, as sete maravilhas dessa terra, os sete planetas e os sete metais que se lhe referem, as sete estrelas do grupo das Plêiades, os sete braços dos sete candelabros empunhados pelos sete anjos que rodeiam o trono divino e que soarão as sete trombetas no Dia do Juízo.

O ANJO LÍRICO DOS PAMPAS


A morte é a libertação total:
a morte é quando a gente pode, afinal,
estar deitado de sapatos.
Mario Quintana

Gerana Damulakis

Foi Augusto Meyer quem disse que “a verdadeira história de um escritor principia na hora da morte”. Desde que Mario Quintana morreu aparecem mais e mais quintanólogos que chegam, a exemplo do que fizeram Meyer e Fausto Cunha, para mostrar o valor do lirismo do anjo dos pampas.

Ele estreou em livro com 37 anos, portanto, como se diz, foi uma estréia tardia. Não faltava editor. Érico Veríssimo, então secretário da Editora Globo, cobrava o livro com insistência. Mas é apenas a publicação que pode ser chamada de tardia porque a obra já estava pronta. O próprio Mario conta que os críticos dividem seus livros em três fases: a simbolista (do primeiro livro, A Rua dos Cataventos, até Sapato Florido); a realista (até O Aprendiz de Feiticeiro); a surrealista. No entanto, não houve essa evolução. Em todos os livros há poemas da época em que A Rua dos Cataventos foi publicado.

A poesia de Quintana traz sempre suas características principais: o humanismo do seu conteúdo e a simplicidade (enganosa simplicidade) de sua forma. É preciso não ser apressado para não concluir erradamente rotulando Quintana de “poeta fácil”; na verdade, essa facilidade imediata é uma ilusão, uma aparência, porque não há soluções fáceis, ele sabe ser simples recorrendo, muitas vezes, à linguagem popular através de um trabalho artesanal com as sutilezas e recursos poéticos. Mario dizia que jamais esperava que o santo da inspiração baixasse, antes puxava-o pelo pé, e isso dá trabalho: trabalho poético.

Introduzido na vida literária por Cecília Meireles quando, em 1927, enviou poemas que a poeta publicou no suplemento literário do Diário de Notícias, Mario Quintana teve aceitação imediata. Em 1966, Manuel Bandeira, em sessão da Academia Brasileira de Letras, fez uma saudação a Quintana, com um poema que se incorporou definitivamente à biografia do poeta do Rio Grande do Sul. As duas primeiras estrofes já evidenciam a admiração de Bandeira:

Meu Quintana, os teus cantares
não são, Quintana, cantares:
são, Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares...
insólitos, singulares...
Cantares? Não! Quintanares!

O título de Príncipe dos Poetas Brasileiros, em 1989, foi pouco para Quintana. Poeta presente na maioria das antologias nacionais e estrangeiras, também gravou vários discos de poemas, arrebatou muitos prêmios literários, foi muito louvado. Carlos Drumond de Andrade dizia que a lírica de Quintana “é uma tradução para o simples, de muitos mistérios”.

Mario Quintana - o Mario é assim mesmo: sem acento - nasceu em Alegrete, Rio Grande do Sul, em 30 de julho de 1906. Mario morreu em Porto Alegre, aos 87 anos. Ele disse: “Não gosto que me adjetivem, eu sou um substantivo”. Portanto, vamos ler Mario, o Mario Quintana.

A escolha vai para o soneto "Da vez primeira em que me assassinaram", cuja estrofe inicial traz os versos antológicos: "Da vez primeira em que me assassinaram/ Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.../ Depois, de cada vez que me mataram/ Foram levando qualquer coisa minha..."

É o entendimento do que é comum a todos que está presente no conteúdo lírico verdadeiro, daí a perenidade do poeta, deste poeta imortalizado pelos leitores.

COMPARAÇÃO

Gerana Damulakis

Adoro observar comportamentos, ler histórias, criar histórias (criar histórias que ficam no meu imaginário, elas não chegam ao papel - para tanto, há os escritores) e vou dando mais e mais razão a Oscar Wilde com sua máxima:

A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida.


Ilustração: Salvador Dalí.